V�deos resgatam autoras do passado com leituras feitas por nomes atuais
Escritoras Claudia Lage e Helena Machado coordenam projeto que traz mulheres lendo e comentando obras de nomes como Ana Cristina Cesar e Stella do Patroc�nio
Projeto j� tem seis epis�dios: Ruth Guimar�es, pela voz de Nara Vidal; Stella do Patroc�nio, apresentada por Stephanie Borges; Helena Parente Cunha, comentada por Renata Belmonte; Liria Porto, descrita por Adriane Garcia; e Ana Cristina Cesar, apresentada em dois epis�dios, por Morgana Kretzmann e Cidinha da Silva (foto: Reprodu��o/Youtube)
“(...) e minha voz
como assim subtra�da?
gosto de pedra
na saliva em minha l�ngua
as palavras me emparedam
onde houvera minha boca (...)”
“Bloqueio”, de Helena Parente Cunha
Ao lan�ar-se � escrita, driblam a “cilada das palavras” e em escava��o ao fundo do po�o, desafiam “o mundo que n�o est� � tona”. E se estas palavras de Clarice Lispector remetem ao ato de coragem associado ao perigo de escrever em garimpo ao que est� oculto; para as mulheres escritoras � tamb�m uma viagem de conquista da identidade, de presen�a da voz e de luta contra o selo do apagamento de uma outra forma de viver e de sentir.
Se Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Cec�lia Meireles e Raquel de Queiroz, para amantes do esp�rito, - pois sempre haver� aqueles que escolhem ser toscos - alcan�am a visibilidade da imortalidade; no invent�rio liter�rio nacional � absoluta a preval�ncia masculina de �tica patriarcal. A “amn�sia” - ou apagamento - liter�rio ronda a produ��o feminina. Quem � Teresa Margarida Silva e Orta? Quem s�o Liria Porto, Ruth Guimar�es, Helena Parente Cunha, Ana Cristina Cesar, Ad�lia Prado, entre outras centenas de mulheres brilhantes, resgatadas por Nelly Novaes Coelho, no “Dicion�rio Cr�tico de Escritoras Brasileiras” (Escrituras, 2002) e por Rita Terezinha Schmidt em “Mulheres e Literatura: (Trans)Formando Identidades” (Pallotti, 1997).
Ainda hoje, para a mulher, o ato da escrita tamb�m representa gesto intelectual de resist�ncia ao olhar hegem�nico masculino que, entre outras coisas, versa sobre expectativas de papeis sociais, cultura pol�tica, rela��es de dom�nio e a distribui��o do poder na sociedade. E � pensando em contribuir com a visibilidade da literatura feminina, que as escritoras Claudia Lage e Helena Machado lan�aram o projeto “O mundo n�o est� � tona”, - um elo entre aquelas que escrevem hoje e aquelas que escreveram no passado, especialmente aquelas que deixaram a sua marca entre os s�culos 19 e 20. Em formato audiovisual, com epis�dios curtos, a escritora homenageada � lida e comentada por uma escritora, pesquisadora, cr�tica, professora ou jornalista contempor�nea.
H� um fio conceitual no projeto, que conduz o di�logo, destinado a responder: “Quando voc� come�ou a ler mais mulheres e como seria seu olhar para o mundo se as tivesse lido antes?” J� foram lan�ados seis epis�dios: Ruth Guimar�es, pela voz de Nara Vidal; Stella do Patroc�nio, apresentada por Stephanie Borges; Helena Parente Cunha, comentada por Renata Belmonte; Liria Porto, descrita por Adriane Garcia; e Ana Cristina Cesar, apresentada em dois epis�dios, por Morgana Kretzmann e Cidinha da Silva. Nesta sexta-feira (14/04) ser� publicado o v�deo da cr�tica liter�ria e escritora Luciana Araujo Marques falando sobre a escritora Marilene Felinto. E, na pr�xima semana, a professora da UFF e pesquisadora Euridice Figueiredo reage � obra de Heloneida Stuart.
"A Ana Cristina Cesar, assim como tantas outras escritoras, sofreu um forte apagamento do seu trabalho, na sua �poca, no Brasil. Como tantas outras e como muitas de n�s ainda passam por isso."
NARA VIDAL l� Ruth Guimar�es
"Por que cargas d'�gua essas mulheres n�o tiveram a mesma possibilidade e oportunidade de mostrar o trabalho? Do trabalho delas serem falados, comentados, discutidos, estudados. Isso para mim � uma quest�o por si s� muito complexa, muito problem�tica e que de fato merece esta aten��o, esta reflex�o."
STEPHANIE BORGES l� Stella do Patroc�nio
"Come�aram a ficar muito claras pra mim quest�es como a origem, a rela��o entre o corpo da mulher e a linguagem, sobre a subjetividade da mulher negra, que eu s� fui come�ar a prestar aten��o quando li as escritoras negras. Quando li Stela do Patroc�nio foi especialmente forte essa quest�o da rela��o do corpo e linguagem."
RENATA BELMONTE l� Ana Cristina Cesar
"N�s que somos mulheres de gera��es muito diferentes (se referindo a Helena Parente Cunha), a gente precisa saber que aquela que t� l� na frente tem muito a dizer sobre o que � ser uma mulher e ser uma escritora."
ADRIANE GARCIA l� Liria Porto
"O fato de lermos s� homens, com raras exce��es, acaba nos dando uma vis�o de mundo que n�o � do mundo real, � s� de uma parte do mundo, a literatura � mais completa quando todas as vozes podem ser ouvidas. E o mundo tamb�m � mais completo, n�?"
CIDINHA DA SILVA l� Ana Cristina Cesar
"� importante que a literatura produzida por mulheres esteja dispon�vel nas escolas, especialmente nas escolas p�blicas, que para muitas pessoas s�o a conex�o privilegiada que elas t�m com o mundo cultural. Que a gente tenha esta possibilidade, de descobrir um poema que nos acompanhe a vida inteira."
Entrevistas/Claudia Lage e Helena Machado
"O silenciamento � resultado da l�gica dominante no c�none masculino"
Carlos Marcelo
Claudia Lage e Helena Machado: coordena��o do projeto (foto: Divulga��o)
Como surgiu o projeto e qual o objetivo?
Claudia Lage: Foi em 2021, durante a pandemia. Em meio ao horror e a tanta destrui��o que vivemos, inclusive no sentido cultural, senti a necessidade de fazer alguma coisa no movimento oposto, contribuir de alguma forma. Falei com a Helena, que, para minha alegria, topou fazer o projeto comigo. Essa quest�o das escritoras das d�cadas passadas que n�o receberam a aten��o, espa�o e reconhecimento que mereciam j� era uma reflex�o para mim. Lembro de ter lido a Julia Lopes de Almeida, muitos anos atr�s, e ficado perplexa com a for�a da sua escrita, com a coragem das suas tem�ticas. Ocorreu o mesmo com a Maria Firmina dos Reis, e tantas outras que eu e a Helena fomos pesquisando, especialmente no livro da Nelly Novaes Coelho. Sabemos que esse silenciamento n�o � por acaso, � resultado de uma l�gica dominante de um c�none masculino. � urgente o resgate da contribui��o das escritoras brasileiras para a nossa vida cultural, como tamb�m de suas vozes e de suas hist�rias.
Helena Machado: Quando comecei a escrever meu primeiro romance, em 2016, eu me perguntava se as mulheres sempre escreveram, mas deixavam seus textos em gavetas, ou se n�o escreviam devido a tantos outros afazeres destinados a elas, se n�o tinham vontade ou n�o se davam essa permiss�o. Mas eu nunca tinha ido em busca dessas respostas. Eu e a Claudia sempre conversamos muito sobre a escrita das mulheres e fal�vamos em fazer algo juntas, e a�, durante a pandemia, ela veio com essa ideia brilhante de iniciarmos esse resgate criando uma conex�o entre as escritoras do passado e as de hoje. Eu topei na hora, claro. Ent�o, come�amos a formatar o projeto que tem justo esse objetivo: trazer � tona a exist�ncia e a obra dessas escritoras brasileiras pouco lembradas ou esquecidas.
Como se estabelece o elo entre as escritoras contempor�neas e as do passado?
Claudia: Pelo gesto de olhar para tr�s, para as escritoras que vieram antes de n�s, e enxergar e reconhecer o que fizeram. Por isso pensamos em convidar mulheres (escritoras, jornalistas, cr�ticas, professoras e pesquisadoras) do meio liter�rio atual para ler, pensar e refletir sobre o que essas mulheres escreveram no passado, na inten��o de formar esse elo, e tamb�m nos reconectarmos a elas. A conex�o feita antes, no fluxo dessa l�gica e c�none masculino, � geralmente com escritores homens, sendo as escritoras exce��es. Fomos formadas assim, nesse pensar do c�none masculino, inclusive nas tem�ticas. Rosa Montero fala que falta o sangue feminino na literatura, falta o nosso corpo e experi�ncia escritos por n�s, mas podemos reformular e mudar isso, essa reflex�o � tamb�m a nossa proposta.
Helena: N�s fizemos uma pesquisa, a partir do “Dicion�rio de Escritoras Brasileiras”, da Nely Novaes Coelho, e selecionamos algumas autoras cujas obras poderiam ser acessadas — a maioria n�o tem sequer registro de cataloga��o. Dividimos as escritoras por d�cadas e, a partir da�, come�amos a convidar nossas colegas contempor�neas para escolherem — da lista ou sugerindo algum outro nome que n�o hav�amos mencionado —, alguma escritora do passado que gostariam de homenagear, falando sobre ela e lendo um trecho de alguma obra, e tamb�m refletindo sobre as quest�es envolvendo a escrita e a leitura de mulheres.
Quando voc�s come�aram a ler mais mulheres e como seria o olhar para o mundo de voc�s se as tivesse lido antes? Quais foram as autoras que mais marcaram a forma��o de voc�s como escritoras?
Claudia: Antes de entrar no curso de letras da UFF, eu lia repetidamente Clarice Lispector, Hilda Hilst, Cec�lia Meirelles, Katherine Mansfield, Virginia Woolf e Anais Nin, escritoras maravilhosas, mas parecia que eram as �nicas. Ent�o, na UFF, tudo mudou quando fui aluna da Sonia Torres e da Cyana Leahy, que na d�cada de 90 j� tinham essa proposta, de ler mulheres. Cyana levou Carolina Maria de Jesus para a sala de aula, algo improv�vel e pioneiro na d�cada de 90. Lembro tamb�m ela lendo Olga Savary, Renata Pallotini e Marly de Oliveira para a gente, poetas excelentes que n�o conhec�amos. E a Sonia Torres apresentou uma s�rie de escritoras americanas incr�veis, indo al�m de Fitzgerald e Hemingway. Foi quando li “The awakening”, da Kate Chopin, e tamb�m a Doris Lessing. Foi perturbador e libertador ler essas mulheres todas falando de experi�ncias e perspectivas imposs�veis de encontrar em livros escritos por homens. � como se n�s n�o estiv�ssemos l�, de verdade, de carne e osso, no que eles escreviam, apenas uma imagem do modo como as mulheres s�o vistas e retratadas. Foi uma tomada de consci�ncia perceber que nossas experi�ncias s�o importantes, que deviam ser escritas (por n�s) e lidas (por todos), e que elas entram na categoria do universal, porque s�o experi�ncias humanas. Essa tomada de consci�ncia me levou a escrever meus dois romances, “Mundos de Eufr�sia” e “O corpo intermin�vel”, que fala sobre as experi�ncias femininas em sistemas opressores, patriarcais, e talvez eu n�o tivesse a coragem de escrev�-los, talvez tivesse sido assombrada pelo “Anjo do lar”, como diz a Virginia Woolf, achado que nada daquilo era t�o importante assim, se n�o tivesse lido tantas escritoras, o que come�ou na faculdade, e se intensificou nos �ltimos 10 anos.
Helena : N�o tem nem dez anos que comecei a ler mais mulheres, foi por volta de 2015, quando iniciei a leitura de livros de escritoras brasileiras de uma gera��o anterior a minha, como a Carola Saavedra, a Claudia Lage, Tatiana Salem Levy e Adriana Lisboa. At� a�, da minha forma��o como leitora faziam parte basicamente a Clarice, sempre, Hilda e Lygia. Em uma parte da juventude li muito Agatha Christie e, depois, Anais Nin, Virginia Woolf e Anne Sexton. Se eu tivesse lido mais mulheres certamente eu veria o mundo de maneira muito diferente, acho que come�ando por aceitar mais a mim mesma, meus pensamentos sinuosos, e talvez tivesse me permitido escrever muito antes do momento em que tomei coragem. Provavelmente tamb�m aceitaria meu desejo por falar determinados temas que eu pr�pria considerava menos importantes porque se referiam ao universo feminino, eu ca�a no papo de que os homens falam sobre temas universais e que para ser uma escritora boa eu n�o poderia falar de certas coisas. No meu romance, por exemplo, comecei a escrever sobre bulimia e anorexia, e em dado momento me brequei pensando que ningu�m queria ouvir falar sobre dist�rbios alimentares. Foi a Carola, no grupo de estudos que ela criou apenas com escritoras mulheres, que me perguntou: quantas vezes voc� j� ouviu falar sobre isso? Se eu tivesse lido mais mulheres desde sempre tudo seria diferente. Na vida e na arte.
Sobre as autoras do projeto
Claudia Lage nasceu no Rio de Janeiro, � escritora e roteirista. Formada em Teatro pela Unirio, em Letras pela UFF e mestre em Literatura pela PUC-Rio, � autora do livro de contos "A pequena morte e outras naturezas" e do romance "Mundos de Eufr�sia", finalista do Pr�mio S�o Paulo de Literatura de 2010. Em 2013, lan�ou o livro "Labirinto da palavra", com ensaios-cr�nicas sobre literatura, que, em 2014, recebeu o Pr�mio de Literatura de Bras�lia e foi semifinalista do Pr�mio Portugal Telecom (atual Oceanos). Em 2019, lan�ou o romance "O corpo intermin�vel", vencedor do Pr�mio S�o Paulo de Literatura na categoria de Melhor Romance de 2020. Como roteirista, trabalhou na TV Globo e na Conspira��o Filmes, entre outras produtoras. Ministra cursos de roteiro e cria��o liter�ria no Rio de Janeiro. � doutoranda em Literatura Comparada na UFF.
Helena Machado nasceu no Rio de Janeiro. � escritora, dramaturga e roteirista. Bacharel em Comunica��o Social pela UFRJ e atriz formada pela CAL. Seu romance de estreia, "Mem�ria de ningu�m" (Editora N�s/2022), venceu o Pr�mio Toca e teve o primeiro cap�tulo apresentado na Revista Granta. Dramaturga premiada pelas pe�as "Sexton" (5o sele��o Brasil em Cena - CCBB/MINC) e "Aos Peixes" (Festival de Teatro do Rio de Janeiro). Contos seus foram publicados nas revistas Pessoa, Capitolina, Revera, Mapas do Confinamento, entre outras. Co-roteirizou as s�ries "Ins�nia" (Canal Brasil), "Essa Hist�ria dava um filme" (Multishow), "Punga" (estreia no ano que vem no CineBrasil TV), e o longa-metragem "Nau de Urano" (Lume Filmes/ Ancine, em pr�-produ��o).