Em 2023, o Brasil completa 201 anos da Independ�ncia (foto: Marcello Casal Jr/Ag�ncia Brasil
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Nesta quinta-feira (7/9), o Brasil completa 201 anos da Independ�ncia. A data, de acordo com historiadoras entrevistadas pela Ag�ncia Brasil, � um momento de reflex�o sobre a hist�ria do pa�s, quem ainda segue exclu�do dessa hist�ria e o que � preciso fazer para reduzir as desigualdades. Depois de dois s�culos, � poss�vel dizer que o Brasil � independente? Como devem ser as comemora��es dessa data para que sejam mais plurais e diversas?
“� uma revisita��o contundente que precisa ser feita. Durante muito tempo, a perspectiva cr�tica ficava circunscrita a uma cr�tica, por exemplo � figura de Dom Pedro I, ao fato de ele passar mal ou n�o. Isso � o de menos. Falar s� sobre Dom Pedro n�o resolve o problema da independ�ncia do Brasil de uma perspectiva mais cr�tica”, diz a historiadora Yna� Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Essa hist�ria � contada no livro 1822, de Laurentino Gomes. Dom Pedro I estaria com dor de barriga devido, possivelmente, � ingest�o de �gua contaminada ou algum alimento estragado. O grito da independ�ncia �s margens do Ipiranga, que inclusive � narrado no hino nacional brasileiro, teria sido apenas simb�lico.
“� preciso entender os outros sujeitos que participaram. Mulheres que lutaram nos campos de batalha nos diferentes lugares do Brasil, como as sociedades ind�genas na sua diversidade se articularam ou n�o ao processo de independ�ncia, a participa��o da popula��o negra. � preciso tomar a independ�ncia pelo que ela foi, um processo polif�nico”, acrescenta Lopes.
Os ind�genas e a Independ�ncia
Segundo a historiadora e professora Marize Guarani, uma das fundadoras da Associa��o Ind�gena Aldeia Maracan�, o 7 de setembro com a constitui��o de um pa�s �, na verdade, para os ind�genas, a consolida��o de um processo de exclus�o, silenciamento e genoc�dio, que vinha desde 1.500, com a chegada dos portugueses. Esse processo continua, segundo a historiadora, at� os dias de hoje.
Marize Guarani diz que o 7 de setembro para os ind�genas � a consolida��o de um processo de exclus�o, silenciamento e genoc�dio (foto: T�nia R�go/Ag�ncia Brasil)
“Todo esse per�odo vai ter uma nega��o dos povos ind�genas, vai-se construindo uma narrativa de que n�s n�o temos nada para oferecer, de que a gente n�o gosta de trabalho, de que � muita terra para pouco �ndio. Quando se fala do povo ind�gena fala-se que � selvagem, mas selvagem s� quer dizer aquele que vive na selva. E nem � mais assim. Hoje, 60% da popula��o ind�gena vive na cidade, ou seja, foi retirada de seus territ�rios e continuam sendo sistematicamente retiradas desse territ�rio ao longo de todo esse processo de hist�ria do Brasil”.
De acordo com o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), s�o 1.693.535 ind�genas no pa�s, o que representa 0,83% do total de habitantes. A estimativa � de que antes da chegada dos portugueses, eram mais de 1,4 mil povos e milh�es de habitantes.
Ao longo da hist�ria, segundo Marize Guarani, vai-se construindo uma narrativa de que os ind�genas s�o “avessos ao progresso”, e com isso, mais recentemente, na ditadura militar, entre 1964 e 1985, com a interioriza��o, vai-se expulsando os ind�genas de seus territ�rios. “Sempre uma narrativa que n�s �ramos a barreira para o progresso, porque olhavam a mata como algo que n�o era progresso. Mas me diz uma coisa: como voc� vai conseguir viver num mundo sem as florestas? Floresta � a maior usina de chuva”.
O modo de viver tradicional ind�gena traz uma oposi��o ao sistema capitalista no qual estamos inseridos, por isso, esse sistema � t�o perseguido, conforme defende Guarani. “A terra era produzida comunalmente, da terra era retirado o seu sustento, de forma comum, comunal. Todos, coletivamente, plantavam, colhiam, produziam coletivamente, n�o tinha ningu�m que era mais do que o outro, n�o existia ningu�m que comia mais do que o outro, e isso continua existindo dentro dos aldeamentos. Eu sempre fico pensando que o estado sempre negou toda forma coletiva, toda forma de produ��o de pensamento, de religiosidade nossa exatamente porque elas entram em choque com essa sociedade capitalista”,.
Comemora��es e manifesta��es
A historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que as comemora��es da Independ�ncia fazem parte de uma esp�cie de ritual para constituir o estado nacional. “Ele precisa ter um corpo administrativo, precisa ter um corpo militar e precisa ter uma hist�ria do seu nascimento, precisa ter uma mitologia de constitui��o do estado nacional. Toda na��o liberal nascida nos s�culos 18 e 19 constroem um mito sobre sua funda��o”.
No entanto, ainda segundo Wlamyra Albuquerque, os desfiles n�o s�o a �nica forma de comemora��o. “� importante olhar para as comemora��es de 2 de julho, a gente vai ver que existe forma de civismo popular em que essa for�a b�lica, essa for�a militar, n�o ocupa a centralidade das comemora��es. Eu acho que precisa ser assumido pelo estado brasileiro o plano de celebra��o desse pertencimento nacional, de celebra��o da nossa brasilidade, em que essas institui��es militares n�o estejam no centro das festas, e a� � preciso repensar esse formato de 7 de setembro com participa��o popular, [olhando para as] demandas das popula��es ind�genas, demandas das popula��es negras e pobres, das popula��es quilombolas, que elas venham para o centro desse processo de constitui��o dessa singularidade que � o Brasil”.
O dia 2 de julho, citado por Wlamyra Albuquerque, � a comemora��o da Independ�ncia na Bahia. A data marca a expuls�o, feita em 1823, das tropas portuguesas que ainda resistiam � independ�ncia declarada no ano anterior, em um movimento que contou com a participa��o popular. Qualquer autoridade lusitana remanescente foi extirpada do poder. A celebra��o tem um car�ter mais popular, por exemplo, que os desfiles militares.
Outra a��o importante na data � o Grito dos Exclu�dos e Exclu�das, manifesta��o que re�ne, desde 1995, movimentos sociais e grupos que n�o se sentem representados pelos desfiles ou pela hist�ria hegem�nica da Independ�ncia do Brasil. A proposta nasceu em uma reuni�o de avalia��o do processo da 2ª Semana Social Brasileira, promovida pela Confer�ncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O dia 7 de setembro foi escolhido para a realiza��o do Grito com a inten��o de fazer um contraponto ao Grito da Independ�ncia, proclamado pelo pr�ncipe D. Pedro I, em 1822.
O Grito dos Exclu�dos e Exclu�das tem como objetivo “levar �s ruas e pra�as, os gritos ocultos e sufocados, silenciosos e silenciados, que emergem dos campos, por�es e periferias da sociedade. Trata-se de revelar, � luz do dia e diante da opini�o p�blica, as dores e sofrimentos que governos e autoridades tendem a varrer para debaixo do tapete. Trazer � superf�cie os males e correntes profundas que atormentam o dia-a-dia da popula��o de baixa renda”, conforme o site do movimento.
O Brasil � independente?
Apesar das cr�ticas, segundo Wlamyra Albuquerque, a data � importante para que seja feita uma reflex�o. “Parar para pensar e discutir o que somos para n�s mesmos e em rela��o ao mundo. Essa � uma quest�o que vai estar sempre aberta: o que � independ�ncia? O que � liberdade? O que � uma na��o? Essas quest�es v�o estar sempre abertas porque a hist�ria � din�mica e a gente vive uma configura��o global muito diferente e in�dita do que todos n�s conhecemos. As outras gera��es n�o viveram uma sociedade em que a mudan�a que os blocos pol�ticos econ�micos se deem de maneira t�o acentuada”, diz.
A historiadora Adriana Barreto, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) complementa: “Todas essas celebra��es s�o inven��es culturais, elaboradas conscientemente ao longo do tempo”, diz e acrescenta: “O que quero dizer com isso? Que do mesmo modo que essas celebra��es s�o inventadas para atender a certas demandas da sociedade, em uma determinada �poca, elas tamb�m podem ser substitu�das e reinventadas caso grande parte da popula��o n�o se veja mais representada nelas”.
Perguntadas se somos uma na��o independente, as historiadoras divergem. Marize Guarani diz que ainda estamos distantes. Ela ressalta o potencial produtivo e criativo do Brasil e o quanto a na��o acaba perdendo quando busca apenas se inserir em uma ordem capitalista que n�o visa o seu desenvolvimento. “Eu digo que esse processo de invas�o e coloniza��o continua at� hoje. A gente fala de independ�ncia, mas que independ�ncia a gente est� falando? A gente depende das bolsas de valores mundiais, a gente depende. Querem que o Brasil seja um pa�s de monocultura, destru�ram as terras deles e n�o querem destruir mais, ent�o, destroem a do outro”, diz.
J� Barreto � categ�rica, o Brasil � independente: “Claro, totalmente! Inclusive, acredito que assumir essa nossa condi��o seja um passo crucial para – tal como acontece com as pessoas, individualmente – olharmos sem romantiza��es o passado. N�o podemos virar apressadamente as p�ginas da hist�ria. Porque esse passado, em toda sua complexidade, nos constitui como sociedade e conhec�-lo bem, identificando nomes e a��es de pessoas e grupos, � um passo chave para – por meio de responsabiliza��es – termos a chance de efetivamente construirmos um futuro”.