
No passado, os ind�genas Xokleng, de Santa Catarina, foram duramente combatidos e quase dizimados por "bugreiros", como eram conhecidos no Sul do Brasil milicianos contratados para atacar ind�genas (ou "bugres", termo racista que vigorava na regi�o naquela �poca).
D�cadas depois, o caso dos Xokleng � foi cerne de um dos julgamentos mais importantes da hist�ria recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que definiu o futuro das demarca��es de terras ind�genas no Brasil.
Por 9 votos a 2, o Supremo rejeitou a tese do marco temporal, ou seja, a ideia de que a demarca��o de terras ind�genas s� pode ocorrer em comunidades que ocupavam esses locais quando a Constitui��o atual foi promulgada, em 5 de outubro de 1988.
Os ind�genas protestavam contra essa tese porque muitas comunidades foram for�adas a sair das terras ocupadas tradicionalmente e n�o tinham a posse delas em 1988.
A decis�o foi tomada em um processo em que o Estado de Santa Catarina contestava a demarca��o de terra para o povo Xokleng, mas tem repercuss�o geral, ou seja, vale para centenas de casos similares.
Embora a decis�o sobre o assunto pelo STF seja uma grande vit�ria para os ind�genas, n�o � o fim da amea�a, afirmou � BBC Kl�ber Karipuna, coordenador executivo da Apib (Articula��o dos Povos Ind�genas do Brasil).
Isso porque � poss�vel que o Congresso aprove leis novamente trazendo a tese do marco temporal. Em 30 de maio, a C�mara dos Deputados aprovou um projeto de lei, que agora tramita no Senado, e que estabele limite de data para ocupa��o.No Congresso, o estabelecimento do marco temporal � uma antiga demanda da bancada ruralista e do Centr�o, bloco informal de partidos sem linha ideol�gica clara, mas que compartilha valores conservadores. Na C�mara, foram 283 votos favor�veis ao projeto e 155 contr�rios.


Os Xokleng
Um relato do livro Os �ndios Xokleng - Mem�ria Visual, publicado em 1997 pelo antrop�logo Silvio Coelho dos Santos, ilustra os perigos enfrentados pelos Xokleng d�cadas atr�s.
As tropas de “bugreiros”, narra a obra, se deslocavam pelas trilhas � noite, em sil�ncio. Os homens, entre 8 e 15, evitavam at� fumar para n�o chamar a aten��o.
Ao localizar um acampamento, atacavam de surpresa.
"Primeiro, disparavam-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do fac�o", relatou Ireno Pinheiro, que era um “bugreiro”, sobre as expedi��es que realizava no interior de Santa Catarina at� os anos 1930 para exterminar ind�genas a mando de autoridades locais.
"O corpo � que nem bananeira, corta macio", prossegue o bugreiro na descri��o dos ataques. "Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha pre�o. �s vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crian�as. Tinha que matar todos. Se n�o, algum sobrevivente fazia vingan�a", completou.
Poucas etnias foram t�o combatidas pelos “bugreiros” quanto os Xokleng, de Santa Catarina.

Em entrevista � BBC News Brasil em 2021, Bras�lio Pripra, de 63 anos e uma das principais lideran�as Xokleng, chorou ao falar de um massacre ocorrido em 1904 contra seus antepassados.
"As crian�as foram jogadas para cima e espetadas com punhal. Naquele dia, 244 ind�genas foram covardemente mortos pelo Estado", afirmou.
O epis�dio foi descrito no jornal j� extinto Novidades, de Blumenau, citado em artigo do jurista Flamariom Santos Schieffelbein na revista eletr�nica argentina Persona, em 2009.
"Os inimigos n�o pouparam vida nenhuma; depois de terem iniciado a sua obra com balas, a finalizaram com facas. Nem se comoveram com os gemidos e gritos das crian�as que estavam agarradas ao corpo prostrado das m�es. Foi tudo massacrado", relata o jornal.
A presen�a dos Xokleng era vista como um entrave � coloniza��o europeia da regi�o. Eram comuns relatos de furtos ou ataques de ind�genas a trabalhadores que avan�avam sobre seu territ�rio tradicional.
Os Xokleng perderam dois ter�os de seus membros no s�culo passado. Posteriormente, essa popula��o voltou a crescer e a etnia atualmente soma cerca de 2,3 mil integrantes.
O marco temporal

Agora, o STF decidiu que Terra Ind�gena Ibirama La-Kl�n� — habitada pelos Xokleng e por outros dois povos, os Kaingang e os Guarani — deve incorporar ou �reas pleiteadas pelo governo de Santa Catarina e pelos ocupantes de propriedades rurais.
Isso porque o Estado argumentava que os territ�rios n�o poderiam ser demarcados j� que n�o estavam na posse dos ind�genas em 1988.
A ideia de marco temporal faz parte do l�xico ruralista desde pelo menos 2009, quando o ent�o ministro do STF Ayres Britto prop�s sua ado��o ao julgar um caso sobre a demarca��o da Terra Ind�gena Raposa Serra do Sol. Naquela ocasi�o, o tribunal deu vit�rias aos ind�genas porque eles estavam na regi�o em 1988 (ano da promulga��o da Constitui��o) e usou o termo "marco temporal".
Os ind�genas, por outro lado, sempre foram contr�rios � aplica��o do marco temporal, pois dizem que muitas comunidades foram expulsas de seus territ�rios originais antes de 1988.
Foi o argumento usado pelos Xokleng no julgamento no STF: eles afirmam que d�cadas de persegui��es e matan�as for�aram o grupo a sair do territ�rio que hoje tentam retomar.
"N�o t�nhamos fronteiras, and�vamos por todo aquele espa�o. Mas �ramos tutelados, n�o t�nhamos como responder por n�s. Mal sab�amos falar portugu�s, imagine nos defender", disse � BBC News Brasil Ana Patt�, jovem lideran�a Xokleng integrante da Associa��o dos Povos Ind�genas do Brasil (Apib), em junho de 2021.
Patt� afirmou que o territ�rio em disputa era usado pelos Xokleng para a ca�a, pesca e coleta de frutos, especialmente o pinh�o. A Terra Ind�gena Ibirama La-Kl�n� foi demarcada em 1996 e, em 2003, mais que triplicou de tamanho, passando de 15 mil para 37 mil hectares.
A �rea que estava em disputa integra a parte incorporada em 2003 e est� parcialmente ocupada por planta��es de fumo — atividade que, segundo Patt�, fez o solo e os rios da regi�o se contaminarem com agrot�xicos.
Segundo Patt�, a �rea ser� reflorestada, o que trar� benef�cios n�o s� para os Xokleng mas para todos que dependem dos rios que cruzam aquelas terras.
O governo de Santa Catarina afirmava que essa �rea foi vendida a propriet�rios rurais no fim do s�culo 19. Pol�ticos ruralistas catarinenses apoiavam a posi��o do governo estadual.
Em 2008, os ent�o deputados federais Valdir Colatto e Jo�o Matos, ambos do MDB, elaboraram um decreto legislativo anulando a amplia��o da terra ind�gena. Eles afirmaram que, na �rea englobada pela amplia��o, havia 457 pequenas propriedades agr�colas, com m�dia de 15 hectares cada.
"Nunca houve, e nem h�, crit�rios seguros para se demarcar �reas ind�genas, ficando a sociedade � merc� do entendimento pessoal do antrop�logo que se encontra fazendo o trabalho num determinado momento", argumentaram os deputados ao justificar o decreto.
O Estado de Santa Catarina tamb�m disputava com os Xokleng 3.800 hectares onde h� sobreposi��o entre a terra ind�gena e reservas biol�gicas estaduais.
Agora a Justi�a deu vit�ria para o povo ind�gena.

Em 2019, o STF havia decidido que o julgamento sobre a Terra Ind�gena Ibirama La-Kl�n� tem repercuss�o geral.
Com a Corte contra a tese do marco temporal, o governo federal em tese ser� obrigado a retomar os processos de demarca��o que foram travados com base nesse princ�pio.
Dados da Funai (Funda��o Nacional do �ndio) apontam que h� cerca de 300 processos de demarca��o de terras ainda n�o conclu�dos.
Em muitos desses casos, os ind�genas reclamam territ�rios de onde dizem ter sido expulsos antes de 1988. A rejei��o do marco temporal faz com que os processos possam avan�ar, mas n�o garante a demarca��o, que � analisada caso a caso e tem diversas exig�ncias.
H� ainda muitas demandas por demarca��o que nem sequer foram analisadas pelo governo — o Conselho Indigenista Mission�rio (Cimi), bra�o da Igreja Cat�lica que atua em prol dos povos ind�genas, contava com 537 casos desse tipo em junho de 2021.

Vota��o no Congresso
Apesar da decis�o do STF, ainda h� a possibilidade de aprova��o de uma lei sobre marco temporal pelo Congresso.
A aprova��o na C�mara em junho causou revolta entre representantes de povos ind�genas, como a Articula��o dos Povos Ind�genas no Brasil, que protestaram na pra�a dos Tr�s Poderes e no Sal�o Verde da C�mara.
Antes da vota��o, o relator do projeto, deputado Arthur Oliveira Maia (Uni�o-BA), defendeu que o texto traria mais seguran�a jur�dica para propriet�rios rurais e pediu que o STF deixasse de julgar o tema, uma vez que ele estava sendo deliberado no Legislativo.
Al�m da quest�o do marco temporal, o texto aprovado na C�mara prev� a permiss�o para cultivo de transg�nicos por ind�genas e a proibi��o da amplia��o de terras ind�genas j� demarcadas.
O projeto de lei votado na C�mara � originalmente de 2007. Inicialmente, ele tinha o objetivo de transferir do Executivo para o Legislativo o poder de demarcar terras ind�genas — mas, desde ent�o, ele recebeu v�rias modifica��es, por meio de mais de 10 apensados e de um texto substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia, relator da mat�ria.
O texto na C�mara teve um requerimento de urg�ncia aprovado e avan�ou rapidamente. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que a rapidez ocorreu em raz�o do julgamento no STF.
“Tentamos um acordo para que a gente n�o chegasse a este momento, mas o fato � que o Supremo vai julgar no dia 7 e este Congresso precisa demonstrar que est� tratando a mat�ria com responsabilidade em cima dos marcos temporais que foram acertados na Raposa Serra do Sol. Qualquer coisa diferente daquilo vai causar inseguran�a jur�dica”, disse Lira, defendendo o projeto de lei e a possibilidade de que os ind�genas cultivem bens agr�colas em suas terras.
“N�s n�o temos nada contra povos origin�rios, nem o Congresso tem e n�o pode ser acusado disso. Agora, n�s estamos falando de 0,2% da popula��o brasileira em cima de 14% da �rea do pa�s", completou, segundo informa��es da Ag�ncia C�mara de Not�cias.
O texto agora tramita no Senado. Caso seja aprovado e n�o sofra veto do presidente, o mais provav�l � que o assunto volte ao STF, j� que a constitucionalidade da nova legisla��o pode ser contestada.