
A reboque da execra��o nas redes sociais, ser� enfim atualizado na C�mara dos Deputados o C�digo Penal, decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, que, por omiss�o, possibilita que um passageiro ejacule sobre uma mulher, � luz do dia, dentro de um �nibus lotado, e saia impune. A falta de tipifica��o desse crime traz empecilhos para a condena��o dos agressores. Para al�m disso, o Poder Judici�rio e o Minist�rio P�blico frequentemente apresentam dificuldade em considerar a viol�ncia moral e psicol�gica que carrega um ato desse tipo, optando por enquadr�-lo como “importuna��o sexual”, o que atualmente constitui contraven��o penal, prevista no decreto-lei: n�o � considerado crime e tem a multa ainda fixada em mil r�is (moeda que deixou de ser usada na d�cada de 1940).
A Comiss�o de Defesa dos Direitos da Mulher aprovou na ter�a-feira passada substitutivo ao projeto 5.452/2016, da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), incluindo importuna��o sexual, ou seja, o ato deixar� de ser “contraven��o” para ganhar status de crime. Em princ�pio, o projeto que saiu do Senado tipifica o crime de divulga��o de cena de estupro, sexo expl�cito e pornografia – o que � tamb�m um avan�o – e aumenta as penas para os casos de estupro coletivo e de estupro coletivo de vulner�veis.
Existem 350 proposi��es em tramita��o na C�mara dos Deputados relacionadas ao crime de estupro. Algumas delas hibernam h� mais de uma d�cada. Mas com a sociedade pressionando principalmente pelas redes sociais, o substitutivo aprovado na Comiss�o dos Direitos da Mulher vai ganhar destaque, com r�pida tramita��o, segundo avaliam as deputadas federais da bancada feminina. A mat�ria j� foi apreciada pelo Senado, mas, confirmadas as modifica��es na C�mara, voltar� � Casa de origem para nova vota��o.
Abusadores que se aproveitam de aglomera��es no transporte coletivo do Oiapoque ao Chu� para apalpar, encoxar, lamber, tocar partes do corpo e at� ejacular sobre quem quer que seja estar�o sujeitos a penas de dois a quatro anos, pela proposta do projeto substitutivo, relatado pela deputada Laura Carneiro (PMDB-RJ). Por importuna��o sexual entenda-se“praticar, na presen�a de algu�m e sem a sua anu�ncia, de ato libidinoso, com objetivo de satisfazer a sua pr�pria lasc�via ou a de terceiro”.
Segundo a deputada J� Moraes (PCdoB-MG), a inten��o � que esse artigo seja acrescido ao C�digo Penal, para dar conta, sem pol�micas jur�dicas, da frequente viol�ncia sexual cometida no transporte coletivo. Com a proposta ser�, portanto, tipificado no C�digo Penal a “importuna��o sexual”, com uma pena intermedi�ria entre um enquadramento muito brando e a pena m�nima de seis anos do crime de estupro, que � hediondo.
Sobram agress�es e faltam den�ncias
A legisla��o tarda a vir para resolver um velho problema, pouco notificado �s Delegacias Especializadas de Atendimento � Mulher da Pol�cia Civil. Belo Horizonte � um exemplo disso: sobram abusos e agress�es sexuais no transporte coletivo, principalmente trens urbanos. Mas poucas ocorr�ncias s�o registradas.
A subnotifica��o se explica: a viol�ncia chega de m�os dadas com um sentimento de que o estado n�o d� a resposta adequada. “J� fui v�tima. Quando ainda era estudante de direito, em 2003, cochilava no �nibus ao voltar da faculdade e acordei com um homem passando a m�o nas minhas pernas”, revela Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, ju�za auxiliar da Corregedoria Geral de Justi�a de Minas Gerais. “Comecei a gritar. O abusador saltou no pr�ximo ponto dizendo que eu estava maluca e devia ter sonhado”, lembra ela.
“N�o se calem. � preciso denunciar, chamar aten��o do motorista, para que seja conduzida � delegacia”, considera Marixa, assinalando que as mulheres agredidas no transporte coletivo s�o hoje invis�veis �s estat�sticas oficiais, porque em geral optam por n�o reportar. “Ao registrar a ocorr�ncia, a v�tima estar� protegendo outras mulheres”, afirma ela.
O abuso sexual em transporte coletivo – trens urbanos, metr� e �nibus - que ganhou os holofotes com o “ejaculador” da Avenida Paulista e a pol�mica decis�o judicial que se seguiu – �, contudo, verificado em v�rios cantos do pa�s. S� em S�o Paulo, entre janeiro e julho deste ano, foi notificado pelo menos um dia. Motivado por um abaixo-assinado com 12 mil assinaturas, em Belo Horizonte, vigora inclusive lei municipal de 2016, de autoria do vereador Leo Burgu�s (PSL), que estabeleceu a implanta��o do chamado “vag�o rosa”. No Rio de Janeiro, igual medida foi adotada h� oito anos; em Recife e outras capitais, tamb�m optaram por resolver o velho problema, apartando homens e mulheres. Em nenhum desses lugares, contudo, h� empenho da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) em fiscalizar o cumprimento da regra. Os vag�es rosas s�o invadidos por homens, principalmente em hor�rios de pico.
Legisla��o � ultrapassada
Situa��es como a de S�o Paulo, em que o juiz Jos� Eugenio do Amaral se valeu de um tipo penal leve, a contraven��o, para soltar o agressor que ejaculou em uma mulher dentro de um �nibus, demonstra a dificuldade do Poder Judici�rio em compreender e avaliar a viol�ncia que, n�o � exclusivamente f�sica, mas, sobretudo psicol�gica e simb�lica. Haveria outra interpreta��o poss�vel? Foi a pergunta que se espalhou pelo pa�s, dividindo a comunidade jur�dica e revoltando a sociedade. Muitos entenderam que sim. Para cada tipo de enquadramento, contudo, h� poss�veis senten�as que oscilam entre a libera��o do agressor e a pena m�nima do crime hediondo do estupro, de seis anos.
“Quem enquadrou a conduta como contraven��o foi o promotor de Justi�a, que � o titular da a��o penal. � fato que a legisla��o � antiga e � preciso uma lente de g�nero para mostrar o dano que esse tipo de crime causa � v�tima”, assinala Marixa Fabiane Lopes Rodrigues, ju�za auxiliar da Corregedoria Geral de Justi�a de Minas Gerais, defendendo uma pena intermedi�ria – mais grave do que a simples contraven��o, mas menor do que a pena m�nima de estupro.
O decreto-lei 3.688, de 1941, Lei das Contraven��es Penais, assim define a importuna��o sexual: “Importunar algu�m, em lugar p�blico ou acess�vel ao p�blico, de modo ofensivo ao pudor”, que constitui um tipo penal aplicado somente quando os fatos n�o se revelam graves. A puni��o? Uma multa que varia entre duzentos mil a dois contos de r�is, moeda que vigorava nos anos 1940.
“A revolta de todos n�s se justifica, pois � uma lei desatualizada, j� que, assistimos diariamente, mulheres sendo agredidas em transportes coletivos, o que � t�pica de tempos modernos, de grandes aglomera��es e de sociedades que n�o respeitam a mulher. Ela j� est� ali fragilizada, humilhada, est� com medo de um indiv�duo que n�o sabe se � um doente mental, se � ladr�o, se est� armado. E ainda n�o sabe se ter� a solidariedade dos outros passageiros”, considera o desembargador Jaubert Carneiro Jaques Wilson, da 6ª C�mara Criminal do Tribunal de Justi�a de Minas Gerais.
CLAMOR P�BLICO
A sociedade mudou, e as leis precisam caminhar junto. “A atual legisla��o penal est� anacr�nica e h� muito n�o d� resposta aos problemas”, afirma o desembargador Jaubert Carneiro. “Em 1940, quando foi editado o decreto-lei do C�digo Penal, n�o havia tantas oportunidades para esse tipo de abuso e as mulheres n�o tinham poder para denunciar abusos”, afirma o desembargador. “H� um clamor p�blico e o Legislativo precisa responder. A importuna��o sexual tem de ganhar status de crime, primeiro porque diz respeito � esfera de direitos subjetivos, � dignidade da mulher. Mas deve permanecer diferente do estupro, com pena mais branda”, pondera.
O estupro � definido pelo artigo 213 do C�digo Penal, e se inclui no t�tulo dos crimes contra a dignidade sexual. “Houve uma �poca em que s� era considerado crime de estupro quando havia penetra��o sexual. Foi apenas em 2009 que a lei evoluiu, qualificando tamb�m o ato libidinoso, que n�o sup�e necessariamente a conjun��o carnal”, afirma Jaubert, sustentando que o estupro, antes de crime sexual, � crime de possess�o: “Apoiado numa cultura machista, o indiv�duo tosco, torpe, acha que a mulher � uma coisa, um objeto, em rela��o ao qual pode ter a posse”, diz ele.