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Estado de Minas

A for�a da ancestralidade

Felizmente, muitos dos nossos irm�os afrodescendentes j� perceberam que, agora que o sobrenome � seu, podem fazer dele um motivo de orgulho e n�o de dor


13/05/2023 04:00



Chico Fonseca
Escritor e arquiteto, autor do livro “Amores, Marias, Mar�s”

Chegamos a Vila Verde no final da tarde. Era m�s de abril, final dos anos 80. Fazia um friozinho gostoso. Depois de um dia inteiro dirigindo desde Lisboa, finalmente est�vamos perto do nosso destino. No hotel, falei com a gerente sobre o motivo da nossa viagem: busca pela ancestralidade.

– E qual � a sua fam�lia? – perguntou-me a mo�a, muito educada.

– Fonseca. Tenho aqui uma lista com os nomes dos irm�os do meu av�.

– Deixe-me v�ire, pediu-me, modulando a voz em delicioso sotaque de fado.

Conclu�mos que o av� dela era irm�o do meu av�, ambos j� falecidos. Apenas meia hora nos separava das nossas origens. N�o deu para esperar o dia seguinte. Eu, minha mulher, minha irm� e meu cunhado deixamos o cansa�o de lado e fomos assim mesmo, j� come�ando a escurecer.

Na Freguesia de Pa��, entramos no primeiro bar, falamos sobre o motivo da nossa viagem e o nome da fam�lia. Um homem que estava ali perto ouviu nossa conversa e veio at� n�s. Era o marido de uma prima do meu pai. A partir da� foi tudo festa e emo��o. Para n�s e para eles. Tinham at� fotos nossas, que a minha tia havia enviado nas suas correspond�ncias.

Conhecermos v�rios parentes, estivemos no quarto onde o meu av� nasceu, em maio de 1888, m�s e ano da Aboli��o, por coincid�ncia. Tiramos fotos em frente � igrejinha onde ele foi batizado e onde tamb�m se casou com a minha av�.

Atravessamos o Atl�ntico, rodamos v�rios quil�metros. Quantos de n�s j� fizemos aventura semelhante? � a for�a da ancestralidade que nos move e nos faz sentir orgulho de sobrenomes, que muitas vezes s�o comuns, como o nosso. Mas � nosso, parte de uma cadeia de afetividades bem definida na linha do tempo. S�o os la�os de fam�lia, bem apertados, bem identificados.

Tempos depois, j� no Rio de Janeiro, li no jornal um artigo do Nei Lopes, compositor e estudioso das culturas africanas, em que ele observava que os afrodescendentes brasileiros n�o t�m sobrenomes africanos, mas portugueses. � que os escravizados acabavam sendo identificados pelos nomes dos seus senhores, como um certificado de propriedade. E os seus descendentes t�m que carregar esses sobrenomes pela vida afora. Como � que eu nunca tinha pensado nisso antes?

Os negros eram capturados em regi�es diversas da �frica, com culturas, religi�es e l�nguas diferentes, mas quando chegavam aqui viravam uma coisa s�: m�o de obra, sem passado, sem futuro, sem hist�ria. Misturados, apartados das suas fam�lias, vendidos separadamente dos filhos, mulheres, maridos, amigos.

Os seus nomes de origem eram trocados por outros, muitas vezes com requintes de crueldade, usando o mesmo nome do traficante que os vendeu.

Lembrei-me da minha viagem a Portugal. Talvez t�o sofrido quanto a perda da liberdade seja a priva��o da ancestralidade.

Felizmente, muitos dos nossos irm�os afrodescendentes j� perceberam que, agora que o sobrenome � seu, podem, com sua dignidade, fazer dele um motivo de orgulho e n�o de dor. Honrar esse sobrenome ser� uma homenagem aos seus antepassados e n�o aos senhores deles.

Conhecer um pouco da hist�ria ainda � o melhor caminho para compreender, respeitar e exercitar a empatia em rela��o aos nossos irm�os afrodescendentes.


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