
Entre 1980 e 1999, nas ruas de Belo Horizonte, um an�nimo andarilho preto e pobre desenhou a giz, em caligrafia e tra�os singulares, palavras e desenhos, grafismos tribais, signos cabal�sticos e s�mbolos f�licos. Essas interven��es art�sticas eram inscritas em muros e tapumes, postes e pavimentos da capital mineira.
As enigm�ticas grafias chamaram a aten��o da escritora e pesquisadora Beatriz Magalh�es. Ela lan�a, neste s�bado (17/9) o ensaio fotopo�tico “Regiztros ef�meros” (Editora Mat�ria Pl�stica, 2021), que contrap�e registros fotogr�ficos da obra do artista an�nimo a uma sequ�ncia de poemas de Beatriz (o texto pode ser lido como poemas isolados ou um �nico poema entrecortado pelas fotos). O projeto foi contemplado pela Lei Aldir Blanc/MG/2020.
O livro � um desdobramento de uma longa pesquisa empreendida pela autora que percebeu, com o tempo, em repetidas caminhadas pelas ruas, que as escritas e desenhos foram se mostrando recorrentes. Compunham, assim, uma linguagem que reconhecia a pr�pria cidade como suporte de t�ticas de resist�ncia, e que contrastava radicalmente com a linguagem oficial da cidade planejada – dada a ver pelo urbanismo e pela arquitetura que repetiam espacialmente o c�digo positivista, de Auguste Comte.
Sabe-se muito pouco desse artista de rua. Seu nome seria Geraldo Alves. E era notado pelas pessoas que frequentavam o centro de BH, como lembra, no livro “Uma cidade se inventa” (Scriptum, 2015), a poeta Ana Caetano, que era estudante de medicina nos anos de 1980. Ali, no burburinho urbano, era poss�vel esbarrar nesse personagem que escrevia, com giz e letras redondas, longas frases ao longo das cal�adas da regi�o. “As roupas desgastadas e o cabelo em desalinho formavam um contraste t�o agudo com a beleza e simetria das composi��es desenhadas na cal�ada que era imposs�vel n�o not�-lo. �s vezes, eu parava, tentava perguntar algo ou simplesmente admirava em sil�ncio aquelas frases de uma congru�ncia misteriosa, tentando descobrir de onde vinha esse turbilh�o de palavras coloridas”, conta a poeta.
Em “Regiztros ef�meros”, as fotografias que salvam do esquecimento a arte de Geraldo Alves s�o de Beatriz Magalh�es e Gerson Alvim Pessoa. Nelas, como Beatriz destaca, “as inscri��es, de concis�o po�tica e formal pr�xima do concretismo, evidenciam aspectos da vida no espa�o urbano n�o evidentes aos olhares naturalizados da popula��o. � vis�o cr�tica aguda e �mpar: a de um n�o cidad�o, n�o consumidor, n�o contribuinte, n�o comprometido nem contaminado por conveni�ncias da sociedade, do estado e do mercado, isento de coniv�ncia, concess�o e autocensura”.
No livro, o poeta andarilho � definido como um “aut�nomo amanuense”, que registra em giz “intrigantes listagens” e ilustra “com desenhos muito elaborados de surpreendente virtuosismo”, tudo embalado em uma “sim�trica, complexa e enigm�tica geometria”.
Em um insight, o poema compara uma dessas listagens surpreendentes ao poema de Affonso �vila “Constela��o da Usura Maior”. Ambos comp�em seus respectivos textos com a enumera��o de diversos bancos – no caso de Geraldo Alves, os dois primeiros versos: “Banco Cidade de S�o Paulo/ BDMG Banco de Desenvolvimento”.
A escrita do poeta an�nimo “escorre pelos muros”, “faz �ngulo nas cal�adas”, “vai em dire��o ao meio-fio” e “esparrama no asfalto”, invade cada espa�o poss�vel das vias e art�rias do centro de Belo Horizonte. Vai acumulando n�meros, ordenando datas, precisando horas: “Em rol vai/ nomeando e/ qualificando/ pessoas// pol�ticos// celebridades// divindades// santos// seres// coisas// edifica��es// estabelecimentos”. Seu �ltimo registro temporal � de 1999; ent�o ele some e nunca mais se soube do poeta andarilho.
No posf�cio “A fantasia grafol�rica de Beatriz Magalh�es”, o cr�tico F�bio Lucas assinala que, em “Regiztros ef�meros”, Beatriz segue o poeta como sombra de uma sombra, ela se torna uma “leitora de espa�os e descodificadora de mensagens” que se esgueira “ao encal�o das pistas do poeta fugidio”.
Haveria muito a falar deste novo livro de Beatriz Magalh�es, a come�ar do projeto gr�fico: a capa, por exemplo, � revestida de uma lixa d’�gua �spera ao tato, remetendo aos suportes expostos ao tempo, como aqueles de prefer�ncia de Geraldo Alves. A contracapa traz uma imagem do poeta an�nimo de costas, em seu espa�o por excel�ncia, a rua.
No fundamental “Belo Horizonte: Um espa�o para a Rep�blica” (Proex UFMG/Imprensa Universit�ria,1989), feito em conjunto com Rodrigo Ferreira Andrade, Beatriz Magalh�es � apresentada como arquiteta e artista pl�stica. Mas ela, claro, n�o coube apenas nas duas voca��es. Sua m�ltipla atua��o, tamb�m como escritora e pesquisadora, tem permitido um olhar inovador sobre a constitui��o hist�rica da capital mineira. Da�, naturalmente, derivou a tese “Poetopos: Cidade, c�digo e cria��o errante” (BH: Fale/UFMG, 2008), na qual pela primeira vez aparecem os estudos sobre Geraldo Alves.
Beatriz � autora ainda das fic��es “Caso obl�quo” (Aut�ntica, 2009; Pr�mio Bolsa Programa Petrobras Cultural) e de “Sentimental com filtro” (Aut�ntica, 2003; 1º Pr�mio Nacional Vereda Liter�ria, 2002).
Assim, as incurs�es na pesquisa acad�mica e na escrita ficcional ampliaram sua presen�a marcante naqueles textos relacionados com a cidade, conhecida pelos escritores e artistas que a habitam das mais diversas formas – uma legi�o � qual se acrescenta agora o nome desse transgressor e an�nimo andarilho.
* Fabr�cio Marques � jornalista, autor de "Wander Piroli: Uma manada de b�falos dentro do peito" (Conceito, 2018)
Ass�duo
o poeta errante h� anos
emprenha furtivo a cidade
impregna nossos roteiros
de sua ortografia incorreta
de sua caligrafia exata
de sua callegrafia cr�tica
de sua callegrafia er�tica
t�o inesperada �s vezes
que apenas se p�de anotar
calgrafia
c�ustica
e algum raro
arroubo l�rico
E vai por a� afora
ritmo insist�ncia repeti��o
reincid�ncia de v�cio sexo
droga ou rock ’n’ roll
(…)
Um poeta de m�veis ideias fixas
dia ap�s dia
lan�ando sobre a
cidade livro livre
em registro novo
o universo
(...)
Na urg�ncia
sem mais tempo para
palavras
n�meros e
falos
deixa nos postes
esquem�ticas
an�lises combinat�rias
das cores da ra�a
humana
preto de cabelo branco
branco de cabelo pardo
branco de cabelo preto
pardo de cabelo preto
branco de cabelo
branco preto de cabelo
pardo