Criado em 1910, o Servi�o de Prote��o aos �ndios (SPI) muitas vezes atuou de maneira totalmente contr�ria aos interesses das pessoas por quem deveria zelar. Uma investiga��o coordenada em 1967 pelo ent�o procurador Jader de Figueiredo Correia indicou que, al�m da corrup��o sist�mica no �rg�o – que posteriormente seria substitu�do pela Funda��o Nacional do �ndio, a Funai, parte de seus agentes praticavam escravid�o e tortura de �ndios em todo o pa�s.
“De maneira geral n�o se respeitava o ind�gena como pessoa humana, servindo de homens e mulheres, como animais de carga, cujo trabalho deve reverter ao funcion�rio. No caso da mulher, torna-se mais revoltante porque as condi��es eram mais desumanas”, anotou Figueiredo em uma das cerca de 5 mil p�ginas remanescentes encontradas e digitalizadas por Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais de S�o Paulo e coordenador do projeto Armaz�m Mem�ria.
Den�ncias de escravid�o
As den�ncias de escravid�o aparecem nos relatos das “dezenas de testemunhas” e “centenas de documentos” que fizeram parte da apura��o pedida pelo Minist�rio do Interior e motivada por uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito instaurada em 1963. “O trabalho escravo n�o era a �nica forma de explora��o. Muito adotada tamb�m era a usurpa��o do produto do trabalho. Os ro�ados laboriosamente cultivados eram sumariamente arrebatados do miser�vel sem pagamento de indeniza��o ou satisfa��o prestada”, ressalta o procurador.
No Paran�, o relat�rio diz que o respons�vel pelo posto do SPI em Guarapuava, Iridiano Amarinho de Oliveira, “a�oitava os �ndios para obrig�-los a trabalhar para ele”, usando um rabo de tatu. No mesmo estado o funcion�rio do Posto Manuel Ribas, Lauro de Souza Bueno, � apontado como “torturador de �ndios”. Segundo o documento, ele usava, com a anu�ncia do chefe do posto, seu irm�o, Raul de Souza Bueno, o tronco. O mecanismo desenvolvido � �poca em que a escravid�o era permitida no pa�s, que prensa o tornozelo da v�tima. “Um processo muito doloroso, que se levado ao extremo poder� provocar a fratura do osso, como aconteceu muitas vezes”, destaca o texto.
Exterm�nio
Sobre essas pr�ticas, escreveu Figueiredo: “o Servi�o de Prote��o ao �ndio degenerou-se a ponto de persegui-los at� o exterm�nio”. Em suas passagens pelos postos do SPI o procurador diz ter encontrado assassinatos de �ndios, prostitui��o de �ndias, sev�cias, trabalho escravo, apropria��o e desvio de recursos do patrim�nio ind�gena e dilapida��o do patrim�nio ind�gena.
Um dos maiores exemplos dessa conduta � o diretor do SPI naqueles anos, o major Luiz de Vinhas Neves. Entre dezenas de irregularidades apontadas pelo relat�rio, Neves � acusado de ter firmado, em proveito pr�prio, um contrato de explora��o de cassiterita em Rond�nia e ter usado o trabalho de �ndios na minera��o.
Na jurisdi��o do atual Mato Grosso do Sul, Fl�vio de Abreu n�o s� escravizava os �ndios no posto sob seu comando, como os usava como moeda de troca. De acordo com os relatos colhidos no documento, Fl�vio “entregou a �ndia bororo de nome Rosa ao indiv�duo por nome Seabra, em paga do trabalho de Seabra na confec��o de um fog�o de barro”. “O pai da �ndia fez reclama��es ao sr. Fl�vio sobre a entrega de sua filha ao indiv�duo Seabra. Em virtude dessa reclama��o o senhor Fl�vio Abreu mandou surrar o reclamante”, completa o texto.
Ap�s enumerar torturas e espolia��es, em uma das suas observa��es, Figueiredo destaca que caso pudessem usufruir de seu patrim�nio, os povos ind�genas provavelmente teriam uma vida de fartura.“O patrim�nio ind�gena � fabuloso. As suas rendas alcan�ariam milh�es de cruzeiros novos se bem administrados. N�o requereria um centavo sequer de ajuda governamental e o �ndio viveria rico e saud�vel em seus vastos dom�nios”.
Membro da Comiss�o Nacional da Verdade, respons�vel por coordenar a apura��o das den�ncias sobre viola��es aos direitos ind�genas entre 1946 e 1988, a psicanalista Maria Rita Kehl informou que a comiss�o vai analisar todas as den�ncias e fatos narrados no chamado Relat�rio Figueiredo.