Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especializa��o em
direito tribut�rio da Faculdades Milton Campos,
ex-professor titular da UFMG e UFRJ
forma��o do monote�smo judaico � progressiva e dial�tica. Com Miles, tem-se a vis�o de Jav� como que o am�lgama de v�rios deuses do pante�o sem�tico, notadamente das deidades cananitas e babil�nias mais antigas: El, o Deus supremo; Baal, o Deus da guerra, do vulc�o e da fertilidade; Aser�, a deusa da sabedoria; Tiamat, a deidade maligna, serpentina, e assim por diante. O processo descrito por Miles – de resto estudado por outros historiadores da B�blia judaica – tem validade.
Entretanto, outros fatores devem ser considerados. N�o � desprez�vel a contribui��o eg�pcia monote�sta de Atom, �nica, que foi difundida a grupos de israelitas que estiveram no Sinai trabalhando, uns em obras civis e militares no Egito e, tamb�m, pastoreando em Medi�, sob a influ�ncia de Jetro e de seu genro Osarip ou Mois�s. Importam as ideias de Zoroastro, da velha P�rsia, que conferia ao opositor do Deus bom, �nico e eterno um advers�rio celeste que representava um princ�pio de distor��o e destrui��o da ordem c�smica e, igualmente, do mundo dos homens. Uma esp�cie de deidade aparentada a sat� no juda�smo (a sua presen�a no Livro de J� � inelut�vel).
A espiritualidade budista, xinto�sta, tao�sta, al�m do himalia, s� para exemplificar, n�o se incomoda com os deuses alheios e � extremamente tolerante. Com o monote�smo judaico, por raz�es de Estado e de um nacionalismo at� certo ponto desesperado e xen�fobo, havia uma extrema necessidade de afirmar o Deus de Israel em confronto quase b�lico contra os outros deuses cananeus. O monote�smo a� � militante e intolerante porque se assim n�o fosse logo se diluiria espiritualmente. Jav� � violento, a Tor� � violenta, os profetas s�o violentos. Isso n�o exclui da espiritualidade judaica a compaix�o, o amor, a retid�o, o anseio de justi�a e a santidade. Mas essas excelsas qualidades aparecem mais quando os judeus deixaram de ser um Estado para ser apenas um povo (mesclado, diga-se para, logo). Nos tempos m�ticos, Jav� � poder, gl�ria, viol�ncia e intoler�ncia.
Karen Armstrong – Armstrong, Karen. Uma hist�ria de Deus. Editora Schwarcz Ltda, S�o Paulo, 2008. Do original A history of God – The 4000-year quest of judaism, cristianity and islam. Tradu��o de Marcos Santarrita – discorre sobre esse processo dial�tico com extrema erudi��o e simplicidade e traceja linhas para bem compreendermos o Salmo 82, o ferrolho que desvenda o sincretismo judaico:
"(...). Parece que as sociedades mais primitivas, �s vezes, tinham as mulheres em mais alta conta que os homens. O prest�gio das grandes deusas na religi�o tradicional reflete a venera��o do feminino. Com o surgimento das cidades, por�m, qualidades mais masculinas, como destreza marcial e for�a f�sica, sobrepuseram-se �s caracter�sticas femininas. Da� em diante, as mulheres foram marginalizadas e se tornaram cidad�s de segunda classe nas novas civiliza��es do oikumene. Sua posi��o era particularmente inferior na Gr�cia, por exemplo – um fato que os ocidentais deviam lembrar quando clamam contra as atitudes patriarcais do Oriente. O ideal democr�tico n�o se estendia �s atenienses, que viviam reclusas e eram desprezadas como seres inferiores. A sociedade israelita tamb�m assumia um tom mais masculino. Nos primeiros tempos, as mulheres eram vigorosas e claramente se consideravam iguais aos maridos. Algumas, como D�bora, comandaram ex�rcitos em combate. Os israelitas continuavam festejando mulheres heroicas como Judite e Ester, mas, depois que Jav� venceu as outras divindades de Cana� e do Oriente M�dio e se tornou o �nico Deus, os homens prevaleceram em sua religi�o. O culto das deusas desapareceu, sinalizando uma transforma��o cultural caracter�stica do mundo rec�m-civilizado.
Veremos que a vit�ria de Jav� foi dif�cil. Envolveu tens�o, viol�ncia e confronto, e sugere que a nova religi�o do Deus �nico n�o se consolidou com tanta facilidade entre os israelitas quanto o budismo e o tao�smo entre os povos do continente. Jav� n�o parecia capaz de transcender as velhas divindades de maneira natural e pac�fica. Teve de expuls�-las � for�a. Assim, no Salmo 82, n�s o vemos pleiteando a lideran�a da Assembleia Divina, que desempenhara um papel t�o importante no mito babil�nico a ass�rio e cananeu:
Jav� toma seu lugar no Conselho de El para proferir julgamentos entre os deuses. 'N�o mais arremedeis a justi�a. N�o mais favore�ais os maus! Fazei justi�a ao fraco e ao �rf�o, sede justos com o aflito e o desvalido, salvai o fraco e o necessitado, tirai-os das garras dos maus!' ' Ignorantes e insens�veis, eles prosseguem cegamente, solapando os fundamentos da sociedade humana. Eu disse: 'V�s tamb�m sois deuses, filhos de El Elyon, todos v�s; no entanto, morrereis como homens; como homem, deuses, caireis'.
Com isso, estamos dando f�rias a coment�rios pol�ticos e inaugurando debates sociol�gicos sobre "religi�es reveladas" por interlocutores privilegiados (Mois�s e Maom�).