
Otac�lio Lage
Jornalista
Nos meus tempos de crian�a no interior de Minas, um senhor era chamado sempre para limpar a ch�cara da nossa propriedade, com muitas bananeiras, �rvores frut�feras e afins. Em toda jornada, que, �s vezes, durava 10 ou mais dias, ele aparecia no terreiro da casa da propriedade para pedir um naco bem grande de rapadura, para combater mais uma picada de escorpi�o que levara. Para ele, o doce era o ant�doto. Esse senso comum era bem difundido entre os trabalhadores bra�ais naquele cafund� – nunca soube da morte de algum deles por isso.
Mesmo nos dias de hoje, muitos jogadores, traquejados ou novos, fazem o sinal da cruz e quase sempre tocam depois o ch�o � beira do campo, para ent�o pisar no gramado. Esse gesto pode n�o significar nada para muitos, mas para alguns vale tanto quanto um gol, com base na f� para ser feliz no jogo. Um senso comum de gera��o a gera��o.
A pandemia do coronav�rus que ora o mundo enfrenta j� causou 250 mil mortes no planeta; no Brasil, n�mero de �bitos rompeu a barreira dos 5 mil, com mais de 80 em Minas (dados de 29/4). Mas h� quem diga que a doen�a � "inven��o dos chineses", uma "gripezinha" e que "basta" ter f� em Deus para enfrentar o mal.
O senso comum, pois, � um tipo de pensamento que n�o foi testado, verificado ou analisado cientificamente. Express�es comuns do cotidiano brasileiro: pronunciar o nome de Santa B�rbara em meio a uma tempestade com rel�mpagos; comer manga e tomar leite faz mal; andar descal�o em piso frio d� reumatismo; comer tarde da noite pode causar indigest�o; cal�ar o p� esquerdo do sapato primeiro d� azar, principalmente numa sexta-feira 13. Conhe�o muitos que n�o entram em casa com o p� esquerdo, tampouco passam debaixo de escada. Portanto, o senso comum se materializa a partir de um movimento de repeti��o cultural, estando correto ou n�o. Mas como confiar nesse tipo de "conhecimento" em detrimento da ci�ncia, como muita gente – inclusive homens p�blicos – est� fazendo ante o coronav�rus, embora a validade do senso comum quanto ao confinamento em casa tenha sua comprova��o?
O senso comum � fruto, claro, da opini�o, dada quase sempre em rodas de conversa, isso desde a Gr�cia Antiga. Mas adv�m da filosofia a maneira de contrapor esse conhecimento popular. Foi Antonio Gramsci, fil�sofo italiano, disseminador do anarquismo em seu pa�s, quem primeiro estudou e escreveu sobre o senso comum. Ele o descreveu como positivo, reconhecendo como um conhecimento popular, mas ressaltando que, para se chegar a um conhecimento mais elaborado, estruturado e seguro, seria necess�rio ir bem al�m. Muitos estudiosos afirmam que o senso comum � um bom ponto de arrancada, mas tamb�m defendem a ci�ncia para a obten��o de um conhecimento de maior confian�a e validade. Ou seja, senso comum e ci�ncia, mesmo se contrapondo em certas concep��es, apresentam complementaridade entre si.
Para o pai do positivismo, o pensador franc�s Auguste Comte, essa doutrina reconhece apenas ci�ncia como fonte de conhecimento verdadeiro. Essa concep��o exclui, segundo ele, a filosofia, a qual teria cedido o seu lugar aos modelos cient�ficos para a explica��o da realidade. Nestes dias bicudos em que pululam declara��es absurdas, como "a Terra � plana" e outras aberra��es, � preciso, sim, prestigiar a ci�ncia, sem menosprezar quem joga um pouco "para o santo de devo��o" quando toma o primeiro gole de pinga numa bodega caipira ou no bar da cidade grande.
Volto � minha inf�ncia no interior de Minas. Uma senhora amiga da minha m�e ia sempre � nossa propriedade catar lenha para usar em casa. Certa vez, debaixo de uma moita, ao puxar um galho seco, uma cobra venenosa despencou da �rvore e a picou na altura de um dos joelhos. Ela morreu, aos 89 anos, afirmando que, quando comia ovo, o local da picada do�a muito. Durante 40 anos ela repetiu isso, o suficiente para o fato virar uma verdade no lugar. Creio que a ci�ncia deva ter explica��o para isso. Um exemplo bem ilustrativo: boldo, planta que no passado j� era endeusada por nossos av�s, � comprovadamente estimulante da digest�o, sendo empregada hoje pela ci�ncia como medicinal – figura nas farm�cias naqueles tubinhos m�gicos para acudir o f�gado de quem exagera na gordura ou no �lcool.
O senso comum tem sua validade, principalmente em regi�es desassistidas de ci�ncia, seja no agreste nordestino, nas profundezas da Amaz�nia, nos grot�es de Minas ou nos corti�os e favelas dos grandes centros, mas � nelas que ele pouco poder� fazer ante esse v�rus letal. � preciso, pois, senhores homens p�blicos, de todas as esferas, que parem de desrespeitar as premissas cient�ficas. A hora � de uni�o nessa batalha que � de todos. Nada � mais viral num ser humano do que a soberba, que acaba desaguando num comportamento fanfarr�o e desatrelado da realidade.
