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Estado de Minas PENSAR

'A vida e as opini�es do cavalheiro Tristram Shandy" ganha reedi��o

Escrito no s�culo 18 e considerado um dos romances mais inventivos da literatura, livro serviu de modelo para outros autores, como Machado de Assis


26/08/2022 04:00 - atualizado 26/08/2022 11:53

ilustração
(foto: Quinho)

 

Um dos romances mais inventivos da hist�ria do g�nero, “A vida e as opini�es do cavalheiro Tristram Shandy” serviu de modelo para muitos outros escritores e entrou para a lista dos mais importantes e criativos j� produzidos pela mente humana. O livro de Laurence Sterne foi publicado pela primeira vez em 1760 (na verdade, nesse ano foram publicados os dois primeiros volumes de um total de nove, que terminaram de ser publicados em 1767). Para ser mais preciso, � necess�rio dizer que existe edi��o anterior, de 1759, bancada pelo pr�prio Sterne, e a essa se deve chamar mais exatamente de primeira.

 

O famoso bi�grafo e cr�tico liter�rio Samuel Johnson anotou, de maneira equivocada e do alto mais da emp�fia de cr�tico do que da sagacidade de bi�grafo, que “nada de extravagante ficar�”. Referia-se, em linhas gerais, aos exc�ntricos liter�rios e, de maneira espec�fica, ao “Tristram Shandy”, de Laurence Sterne. Para a sorte da literatura, de Sterne e dos leitores, Johnson errou feio nesse pormenor.

 

A obra foi muito admirada em vida pelos leitores, que fizeram do escritor um campe�o de vendas, e nos s�culos seguintes tornou-se refer�ncia incontorn�vel para escritores. Machado de Assis o cita e lhe reconhece a import�ncia (mais do que isso: adota alguns m�todos, embora mantenha a digress�o sob n�veis de controle bem mais elevados do que Sterne), bem como fizeram Virginia Woolf, Samuel Beckett, James Joyce, Michel Butor, Enrique Vila-Matas, na verdade qualquer escritor que preste — e os aspirantes a prestar que se interessam pelo assunto. De quebra, ent�o, fica a dica �bvia para aspirantes que ainda n�o entenderam o recado: � preciso ler Laurence Sterne se se quiser sair do jardim de inf�ncia da narrativa.

 

Supremo monumento � irregularidade

 

Embora ter feito aqui essa genealogia talvez d� a impress�o de que a obra precisa do apoio de pares. Nada mais falso. O romance tem, � verdade, uma caracter�stica muito espec�fica que o tira da linhagem mais ou menos convencional da literatura, qual seja, desrespeita e trata de maneira brincalhona o preceito que sempre parece ter funcionado: fa�a a hist�ria andar. Pois o livro de Sterne, nesse sentido, n�o anda, n�o avan�a. Ele � todo constru�do a partir da ideia de que n�o precisa avan�ar, que h� tempo para se falar sobre uma s�rie de coisas no caminho que n�o seja o tal centro ambulante e decisivo da hist�ria. Sterne bota a l�ngua para fora sempre que v� Ariadne oferecer qualquer fiapo de fio. Gastar tempo como se ele n�o existisse foi uma percep��o importante desse livro.

 

A narrativa est� cheia de interpola��es — supostamente para distrair o leitor, desvi�-lo do principal, perd�-lo num labirinto de palavras ou atra�-lo para um jogo em que o importante s�o as palavras, n�o o andamento da trama. Quando descobre que esses eternos adiamentos s�o a ess�ncia da hist�ria, o leitor talvez queira abandonar a leitura, se estiver muito acostumado a um determinado tipo de efici�ncia. Mas o fato � que Sterne faz sucesso com o romance, mesmo quando lhe falta sa�de na vida e talvez a narrativa pudesse ficar comprometida. Um sujeito com problemas de pulm�o nascido num pa�s como a Inglaterra soa a afronta. Mas Sterne mant�m o bom humor a despeito de tudo. Ele parece saber que o riso � pai da inven��o.

 

Jos� Paulo Paes (1926-1998), o tradutor brasileiro, definiu o romance de Laurence Sterne como “supremo monumento � irregularidade cujo ‘primo mobile’ parece ser o horror � linha reta e a paix�o do labirinto”. Acrescente-se � conta um gosto pela s�tira, um narrador que debocha da classe para a qual o texto do romance se dirige (a ‘gentry’, ou seja, a burguesia rural da qual o pr�prio Sterne faz parte) e que, em vez de repelir a acusa��o, antes se sente estimulada a comprar e ler, e, n�o por �ltimo nem menos importante, o uso frequente de uma s�rie de excentricidades tipogr�ficas e eis o que � um quadro preliminar do romance.

 

 

Finge que vai

 

A mais evidente das t�cnicas usadas por Sterne � a digress�o. Quando sugere que vai contar a hist�ria de Tristram Shandy desde o nascimento, cria a expectativa de que o relato ser� cronol�gico, como nas biografias. Mas todo assunto anunciado � pretexto para se pensar (e conversar a respeito de) outro correlato, e assim a narrativa se abre para um intermin�vel n�mero de interpola��es. Os personagens parecem muito satisfeitos com a possibilidade de uma conversa intermin�vel e, sobretudo, sem muito m�todo. Eles se mostram mais interessados em escutar e falar do que em fazer as ideias chegarem a qualquer ponto previamente estabelecido.

 

No projeto de protelar os avan�os da narrativa, Laurence Sterne faz quest�o de lembrar que n�o age sem m�todo: “Tomo o cuidado de constantemente ordenar as coisas de modo a que meu assunto principal n�o fique parado durante a minha aus�ncia”.

 

“Tristram Shandy” � uma biografia ao rev�s, que n�o avan�a. Ou melhor, autobiografia, posto que quem enuncia � o pr�prio Tristram Shandy, no que deveriam ser suas mem�rias. As digress�es, diz o narrador, “s�o a vida, a alma da leitura”. Se forem retiradas do livro, “ser� melhor se tirardes o livro juntamente com elas”. Ou seja, um (o livro) n�o existe sem as outras (as digress�es). O cuidado na composi��o dessas digress�es, ele prossegue, � o que faz a obra dar certo: “Compliquei e envolvi os motivos digressivo e progressivo de tal maneira, uma roda dentro da outra, que toda a m�quina, no geral, tem-se mantido em movimento”. Interessante ele usar o substantivo ‘m�quina’ para se referir ao livro, pois em certo sentido � um pouco com o que o livro se parece, uma m�quina de fabula��es infinitas.

 

Para cometer um tipo de abuso imperdo�vel e dizer do que se trata a, por assim dizer, hist�ria, de modo sucinto: Tristram Shandy � filho de Walter e Elizabeth, sobrinho de Toby. Seu tio foi ferido na guerra, na virilha, e por isso mora na casa do irm�o, acompanhado de um ex-cabo e atual criado, Trim. Para a convalescen�a, come�a a estudar o cen�rio de guerra e agora o reproduz em miniatura no quintal, ajudado por Trim. A certa altura, conversa-se sobre a hip�tese, nunca esclarecida, de Toby ser ou n�o impotente, em fun��o do ferimento de guerra, evidente que com todas as implica��es humor�sticas que se pode esperar desse tipo de epis�dio. Quando a hist�ria de Toby est� prestes a ser esclarecida, devido � aproxima��o e interesse de uma vi�va muito interessante, a senhora Wadman, o romance chega ao fim sem esclarecer o assunto. Tristram aparece muito como narrador intruso, quase nada como personagem.

 

A digress�o serve para desviar o foco, diz Paes, “dos sucessos em si para a maneira por que s�o narrados”. O que est� em jogo � o pr�prio princ�pio do jogo: o prazer descompromissado. Numa vida em que tudo se regula pela funcionalidade ou efic�cia, Tristram Shandy se anuncia rebelde. Vale lembrar que o romance como g�nero come�a com Miguel de Cervantes, ao escrever o pref�cio de “D. Quixote”, no qual solicita um tipo especial de disposi��o de tempo por parte dos interessados no livro: “Desocupado leitor”. Sterne vai pela mesma estrada do bom humor.

 

O princ�pio da brincadeira sem fim volta a motiv�-lo no cap�tulo 33 do sexto livro, quando se menciona mais uma vez o m�todo de composi��o: “Quando um homem se p�e a contar uma hist�ria da estranha maneira por que conto a minha, v�-se continuamente obrigado a ir ora para tr�s, ora para a frente, a fim de manter tudo bem coeso na imagina��o do leitor”. E, mais adiante ainda, no cap�tulo 12 do nono livro, quando o narrador diz ter lido o cap�tulo anterior para concluir que agora chegou o momento de colocar outros assuntos, “a fim de manter aquele justo equil�brio entre sabedoria e estult�cia, sem o qual livro algum aguentaria um ano que fosse”.

 

O romance quer disfar�ar que � romance, fundir-se e confundir-se com a vida, ser t�o ca�tico e desorganizado quanto ela, mas ao mesmo tempo dar coer�ncia ao conjunto (algo que normalmente falta � vida), e nesse sentido “Tristram Shandy” � antirromance. Ele n�o suporta a ideia de coer�ncia, faz quest�o de lembrar o tempo todo que o leitor est� diante de um artefato liter�rio. A certa altura, ele sup�e como a cr�tica v� tratar de falar mal do seu livro, de dizer que o texto � “fora de prumo, milorde, — uma coisa muito irregular!”.

 

� como se alguns livros fossem m�quinas de leitura, ou m�quinas de criatividade, que exp�em as pr�prias engrenagens para que o leitor possa perceber como aquele brinquedo funciona. A extravag�ncia � sempre mais interessante do que os bons modos. Para estes, existem os manuais de boas maneiras e o senso comum. O romance quer subverter o senso comum, rir de seus princ�pios, apontar alternativas. Disso vem sua sagacidade e for�a.

 

Aventuras gr�ficas

 

O exemplo mais �bvio da quantidade de avan�os produzidos por “Tristram Shandy” na formata��o do livro como volume coerente encontra-se numa sucess�o de brincadeiras tipogr�ficas que o livro tem. Os travess�es de v�rios tamanhos para indicar pausas variadas, com pontua��o toda irregular; duas p�ginas em preto depois do epit�fio de um personagem que morre; linhas de asterisco para substituir linguagem chula; uso de chaves para destacar algumas palavras; a falta de um cap�tulo; a p�gina em branco para que o leitor desenhe nela o retrato de uma personagem; a dedicat�ria de um dos livros e o pref�cio de outro em lugares diferentes da abertura; diagramas explicativos.

 

No meio do quarto cap�tulo, Laurence Sterne come�a a aprimorar as brincadeiras tipogr�ficas que haviam se iniciado com travess�es de diferentes tama- nhos. A certa altura, ele aconselha aos leitores que n�o querem mais permanecer a pular o restante do cap�tulo, “pois declaro antecipadamente t�-lo escrito apenas para os curiosos e os indiscretos”. A suposi��o � de que o leitor superar� a provoca��o e permanecer� na leitura do cap�tulo; afinal, o que procura no romance � exatamente a indiscri��o de poder observar a vida privada de personagens. Em seguida a essa frase, a pr�xima linha de texto apresenta a express�o “Feche-se a porta” margeada por duas linhas.

 

Depois disso, a hist�ria de como Tristram Shandy foi gerado prossegue. Na edi��o inglesa de 2010, publicada pela Visual Editions, parte da p�gina do cap�tulo 4 est� dobrada. A hist�ria prossegue no verso da p�gina, para quem a desdobrou. � uma bela edi��o. Segundo a conta dos editores, trata-se da cent�sima vig�sima terceira apenas na Inglaterra, partindo a contagem da primeira, de 1759, bancada pelo pr�prio autor, depois da recusa do editor ingl�s Robert Dodsley. Normalmente, a contagem se inicia na edi��o de 1760, essa feita por Robert Dodsley (percebeu a burrice que tinha feito ao recusar e teve tempo de se remediar junto ao autor) e pelo irm�o, James.

 

H� uma dedicat�ria, de Sterne, no in�cio do livro, mas outra ao fim do cap�tulo 8, assinada por Tristram Shandy. Ele diz, no in�cio do cap�tulo seguinte, que n�o a fez para ningu�m em particular, “mas que �, honesta e verdadeiramente, uma Dedicat�ria-Virgem, jamais provada por qualquer ser vivente”. Est� � venda, ele acrescenta, a quem quiser comprar, e passa ent�o a fazer o elogio da qualidade do produto.

 

Mais adiante, no cap�tulo 12, no qual se narra o desdobramento da hist�ria de um p�roco chamado Yorick (sim, poss�vel descendente do buf�o da corte dinamarquesa que inspirou o personagem de “Hamlet”, o que � um interessante caso de genealogia ficcional), outra interven��o gr�fica: duas p�ginas em preto, sinal de luto pela morte de Yorick (na edi��o inglesa mencionada anteriormente, a solu��o foi reproduzir duas p�ginas com letras encavaladas umas sobre as outras, de modo que se torna imposs�vel a leitura: uma das poucas vezes em que a solu��o gr�fica da edi��o brasileira parece estar melhor...).

 

Mais adiante, no cap�tulo 37 do terceiro livro, h� duas p�ginas que reproduzem a cor (e a forma irregular) do m�rmore. N�o deve ter sido simples fazer as primeiras edi��es do livro, numa �poca em que essas extravag�ncias deviam requerer um tipo especial de tip�grafo disposto a enfrentar o desafio.

 

No quarto livro, falta um cap�tulo, o de n�mero 24. Um espa�o em branco fica no lugar e no in�cio do cap�tulo seguinte, 25, se faz men��o � aus�ncia: “Tampouco o livro se tornou mais imperfeito”, ele comenta, “o m�nimo que fosse”.

 

No cap�tulo 38 do sexto livro, um espa�o em branco � deixado para que o leitor desenhe a pr�pria vers�o do que imagina ser a vi�va Wadman (ela � a pretendente que talvez consiga conquistar a m�o do tio Toby, caso ele seja, hum, funcional, por assim dizer), descrita no texto como algu�m cheia de concupisc�ncia. A edi��o Companhia-Penguin se esqueceu de deixar o espa�o, uma pena. Mas a edi��o da Nova Fronteira (mesma tradu��o de Jos� Paulo Paes) o manteve. Dois cap�tulos mais tarde, s�o desenhadas quatros linhas que t�m o objetivo de mostrar como a obra avan�a numa “linha razoavelmente reta”. 

 

Cada uma corresponde ao modelo de um dos quatro primeiros livros. O projeto do quinto livro tem um desenho com mais pormenores, o que revela a predile��o de Sterne por toda sorte de gr�ficos representativos para o andamento da narrativa (e perfeitamente in�teis, evidente).

 

No quarto cap�tulo do nono e �ltimo livro, o cabo Trim faz um floreio com um bast�o.

 

No s�timo livro, h� um espa�o deixado numa linha para que o leitor coloque nele alguma praga — em solidariedade ao narrador, que esqueceu os originais numa carruagem de aluguel.

 

No �ltimo livro, ao anunciar que tio Toby vai entrar na casa da vi�va Wadman, o fim do cap�tulo 17 � deixado em branco e em branco ficam os cap�tulos 18 e 19, a n�o ser pelo t�tulo no alto da p�gina.

 

A resposta liter�ria para a reta matem�tica s�o as digress�es, como em “Tristram Shandy”. A outra possibilidade � fazer o romance ser o que gosta tanto de ser, um guloso que abocanha qualquer outro g�nero que lhe passe por perto. De modo que no primeiro livro do romance de Sterne, no cap�tulo 15, uma certid�o de casamento � apresentada, com toda a linguagem jur�dica a que se tem direito, para que o leitor fique ciente dos termos com que o casamento dos pais de Tristram Shandy foi realizado. O interessante nessa passagem � como o autor apresenta as min�cias que desempenham, na linguagem jur�dica, a fun��o de n�o deixar margem para qualquer disputa. Se a m�e decidir ter o filho em Londres, ao engravidar, tudo bem, o pai se disp�e a gastar at� 120 libras. Entretanto, se for um falso alarme, na pr�xima vez ela perde o direito a viajar para Londres e o filho ter� mesmo que nascer em casa.

 

Na altura do cap�tulo 17 do segundo livro, Sterne inclui no texto um dos serm�es que o autor pronunciou na Catedral de York, em 1750, intitulado “O engano da consci�ncia”. Mas segue o m�todo de brecar o avan�o do serm�o o tempo todo com as interrup��es provocadas pela conversa entre os personagens e uma das coisas que se faz � contar qual deve ser a postura adequada para algu�m que est� prestes a fazer serm�o. Ent�o, sim, � poss�vel dizer que Sterne est� efetivamente interessado em ensinar padre a rezar missa. H� um texto em latim, no cap�tulo 11 do terceiro livro, que � uma forma de praguejar, muito detalhada. O texto � retirado de Ernulfo, o Bispo (1040-1124). Numa nota ao fim do volume, Jos� Paulo Paes explica que a ampla maldi��o ou excomunh�o foi inclu�da numa colet�nea de leis, decretos papais e documentos relativos � igreja de Rochester. Sterne foi fiel na transcri��o. O romance � guloso e aceita essa interpola��o de g�neros, inclusive com cita��es longas de outras obras. A cena se passa enquanto a m�e do narrador est� em trabalho de parto. Vale lembrar, � o terceiro livro e o narrador nem sequer nasceu ainda. N�o � s� tempo, afinal, o que Sterne demanda ao leitor. O que pode ser sintoma de impaci�ncia, Sterne sugere que se transforme num jogo de adiamentos, para que se discutam outros assuntos. A vida como adiamento infinito, a pressa finalmente abolida de uma vez por todas.

 

Um pref�cio aparece no terceiro livro, mas n�o no in�cio; ele est� situado depois do cap�tulo 20. “N�o direi uma s� palavra sobre ele”, anuncia o narrador. “Ele ter� de falar por si mesmo.”

 

O in�cio do quarto volume se d� com um longo conto interpolado � narrativa. “O conto de Slawkenbergius” narra a hist�ria de um forasteiro narigudo que passa por Estrasburgo a caminho de Frankfurt e provoca enorme alvoro�o na cidade — exatamente por conta do tamanho avantajado do nariz. A quest�o havia sido desperta no livro anterior, quando o f�rceps do m�dico parece ter achatado o nariz do rec�m-nascido Tristram Shandy. � assim que o leitor � informado de que ele nasceu — n�o pela alegria do nascimento de uma crian�a, mas pelo acidente provocado pela poss�vel imper�cia m�dica do doutor Slop.

 

O narrador relembra, no cap�tulo 9 do quarto livro, os cap�tulos tem�ticos que havia prometido anteriormente escrever: um cap�tulo sobre n�s (n�o o pronome, mas os tipos de amarra��o de corda ou barbante), dois sobre o lado certo e o lado errado da mulher, um sobre su��as, um sobre desejos, um sobre o recato do tio Toby e um cap�tulo sobre cap�tulos — todos interpola��es que retardar�o o avan�o da narrativa, a n�o ser o cap�tulo sobre o recato do tio Toby, que afinal se torna um ponto de interesse do romance. Mais adiante, no cap�tulo 14, ele ainda promete cap�tulos a respeito de criadas de quarto, ‘bahs’ (o pai dele, irritado, pronuncia uma s�rie de interjei��es que o estimulam a sugerir o cap�tulo) e casas de bot�o; no cap�tulo seguinte, anuncia ainda um sobre sono. No in�cio do quinto livro, ele se lamenta de ter de cumprir a promessa de um cap�tulo sobre bigodes. “Ai! o mundo n�o o suportar�”, lastima-se.

 

Para fugir da visita da Morte, que lhe foi despachada de casa pelo bom humor, Tristram embarca numa viagem pela Europa, come�ando por Calais, na Fran�a, e transforma o in�cio do s�timo livro num guia de viagem, um g�nero no qual Sterne se aventura outra vez, ao escrever “Uma viagem sentimental”. Mas essa � outra hist�ria. Ou ser� que n�o?

 

* Paulo Paniago � professor de jornalismo na Universidade de Bras�lia

 

Trecho

“Eu sei existirem no mundo leitores, bem como muitas outras boas pessoas que n�o s�o absolutamente leitores, — que n�o se sentem muito a gosto quando n�o s�o postas ao corrente de todo o segredo, do come�o ao fim, de quanto diga respeito a uma pessoa.

 

� por pura submiss�o a tal estado de esp�rito, e por uma relut�ncia da minha natureza em desapontar qualquer alma vivente, que tenho sido desde j� t�o minucioso. De vez que minha vida e opini�es ser�o de molde a causar certo alarde no mundo, e, se conjecturo corretamente, a alcan�ar todas as categorias, profiss�es e denomina��es de homens, quaisquer que sejam — sendo n�o menos lidas do que o pr�prio ‘Pilgrim’s Progress’ [romance “A viagem do peregrino”, de John Bunyan] — e, ao fim e ao cabo, a provar serem precisamente aquilo que Montaigne receava que seus ensaios pudessem vir a ser, isto �, um livro de sala de visitas; — reputo necess�rio consultar os leitores, um de cada vez, e um pouco; por isso, devo pedir desculpas de continuar mais um pouco da mesma maneira: pela dita raz�o, estou deveras contente de ter come�ado a hist�ria de mim mesmo da maneira por que o fiz; e de poder continuar a rastrear cada particularidade dela ab ovo [desde o ovo], conforme diz Hor�cio.”

 

A vis�o de Rouanet a respeito de Sterne

 

Numa entrevista com o diplomata e escritor Sergio Paulo Rouanet por ocasi�o do lan�amento do seu estudo “Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis”, em 2007, para o suplemento Pensar do Correio Braziliense, tive oportunidade de lhe perguntar a respeito do tratamento que esses escritores mencionados no subt�tulo dispensam aos respectivos leitores, dentro das obras.

 

Rouanet lembrou que “tanto a benevol�ncia como a crueldade s�o atitudes que s� fazem sentido quando o leitor � convocado expressamente pelo autor para participar do jogo narrativo. � sem d�vida o caso de certas obras de fic��o, entre as quais o romance shandiano, que cont�m conversas simuladas com o ‘caro leitor’, a ‘bela leitora’ (benevol�ncia) ou com o ‘obtuso leitor’ (crueldade)”.

 

Ele cria, no estudo, tipologias para melhor explicar como funcionam as digress�es no livro. Eles s�o extratextuais, autorreflexivas, opinativas ou narrativas. “Uma coisa, por exemplo, � a interrup��o da narrativa principal por uma s�rie de aforismos e outra, a interrup��o por uma hist�ria paralela”, explica. “Da� a tipologia, que tem o m�rito de mostrar as formas diversas que o jogo digressivo assume em todos os autores shandianos.” 

 

 

“A vida e as opini�es do cavalheiro Tristram Shandy”

 

  • Laurence Sterne
  • Penguin-Companhia das Letras
  • Tradu��o, introdu��o e notas de Jos� Paulo Paes
  • 786 p�ginas
  • R$ 99,90 (impresso)
  • R$ 39,90 (digital) 

 


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