Roberto Carvalho
Ex-vice-prefeito de BH
J� dizia o poeta: a minha cidade � aquela que n�o conhece cercas, arames, portas e janelas. � o lugar das gentes, do encontro, da partilha. N�o � a minha; n�o � a sua; � a nossa cidade.
Como n�o vivemos apenas sonhos, no mundo real trabalhamos, vamos � padaria, ao supermercado, ao botequim, ao cinema, ao parque, ao teatro, ao futebol, � igreja, e precisamos debater a cidade que queremos.
BH foi uma das primeiras cidades do Brasil que nasceram planejadas para ser um modelo de solu��es entre as capitais. Largas avenidas, ruas, bairros constru�dos para ser refer�ncia de mobilidade e conviv�ncia. Bastaram menos de 50 anos para que todo o planejamento se mostrasse pequeno. Pensada para ocupar os limites da Avenida do Contorno, estendeu-se para muito al�m e foi rompendo sem nenhum planejamento, controle e organiza��o.
O que era para ser um exemplo de cidade foi se tornando um emaranhado de problemas. Quanto mais nossa capital crescia, mais os sonhos iam virando pesadelo. De Cidade Jardim, transformamo-nos em cidade do concreto, do crescimento desordenado, da falta de estrutura, de saneamento prec�rio, transporte p�blico ineficiente. Transtornos comuns nas grandes cidades brasileiras e de todo mundo, o que deixa as metr�poles e seus desafios como o grande tema do s�culo 21.

O mundo se debru�ou em como resolver seus conflitos. Barcelona, por exemplo, usou grandes eventos, como as Olimp�adas (1992) e o F�rum Mundial de Cultura (2004), para se replanejar. V�rias outras recuperaram �reas antes degradadas ou segregadas pela sua antiga atividade (regi�es de f�bricas, portu�rias, ou ex�rbias), criando nelas locais de conv�vio multiculturais, onde foram instalados pr�dios p�blicos, resid�ncias, pra�as, centros esportivos e hot�is, garantindo assim o fluxo, al�m de investir em infraestrutura, mobilidade, saneamento, efici�ncia e qualifica��o da popula��o.
As grandes urbaniza��es inseriram novamente a Europa no panorama cultural mundial ap�s a hegemonia americana p�s-Segunda Guerra. A vontade de transformar cada cidade em um novo lugar da cultura mundial, seja Paris, Londres ou Berlim, � a marca das urbaniza��es europeias, que se completam com objetos-espet�culos urbanos; ou seja, novos pr�dios, parques e espa�os p�blicos criados pelos mais renomados arquitetos.
Mas tal planejamento foi pensado para uma popula��o que n�o crescia e que vinha envelhecendo, diferentemente do que ocorre na �sia e na Am�rica Latina, onde o crescimento populacional � quase um descontrole. Na �sia, locais como Xangai, na China, Hong Kong, a japonesa T�quio – a primeira a despontar – e Seul, na Coreia do Sul, s�o exemplos de cidades do “capitalismo tardio”, com suas taxas de crescimento populacional e urbano assustadoras para qualquer metr�pole ocidental. Convivem, por�m, o que h� de mais avan�ado tecnologicamente com culturas que at� s�culos atr�s eram feudais e que, apesar de grandes investimentos estruturais recentes em mobilidade e saneamento, seguem com um grande problema: o ex�guo territ�rio. E tanto as cidades da Europa como as asi�ticas lidam com quest�es sociais complexas, com inclu�dos e exclu�dos convivendo com os novos sistemas urbanos, como ocorre em Berlim ap�s a unifica��o das duas Alemanhas, Paris e sua urbe de imigrantes, e Barcelona com seus bairros fora do eixo das urbaniza��es.
Na Am�rica Latina, quest�es sociais s�o o grande agravante do crescimento desordenado de suas metr�poles. A favela e o celular convivem lado a lado sem cerim�nia; a pobreza est� sempre a um passo dos condom�nios fechados e dos shoppings centers; e a fome esbarra nos (hiper) supermercados 24 horas. As cidades latino-americanas tamb�m crescem a passos r�pidos em busca de novas levas para a expans�o imobili�ria, enquanto os exclu�dos do sistema ainda se amontoam nas favelas assoladas pelo tr�fico de drogas. A influ�ncia cultural e tecnol�gica do Primeiro Mundo ainda se faz presente e mesmo necess�ria, enquanto problemas terceiro-mundistas ficam sem solu��o. Na globaliza��o, “ningu�m pode ficar para tr�s”, independentemente de quanto isso custe.
E Belo Horizonte, obviamente, faz parte deste contexto. A Cidade Jardim cresceu e, como um polvo, levou seus tent�culos at� as cidades do entorno; a conurba��o desordenada criou uma grande metr�pole de quase 5 milh�es de habitantes, que sofre com as consequ�ncias de s� ter come�ado a pensar em planejamento urbano ap�s 1996, quando seu primeiro Plano Diretor foi aprovado. O poder p�blico, entre 1992 e 2008, apostou no modelo de administra��o participativa, em que as grandes causas de interesse da cidade eram decididas coletivamente com a popula��o, e todos os setores faziam parte do esfor�o de transformar o munic�pio.
Por�m, nos �ltimos 14 anos, a cidade vem sofrendo um grande retrocesso com um “novo-velho” modelo administrativo do poder local e com a agravante falta da presen�a do governo estadual, que n�o assumiu o seu papel fundamental de propulsor do desenvolvimento regional. A cidade perdeu sua capacidade produtiva e atra��o de novas voca��es. Como consequ�ncia, vemos a falta de investimento em projetos de estrutura, com mobilidade urbana e humana, como Anel Rodovi�rio, Anel Sul, Norte e Leste, metr�, modais de transportes eficientes, que possibilitem a atra��o de investidores que queiram se instalar aqui, produzir, gerar empregos e divisas para a cidade e regi�o. Com isso, temos o inconsequente esvaziamento do Hipercentro, a interioriza��o da vida, com o surgimento de lugares que se voltam para si e menos para a cidade, ancorados na privatiza��o de espa�os p�blicos de interesse social, seja para a cria��o de espa�os multiculturais, de produ��o ou saber.
A proposital pol�tica de esvaziamento dos espa�os p�blicos e a cria��o de locais climatizados e “protegidos” artificializam os logradouros coletivos ao tentar traduzi-los como parte de sua ambienta��o interna. Shoppings centers, museus e hipermercados s�o os novos espa�os do conv�vio e est�o ligados intrinsecamente � l�gica do consumo, que escondem uma cidade cada vez mais suja, violenta, desordenada, v�tima do retrocesso das pol�ticas p�blicas de desenvolvimento humano com todos os acessos que isso implica, como moradia, transporte, educa��o, sa�de, cultura e lazer de qualidade.
BH parou no tempo e no espa�o, e precisa reagir, e agora ainda vive o pesadelo da amea�a real de perder seu s�mbolo, seu patrim�nio ambiental: a Serra do Curral, numa viol�ncia � sua cultura, � sua qualidade de vida, que tende a chegar � ambi�ncia des�rtica com a destrui��o de nossas montanhas pelo completo descaso do governador do estado com nossa cidade, nossa gente e sua gan�ncia de produ��o de commodities � custa da trag�dia causada pela minera��o sem controle em Minas. N�o h� como assistirmos ao descaso com todos e com o nosso lugar. � preciso que retomemos as r�deas da cidade que queremos; mobilizar todos – cadeia produtiva, popula��o, poder p�blico – num esfor�o de trazermos de volta a Cidade Jardim moderna e de vanguarda para o s�culo 21, com a nostalgia na medida certa por um lugar agrad�vel e justo para se morar.
