A revela��o em memorando da Ag�ncia Central de Intelig�ncia (CIA) dos EUA, sobre a pol�tica de Estado da ditadura militar (1964-1985) para a execu��o de opositores do regime, causou grande repercuss�o nos meios jur�dico, pol�tico e militar do pa�s. Na avalia��o de juristas, historiadores e parlamentares com atua��o no combate � tortura e a crimes contra a dignidade humana, a divulga��o do documento deve trazer consequ�ncias para a revis�o da Lei da Anistia, que est� pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em que pese outros pa�ses da Am�rica do Sul tenham, num primeiro momento, anistiado torturadores, o Brasil foi o �nico em que nenhum deles foi punido. A divulga��o do documento � criticada pelos militares. O presidente do Clube Militar, general Gilberto Pimentel, disse que a publica��o � fantasiosa e eleitoreira e pretende prejudicar os candidatos militares. O presidente Michel Temer disse desconfiar do documento e o ministro da Seguran�a P�blica e ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirma que o governo n�o tem conhecimento disso e que a sua publica��o n�o abala as For�as Armadas
“O que � dram�tico, estarrecedor neste documento � a banalidade do mal, para usar a express�o de Hannah Arendt”, sustenta Pedro Dallari, professor titular de direito internacional da Universidade de S�o Paulo (USP), �ltimo coordenador da Comiss�o Nacional da Verdade (CNV), que concluiu os seus trabalhos em 2014 apontando 377 agentes respons�veis por 434 mortos e desaparecidos ao longo da ditadura. “O exterm�nio de brasileiros � tratado com a maior naturalidade, como se fosse pol�tica p�blica”, assinala Dallari. “A comiss�o j� havia chegado a esta conclus�o. Mas este novo documento ilustra com clareza o que a ditadura fez, a execu��o de pessoas como pol�tica sistem�tica de Estado, a banaliza��o de conduta il�cita e inaceit�vel”, acrescenta.
Para a historiadora e p�s-doutoranda pela Universidade Federal Fluminense, Isabel Leite, o documento reafirma que tortura e aniquila��o de opositores foram institucionais, ainda que muitos, talvez por desconhecimento da hist�ria, neguem at� a exist�ncia da ditadura. “� uma revela��o que inclusive desconstr�i a imagem do presidente-ditador Ernesto Geisel como uma figura da ala moderada do Ex�rcito, que estaria disposto a controlar os representantes da chamada “linha dura”, garantindo transi��o para a democracia de modo mais tranquilo poss�vel”, afirma Isabel. “Al�m de ser assustador pela forma fria como se trata a quest�o de aniquila��o de inimigos do regime, esse documento deveria servir de base para o STF rever a Lei de Anistia, em vigor desde 1979”, afirma.
CONTINENTE Na Am�rica do Sul, antigas ditaduras condenaram os torturadores. “No Chile, o ditador Augusto Pinochet anistiou todos os militares envolvidos em crimes de tortura em 1978, no entanto, mesmo com a lei em vig�ncia, no fim do regime, 250 militares foram punidos”, afirma Isabel. No caso argentino, em 1983, ditadura assistiu ao nascimento da Conadep, esp�cie de Comiss�o da Verdade, base para a abertura de julgamentos de militares. “Nos anos 2000, sob os governos Kirchner, outros tantos processos foram reabertos e militares punidos. Em ambos pa�ses – Chile e Argentina – generais-presidentes (Pinochet e Videla) foram presos”, diz Isabel.
�ltimo pa�s do Cone Sul a instituir uma comiss�o da verdade, o seu resultado final, por si, j� valeria a revoga��o da Lei da Anistia, defende a historiadora. “No entanto, por ser o �nico pa�s da Am�rica do Sul onde os militares t�m alto grau de independ�ncia e agem como veto players, desde a transi��o, h� uma atua��o incisiva destes em assuntos relativos � ditadura”, diz ela, lembrando que no Brasil, diferentemente do processo argentino, houve transi��o democr�tica pactuada, tutelada pelos militares. “Esta concilia��o, que naquele momento foi fundamental para a abertura, ainda hoje serve de desculpa para a n�o revoga��o da lei”, completa Isabel.
Para o deputado federal Nilm�rio Miranda (PT), estender a Lei da Anistia aos torturadores � uma excrec�ncia jur�dica. “Este documento revela mais um epis�dio estarrecedor: o presidente diz que pode matar os opositores, mas consulta antes Jo�o Baptista Figueiredo. Isso n�o existe em lugar nenhum do mundo. Execu��o extrajudicial ou desaparecimento for�ado est�o no rol dos crimes humanit�rios”, diz o parlamentar. Opini�o semelhante manifesta o advogado Maur�cio Brandi Aleixo: “Essa lei acabou equiparando o sofredor com o causador do sofrimento, o que � uma aberra��o l�gica. N�o se pode evidentemente colocar num mesmo patamar o carrasco, com a m�o do Estado, e a v�tima”.
REVIS�O Na avalia��o de Pedro Dallari, de 2010 para c�, quando o STF rejeitou o pedido de revis�o da Lei da Anistia, houve mudan�a na composi��o da Corte, o que pode repercutir no destino da causa. Sa�ram tr�s ministros que votaram pela constitucionalidade da lei – Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie – e um, Ayres Britto, que votou pela inconstitucionalidade”. De l� para c�, foram empossados cinco ministros: Lu�s Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Em 2011, o pr�prio Supremo autorizou a extradi��o do major argentino Norberto Raul Tozzo, acusado de participar de tortura e morte de 22 presos pol�ticos em 1976, epis�dio conhecido como Massacre de Margarita Bel�n. Entendeu, assim, que devam ser punidos os agentes respons�veis pelos sequestros praticados na �poca, cujas v�timas nunca foram encontradas. E no plano internacional, houve, em 2011, senten�a da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, entendendo que o Brasil deve processar os respons�veis pelos crimes cometidos durante a ditadura.
O que dizem os arquivos do governo americano
O memorando, agora tornado p�blico pelo Departamento de Estado dos EUA, data de 11 de abril de 1974, � assinado pelo ent�o diretor da CIA Willian Colby e endere�ado ao secret�rio de Estado dos EUA na �poca, Henry Kissinger. Nele, Colby detalha que Ernesto Geisel, ao assumir o poder, foi informado de que 104 pessoas haviam sido mortas em 1973 pelo governo Em�lio Garrastazu M�dici (1969-1974).
Na ocasi�o, o Centro de Informa��es do Ex�rcito (CIE), �rg�o respons�vel pela pol�tica de tortura e assassinatos de advers�rios pol�ticos da ditadura, recebeu autoriza��o de Geisel para manter o m�todo, mas restrito aos “casos excepcionais”, que envolvessem “subversivos perigosos”. Al�m do aval do Pal�cio do Planalto, as execu��es tamb�m deveriam ser precedidas de consulta ao ent�o diretor do Servi�o Nacional de Informa��es (SNI), general Jo�o Baptista Figueiredo, sucessor de Geisel na Presid�ncia da Rep�blica, entre 1979 e1985.
O Departamento de Estado americano tirou do memorando a classifica��o de confidencial em 2015, ao lado de outros 404 documentos envolvendo oito pa�ses da Am�rica do Sul. Eles cobrem o per�odo entre 1973 e 1976, durante as presid�ncias dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford. Foi descoberto pelo pesquisador Matias Spektor, professor de Rela��es Internacionais da Funda��o Get�lio Vargas (FGV). O memorando tem o n�mero 99 e � da gest�o Nixon.
Temer defende Geisel
Bras�lia – O governo brasileiro saiu em defesa das For�as Armadas e reagiu com desconfian�a ao memorando escrito em 1974 pelo ent�o diretor da Ag�ncia Central de Intelig�ncia (CIA), dos EUA, que afirma que o ex-presidente Ernesto Geisel havia dado autoriza��o para execu��es de “subversivos perigosos” durante o seu governo, transformando essas execu��es em pol�tica de Estado. “Nesses tempos de dela��es, de disse que disse, aprendi que � preciso ter muito cuidado com informa��es dessa natureza”, afirmou o presidente Michel Temer em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo. Ao dizer que, ao receber a informa��o, “achou a hist�ria muito estranha”, o presidente declarou ter chamado sua aten��o o fato de as revela��es virem de fora do pa�s: “Os documentos n�o s�o nacionais, s�o da CIA, entidade estrangeira. Nem tudo o que a CIA diz � necessariamente verdade, � uma verdade absoluta.”
Temer tamb�m avaliou que “n�o h� um s� documento, um s� registro, um s� depoimento dos envolvidos” corroborando a vers�o da CIA, que agora vem a p�blico pelo pesquisador da FGV Mathias Spector. Em seguida, Temer acrescentou: “E a gente sabe como �. Essas coisas sempre acabam sendo faladas. Como nunca foram faladas aqui no Brasil at� agora?” Temer disse que, pela sua pr�pria experi�ncia, sabe que “presidentes n�o conseguem acompanhar tudo o que acontece l� embaixo, no governo”. Por isso, indagou: “Ser� mesmo que o general Geisel saberia disso, teria autorizado isso?”
Ele citou, inclusive, sua vers�o sobre a frase atribu�da ao ent�o vice-presidente da Rep�blica, Pedro Aleixo, ao discordar da aplica��o do AI-5 em 1968 e tentar substitui-lo pelo instrumento do estado de s�tio: “N�o tenho medo do AI-5, tenho medo do que o guarda da esquina ir� fazer com esse ato”. Al�m de manifestar d�vidas quanto � veracidade da informa��o que chegou � CIA, Temer tamb�m tentou fazer uma defesa subjetiva de Geisel: “Isso n�o combina com o legado do presidente, conhecido pelo empenho em promover a abertura pol�tica, a volta � democracia”.
Para o ministro da Seguran�a P�blica, Raul Jungmann, a divulga��o dos documentos da CIA n�o afeta o “prest�gio” das For�as Armadas. Ex-ministro da Defesa, Jungmann disse que o governo ainda n�o teve acesso ao documento de forma oficial, mas afirmou que alguma medida deve se tomada. “O governo n�o tem conhecimento desses documentos, n�o estamos desconsiderando (o documento da CIA), mas precisamos ter acesso de forma oficial. O prest�gio das For�as Armadas permanece nos mesmos n�veis. As For�as s�o um ativo democr�tico, isso n�o � tocado por uma reportagem”, afirmou.
Jungmann foi evasivo, no entanto, quando questionado sobre quais a��es efetivamente devem ser tomadas pelo governo brasileiro. “N�o tivemos acesso a documentos oficiais. N�o � minha �rea, n�o � decis�o minha. Alguma medida deve ser tomada, mas n�o � da minha �rea. N�o sou mais ministro da Defesa, quem deve tomar essa decis�o s�o os respons�veis pela �rea”, completou.