
Em seis de agosto de 1945, uma bomba chamada “Little boy” cai sobre Hiroshima. Num minuto de explos�o morrem 60 mil pessoas. A cat�strofe at�mica deveria entrar no rol das barbaridades da hist�ria. Ainda � disseminada, por�m, como um instante que sela o fim da Segunda Guerra Mundial – e o pren�ncio de uma era de paz. Escrito em 1958, pouco mais de uma d�cada ap�s a explos�o, o roteiro de “Hiroshima meu amor” vibra numa perturbadora atualidade. Para criar o filme, o cineasta Alain Resnais convidou a escritora Marguerite Duras (1914-1996).
“Voc� n�o viu nada em Hiroshima. Nada”, diz o amante japon�s depois da transa, com os corpos suados. Esse bord�o se repete ao longo do roteiro, e instiga. Duras, portanto, evita lam�rias sobre o horror de Hiroshima. Ela quer avivar as centelhas de uma paix�o entre um homem e um mulher. Discretamente, ela nos pergunta: o que � poss�vel olhar na experi�ncia de uma bomba at�mica?.
Ele � um engenheiro japon�s. Ela, uma atriz francesa. Os dois se encontram, vivem uma s�bita paix�o fora do casamento, longe de casa. No roteiro, a qu�mica at�mica de um encontro clandestino se instaura nos corpos, nas falas e, sobretudo, nas mem�rias passadas, no esquecimento que est� por vir.
A amante francesa participa de um document�rio sobre Hiroshima. Duras nos conduz a um filme que evoca outro filme, a uma bomba que explodiu outros sentimentos e a uma paix�o que n�o ter� futuro. Por isso, toda a marcante melopeia verbal, toda a beleza dos di�logos de “Hiroshima meu amor” toca em feridas recalcadas e mem�rias fugidias, com sentidos dif�ceis, escap�veis.
Pouco antes desse roteiro, Alain Resnais acabava de produzir o document�rio “Noite e neblina” (1956), que, a partir de filmagens diretas nos campos de concentra��o nazistas, evidenciava os crimes do Holocausto. Duras, por sua vez, realizava programas para a televis�o francesa e tinha publicado “Moderato cantabile”, um romance com uma prosa musical que experimenta nota��es de fala, num arranjo e contraponto, um pensamento num fluxo l�rico. “Hiroshima meu amor” pode ser visto como um document�rio de fic��o e um di�logo sobre o p�nico de uma paix�o imposs�vel – uma troca sobre traumas, uma conversa sobre perturba��es.
Da trama de “Hiroshima meu amor”, destaco a hist�ria que a protagonista viveu em Nevers, pequena cidade do interior da Fran�a, que tinha sido dominada pelos nazistas. Adolescente, e crescendo num contexto adverso, a protagonista se apaixonou por um soldado alem�o. Ela viveu um amor verdadeiro com um inimigo de guerra. Habilmente, Duras modula a descoberta do amor, de uma hist�ria �ntima para um ambiente b�lico.
Ela vive escondida numa cave, num por�o, para n�o ser molestada pelos franceses, que condenavam as paix�es com alem�es como atos de trai��o de guerra, sujeitos a puni��es. No fluxo da fala da amante francesa, no novelo das suas doloridas mem�rias sobre a Segunda Guerra Mundial e o dia da bomba de Hiroshima, ela remete � cabe�a tosada e raspada que marcou publicamente a humilha��o das mulheres europeias apaixonadas por soldados inimigos.
Cumplicidade
Para Duras, a guerra n�o � s� externa, concentrada nos horrores atribu�dos unicamente ao outro, ao japon�s, ao alem�o. Assim como numa paix�o, e numa hist�ria do amor, numa guerra todos s�o c�mplices. A guerra desperta atrocidades e recalques guardados em cada indiv�duo, em comunidades que hostilizam as diferen�as e singularidades dos seus cidad�os para voltar a viver numa hipot�tica paz, que � uma farsa.
Al�m dessa reflex�o, Duras adiciona um ponto de vista feminino sobre a guerra, de quem aguarda o fim da n�usea enquanto a cidade se silencia e fica � espera de not�cias lentas, movida por um cotidiano b�sico. A experi�ncia da guerra n�o se resume �s bombas lan�adas – ela tamb�m remete ao anseio de voltar a habitar a casa e a cidade de uma forma frugal, prazerosa.
“Hiroshima meu amor” tamb�m � exemplar na for�a do estilo liter�rio e cinematogr�fico de Duras. A edi��o da Relic�rio acerta ao publicar os ap�ndices, que remetem a imagens potentes e submersas que s� alcan�am a superf�cie depois de encantadas pelo fluxo verbal. Ali, latentes, encontramos cenas que Resnais inseriu na sofisticada montagem do filme. Duras foi precursora de uma gera��o de escritores cineastas – tais como Pier Paolo Pasolini, Robbe-Grillet, Peter Weiss e Georges P�rec – que fizeram do cinema uma arte essencial para ter no horizonte uma reconstru��o simb�lica do p�s-guerra. Ela foi pioneira numa escrita f�lmica que se disseminou durante os anos 1970.
� doloroso constatar que ler “Hiroshima meu amor” ainda diz muito sobre os impasses atuais, vividos por todos. A Europa abriga o espectro de uma nova guerra, na qual uma pr�xima cat�strofe at�mica j� assume um tom de normalidade nas manchetes, nos posts e tweets. No Brasil, n�o s�o ocasionais os instantes em que se inflama rumo a uma guerra civil e � banaliza��o de genoc�dios que permeiam nosso cotidiano. Nessa lida, Duras nos sugere um olhar interno, de busca pelo autoconhecimento, que se furta da tolice do �dio, e remete a um amor m�nimo, b�sico, como uma semente da resist�ncia.
Pref�cio
(Trecho de “Um filme escrito em papel”, de Gabriel Laverdi�re)
“(...) Em seu texto, a pr�pria Marguerite Duras torna poss�vel ver. Na aus�ncia do filme, o texto n�o apenas diz, mas tamb�m mostra. A t�tulo de roteiro, ele se apresenta tanto como uma obra liter�ria quanto como uma obra cinematogr�fica. Duras mistura g�neros aqui: Hiroshima meu amor na tela foi um ‘romance escrito em pel�cula’; aqui � um filme escrito em papel, a manifesta��o de uma literatura cinematogr�fica. O leitor torna-se uma esp�cie de espectador ao ler o texto, a quem o escritor convida para uma representa��o quase romanesca da narrativa destinada � tela. A fic��o � justamente rodeada pelas partes do trabalho que o filme excluiu. Por todas essas raz�es, o roteiro n�o � uma vers�o menor do trabalho; ele � tamb�m a obra. � o filme que Duras n�o fez, ou que ela ter� feito, para n�s leitores, na p�gina.”
Cole��o Duras
Publicado pela primeira vez no Brasil, “Hiroshima meu amor” � o segundo volume da Cole��o Marguerite Duras, da Relic�rio. A editora mineira j� havia publicado o livro “Escrever”. A tradu��o � da escritora Adriana Lisboa e a coordena��o da cole��o � de Luciene Guimar�es de Oliveira. “Os t�tulos que integram a Cole��o Duras s�o representativos de sua obra e transitam por v�rios g�neros, passando pelo ensaio, roteiro, romances e o chamado texto-filme, proporcionando tanto aos leitores entusiastas quanto aos que se iniciam na literatura durassiana uma intrigante leitura”, afirma Luciene.
“Hiroshima meu amor”
• Marguerite Duras
• Tradu��o de Adriana Lisboa
• Relic�rio Edi��es
• 196 p�ginas
• R$ 57,90
* Pablo Gon�alo � professor do Departamento de Audiovisuais e Publicidade da Faculdade de Comunica��o da Universidade de Bras�lia (UnB)