
*O texto foi publicado originalmente em 6 de setembro de 2018
Que "ouviram do Ipiranga as margens pl�cidas" voc� j� sabe, ent�o n�o � preciso dizer que o epis�dio que entraria para a hist�ria do Brasil como a Independ�ncia, em 7 de setembro de 1822, ocorreu em S�o Paulo — no hoje bairro do Ipiranga, �s margens do c�rrego do Ipiranga — e n�o no Rio de Janeiro, sede do governo � �poca.
Mas o que fazia o intr�pido dom Pedro pelas bandas paulistas? Por que essa viagem, a cavalo e mula, do Rio at� S�o Paulo, pelo Vale do Para�ba, culminou no Grito do Ipiranga? O que fez o jovem nobre pelo caminho, neste p�riplo que ele iniciou como pr�ncipe e terminou como imperador?
Em busca dessas respostas, o pesquisador Paulo Rezzutti refez o trajeto, baseado no relato escrito em 1864 por um dos membros da comitiva de Dom Pedro, o major reformado Francisco de Castro do Canto e Melo, irm�o da Marquesa de Santos.
"Foram seis dias em que percorremos 1,3 mil km", conta Rezzutti, que � autor, entre outros, de D. Pedro: A Hist�ria N�o Contada, biografia do primeiro imperador do Brasil.
A viagem de Dom Pedro — que se estenderia por quase um m�s — era importante do ponto de vista pol�tico. A prov�ncia de S�o Paulo vivia um momento conturbado, com um princ�pio de motim em que parte da elite amea�ava se recusar a cumprir ordens da capital.
"Dom Pedro veio firmar alian�as com os fazendeiros, apaziguar o cen�rio e preparar terreno para a Independ�ncia", afirma Rezzutti.

"A vinda de Dom Pedro para a Prov�ncia de S�o Paulo era estrat�gica. A uni�o do Brasil era um tema que estava sendo muito pensado e discutido depois que Dom Jo�o 6º retornou a Portugal. O risco da fragmenta��o do Brasil em pequenas rep�blicas, como ocorreu na Am�rica Espanhola, era poss�vel", aponta o historiador Diego Amaro de Almeida, pesquisador do Centro Salesiano de Pesquisas Regionais e vice-presidente do Instituto de Estudos Valeparaibanos.
"Para evitar a submiss�o do Brasil a Portugal ou a desfragmenta��o do territ�rio, Dom Pedro precisava se mostrar um l�der capaz de realizar um plano ambicioso de independ�ncia de um territ�rio de propor��es continentais. E ainda precisava de apoio financeiro."
Na �poca, o Vale do Para�ba era um dos motores econ�micos do Pa�s. "Todos aqueles que produziam o caf� prosperavam, e de maneira r�pida", lembra Almeida. "Ou seja: era o lugar ideal para firmar alian�as."
O fato de Canto e Melo ter integrado essa comitiva � um sinal do momento complicado. O militar integrava o grupo chamado de "leais paulistanos", uma tropa de correligion�rios da prov�ncia que foi montada em janeiro de 1822, na �poca do epis�dio hist�rico conhecido como Dia do Fico, para manifestar apoio ao ent�o pr�ncipe.
No total, 1,1 mil homens participavam dessa guarda especial.
"N�o foi f�cil para o jovem pr�ncipe e futuro imperador do Brasil enfrentar os diferentes caminhos que os membros da elite do pa�s pretendiam trilhar. As influ�ncias externas eram muitas, mas os brasileiros, a ampla maioria, n�o desejavam voltar a ser col�nia de Portugal", afirma Almeida.
Neste contexto, diz o historiador, havia tr�s possibilidades apontadas por lideran�as. Uma era formada por portugueses que desejavam que Dom Pedro 1º retornasse a Portugal e que todas as leis que possibilitavam ao Brasil algum tipo de emancipa��o fossem derrubadas.
Outro grupo, liderado por Joaquim Gon�alves Ledo, queria que o Brasil se tornasse independente. Mas desejava, contudo, que o pa�s seguisse o rumo da Am�rica Espanhola, e as prov�ncias se tornassem rep�blicas.
Entretanto, o modelo que prevaleceu foi o defendido por Jos� Bonif�cio de Andrada e Silva, que propunha que o Brasil se separasse de Portugal, mas que mantivesse a manuten��o do regime mon�rquico constitucional, com a finalidade de preservar a unidade pol�tica e territorial.
O especialista contextualiza assim o cen�rio que pressionava Pedro 1º. "Ele herdava um pa�s com in�meros problemas financeiros, pol�ticos e sociais. Precisava e ansiava por todo apoio que pudesse, o que tamb�m exigiu um certo esfor�o de algu�m que come�ava a compreender o tamanho de suas responsabilidades", diz.
A viagem
O pr�ncipe saiu da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822. Tinha uma comitiva de 30 homens e um roteiro pr�-determinado, com paradas estrat�gicas ao longo da rota at� S�o Paulo. "Entre os membros da comitiva, estava Francisco Gomes da Silva, tamb�m conhecido como o Chala�a ou a Sombra do Imperador", cita Almeida.

A primeira parada, apenas para pernoitar, foi na Fazenda de Santa Cruz, de propriedade da fam�lia imperial, ainda no Rio. "Existia, mesmo que de forma prec�ria, uma log�stica para essas viagens, nas quais eram levadas certas quantidades de alimentos e �gua para os per�odos mais longos", afirma o historiador.
"E, por meio de mensageiros que acabavam partindo dos lugarejos antes da comitiva real, a pr�xima 'parada' j� era anunciada com certa anteced�ncia."
No dia seguinte, a comitiva adentrava terras paulistas. O futuro imperador visitou o capit�o Hil�rio Gomes de Almeida em suas terras, a ent�o Fazenda Tr�s Barras, em Bananal.
De acordo com Rezzutti, o aristocrata estava doente e acamado. A conversa com o imperador, portanto, teria ocorrido em seu pr�prio quarto.
O casar�o ainda existe, apesar de ter passado por muitas reformas que o descaracterizaram. No local hoje funciona um hotel-fazenda. Uma das su�tes, exatamente a que, acredita-se, tenha abrigado Dom Pedro, chama-se "imperial", em homenagem ao passado hist�rico.
A parada seguinte, na Fazenda Pau D'Alho, em S�o Jos� do Barreiro, se tornaria folcl�rica. Isto porque Dom Pedro, conforme os relatos da �poca, teria apostado corrida com os demais membros da comitiva e chegado antes do previsto, sozinho, � fazenda, ent�o do Coronel Jo�o Ferreira.
Ele bateu palmas e, sem se identificar como pr�ncipe, pediu comida para a propriet�ria da casa.
Ela o atendeu, mas pediu para que comesse na cozinha "porque a sala de jantar estava sendo preparada com toda a pompa e circunst�ncia para receber o pr�ncipe regente", como conta Rezzutti.
"Dom Pedro se fartou de assados e guisados, na companhia de escravas e mucamas", pontua o historiador Almeida. Este epis�dio teria ocorrido em 17 de agosto de 1822.
No mesmo dia, a comitiva do pr�ncipe chegou � casa do capit�o-mor Domingos da Silva, em Areias. O im�vel ainda existe e, hoje, ali funciona um hotel. No dia seguinte, uma parada r�pida, apenas para almo�o, em Porto Cachoeira, hoje Cachoeira Paulista. Na noite do dia 18, Dom Pedro chegou a Lorena.

Era um parada importante do ponto de vista pol�tico, pois ali o pr�ncipe se hospedaria na casa do capit�o-mor Ventura Jos� de Abreu.
O futuro imperador cumpriu uma esp�cie de agenda p�blica na cidade. Teria plantado uma palmeira no que se tornaria a rua das Palmeiras, no centro do munic�pio, visitado a antiga Casa de C�mara e Cadeia e a Igreja de Nossa Senhora do Ros�rio dos Homens Pretos.
No dia 19 de agosto, o grupo partiu para Guaratinguet�, onde Pedro foi h�spede do capit�o-mor Manoel Jos� de Melo. "O im�vel n�o foi preservado", conta Rezzutti. Ali, conforme apurou o pesquisador, a comitiva teria aumentado, com a ades�o de novos seguidores, em uma esp�cie de guarda de honra.
Dom Pedro tinha novo compromisso p�blico: visitar a ent�o capela de Nossa Senhora Aparecida, hoje no munic�pio de Aparecida.
Tratava-se de um importante ponto de peregrina��o cat�lica, pois o pequeno templo havia sido erguido justamente para abrigar a imagem da santa, chamada de Nossa Senhora Aparecida, encontrada ali na regi�o em 1717 e, depois, proclamada padroeira do Brasil.
Rezzutti conta que antigos relatos afirmam que Dom Pedro teria rezado na igrejinha e feito uma promessa: se tudo corresse bem, ele faria de Nossa Senhora Aparecida a padroeira do Brasil independente. Na realidade, depois de se tornar imperador, Pedro 1º escolheu S�o Pedro de Alc�ntara como padroeiro.
De l�, a comitiva partiu para Pindamonhangaba.
Ali, o pr�ncipe se encontrou com o influente major Domingos Marcondes de Andrade. "Dentre as muitas hist�rias registradas em di�rios, conta-se que Domingos Marcondes de Andrade estava montando em um garboso cavalo. Dom Pedro, ao ver o belo animal, come�ou a elogi�-lo, como que esperando a rea��o do propriet�rio", narra o historiador Almeida.
"Quando mais o pr�ncipe elogiava o cavalo, mais Marcondes de Andrade ficava mudo. Por fim, quando Dom Pedro foi mais incisivo, dizendo que lhe agradaria possuir um cavalo como aquele, Domingos Marcondes prop�s um acordo."
O major teria dito ao nobre que todos sabiam ser costume de Dom Pedro dar aos cavalos que ganhava o nome de seu propriet�rio anterior. "Mas, enfatizou o homem, nenhum Marcondes at� aquela data tinha sido cavalgado por ningu�m. Ent�o ele daria, sim, o cavalo ao pr�ncipe, desde que ele escolhesse outro nome para o animal", conta o historiador.
Em Pindamonhangaba, dom Pedro se hospedou no sobrado do monsenhor Ign�cio Marcondes de Oliveira Cabral, irm�o do ent�o capit�o-mor. A resid�ncia n�o existe mais. Ali, foram tantos os que se ofereceram a integrar a comitiva, na chamada guarda de honra do pr�ncipe, que h� um monumento na pra�a central da cidade em alus�o a este fato. E a igreja de S�o Jos� guarda um pante�o onde est�o enterrados todos os pindamonhangabenses que integraram a guarda do nobre.

No dia 21 de agosto, Dom Pedro chegou a Taubat�, onde seria recebido na casa do c�nego Ant�nio Moreira da Costa – constru��o esta que n�o existe mais. Na cidade, visitou o convento de Santa Clara e a Igreja do Pilar.
A parada seguinte seria Jacare�. Na �poca, havia uma balsa que ligava os dois munic�pios, em travessia pelo Rio Para�ba.
"E ent�o h� uma outra anedota: a de que Dom Pedro, impaciente, n�o quis esperar a balsa e atravessou o rio a cavalo. Do outro lado, uma multid�o o esperava, e ele, Pedro, sem pestanejar, saiu procurando algu�m que usasse cal�as do mesmo tamanho que as dele, para propor a troca", relata o pesquisador Rezzutti.
Conforme esses relatos, o "m�rito" de ceder as cal�as ao futuro imperador teria ficado com um jovem pindamonhangabense, depois integrante da guarda de honra, chamado Adriano Gomes Vieira.
Em Jacare�, Dom Pedro ficou hospedado na casa do capit�o-mor Cl�udio Jos� Machado.
Em Mogi das Cruzes, onde a comitiva chegou em 23 de agosto, Dom Pedro hospedou-se na casa do capit�o-mor Francisco de Mello e assistiu � missa na ent�o Igreja de Sant'Ana, hoje catedral hom�nima.
Penha de Fran�a, hoje parte do munic�pio de S�o Paulo, foi a �ltima parada antes da capital paulista. Dom Pedro dormiu ali uma noite, do dia 24 para o dia 25, e assistiu a outra missa na igreja matriz.
O grupo chegou a S�o Paulo na manh� do dia 25 de agosto. Houve uma entrada oficial. Dom Pedro foi recebido por vereadores, religiosos e a popula��o em frente � Igreja do Carmo. De acordo com Rezzutti, a Igreja da Ordem Terceira � a �nica coisa que restou dessa passagem do pr�ncipe pelo local.
Foram dias de muito trabalho at� o 7 de setembro hist�rico. Na capital paulista, Dom Pedro convocou novas elei��es e governou a prov�ncia interinamente, recompondo o poder que andava amea�ado.
Princesa Leopoldina
Quando Dom Pedro sa�a em viagens, quem assumia o comando do Pa�s era a princesa – depois imperatriz – Leopoldina. Que, conforme o pr�prio Rezzutti detalha no livro D. Leopoldina: A Hist�ria N�o Contada - A Mulher Que Arquitetou a Independ�ncia do Brasil, biografia da primeira mulher de dom Pedro, n�o tinha nada da figura caricata e passiva que acabou sendo eternizada nos folhetins.
Justamente enquanto Dom Pedro viajava pelo Vale do Para�ba, Leopoldina arquitetava a separa��o de Portugal. Em agosto de 1822, ela escreveu uma carta para sua irm� na qual dizia que "o Brasil � grande demais, poderoso e, conhecendo sua for�a pol�tica, incapaz de ser col�nia de uma corte pequena".
No mesmo per�odo, remeteu tamb�m uma mensagem ao seu pai, na qual afirmou que "o nobre esp�rito do povo brasileiro se mostrou de todas as formas poss�veis e seria a maior ingratid�o e erro pol�tico crass�ssimo se nosso empenho n�o fosse manter e fomentar a sensata liberdade e consci�ncia de for�a e grandeza deste lindo e pr�spero reino, que nunca poder� ser subjugado pela Europa". Na correspond�ncia, a princesa chamou Portugal de "p�tria m�e infiel".
"Leopoldina foi importante e brilhante no processo de Independ�ncia do Brasil. Fosse ao assumir o papel da reg�ncia enquanto o pr�ncipe apaziguava os �nimos dos brasileiros, fosse na negocia��o para a separa��o de Portugal", acredita Almeida.
"Nas poucas cartas que temos deste momento s�o evidentes a vontade e participa��o desta mulher que, juntamente com Dom Pedro I, tinham se unido no objetivo de separar o Brasil."