“Gar�om, no bar, todo o mundo � igual”. Quando comp�s o sucesso Gar�om, o saudoso Reginaldo Rossi (1943-2013), rei do brega, chorava a fossa de uma dor de amor. Parecia, no entanto, descrever a nova moda que pegou em BH ap�s as elei��es de 2018. A capital dos botecos ganhou este ano bares em que todo mundo � igual, pelo menos em mat�ria de pol�tica. A polariza��o dividiu a boemia e levou � inaugura��o de estabelecimentos com vi�s ideol�gico: Ursal, para quem � de esquerda, e O Destro, para quem � de direita.
A reportagem visitou os dois na �ltima quinta-feira para investigar o que bebem, o que comem e sobre o que conversam frequentadores de bares politizados. Uma noite que incluiu desde a pr�tica de tiro ao alvo, uma das atra��es de O Destro, ao acompanhamento da grava��o de v�deo com todos os clientes do Ursal chamando o socialista Guilherme Boulos (Psol), que foi candidato � Presid�ncia e estava em BH no dia, para tomar a saideira.
E, se a ideologia separa os bares, eles se aproximam em muitos, muitos pontos. Ambos pregam a liberdade e, pasmem, t�m clientela que evita falar sobre pol�tica no boteco. Tamb�m contam com cervejas artesanais pr�prias – a summer ale Destra, � direita, e a blonde ale Lula Livre, � esquerda – e com semelhan�as na gastronomia. Estrela vermelha do Ursal, o p�o com mortadela – que se tornou refer�ncia de quem � de esquerda – � ironizado no card�pio da direita. “Tem, mas acabou”, diz. Mas coxinha – apelido pra quem � de direita – nunca falta, de v�rios sabores: carne seca, frango e camar�o entre outros.

Em O Destro, clientes podem optar por “A Lula t� presa” (an�is de Lula e cogumelos shimeji). J� no Ursal, Lula Livre (carne acebolada com mandioca) � um dos tira-gostos mais pedidos, que, no combo, acompanha cerveja de mesmo nome e um p�ster autografado do ex-presidente. O discurso da ent�o presidente Dilma Rousseff (PT) sobre a mandioca tamb�m inspirou pratos nos dois estabelecimentos. “Estou saudando a mandioca. Uma das maiores conquistas do Brasil”, disse ela durante os Jogos Mundiais dos Povos Ind�genas, em 2015. No Ursal, a mandioca com parmes�o � batizada de “Volta, querida!”, com a observa��o: “Para saudar de joelhos”.
O “Saudando a mandioca!”, lingui�a de porco com mandiocas cozidas, � encontrado em O Destro. “O molhinho do ‘Saudando a mandioca’ est� sensacional”, observa o engenheiro de Minas Kerim Savassi, de 28 anos, pela primeira vez no bar de direita. “Num bar de direita, voc� pode se expressar mais livremente. Mas, hoje, acabamos n�o conversando sobre pol�tica”, conta. Ligado ao pensamento mais � esquerda, o engenheiro Tales Lacerda, frequentador ass�duo do Ursal, tamb�m acaba n�o conversando sobre pol�tica no bar tem�tico. “Como todo mundo pensa igual, n�o precisa discutir pol�tica, s� divertir”, diz.

ESQUERDA, VOLVER
O nome Ursal ficou conhecido depois que o ent�o candidato � Presid�ncia Cabo Daciolo (Patri) sugeriu, no primeiro debate presidencial de 2018, que o advers�rio Ciro Gomes (PDT) fizesse parte da chamada Uni�o das Rep�blicas Socialistas da Am�rica Latina (Ursal). Desde janeiro, a sigla identifica o bar belo-horizontino que virou reduto de opositores ao presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Inaugurado na ressaca da elei��o na Rua Dores do Indai�, no Bairro Santa Tereza, tradicional reduto da boemia, na Regi�o Leste de BH, ele foi criado para ser espa�o de resist�ncia ao governo do capit�o reformado.
Desiludida com a vit�ria de Bolsonaro e depois de ser expulsa de grupos de fam�lia de WhatsApp, a corretora Ranara Feres, de 32 anos, l�sbica e defensora do comunismo, teve o insight de que “a revolu��o � de bar em bar” e a �nica solu��o para atravessar o per�odo bolsonarista seria abrir um boteco. “Ganhei um carro de heran�a e troquei pelo ponto”, conta Ranara.
“A gente estava com medo e pensamos num lugar em que nos sent�ssemos seguros e pud�ssemos ser felizes, num ambiente de liberdade”, diz. Apesar disso, neste m�s, funcion�rios do estabelecimento foram agredidos por um vizinho do bar. Ranara atribui o epis�dio � intoler�ncia pol�tica e ao conservadorismo. “Estamos vivendo um momento absurdo. O Brasil tem que beber mesmo”, afirma a vendedora Lu�sa Amaral, de 26 anos, frequentadora do Ursal. “Adoro o ambiente, as m�sicas. Me sinto livre aqui”, diz.
O Ursal foi aberto com a s�cia Camila Cienfuegos, que se apresenta desta forma em homenagem a Camilo Cienfuegos, um dos l�deres da Revolu��o Cubana. Camila carrega na pele a paix�o pelo comunismo e tem tatuado o rosto de Cienfuegos, Che Guevara e Fidel Castro, al�m da foice e do martelo e a frase “Patria o muerte”, de Fidel. Assim como as tatuagens da propriet�ria, as paredes do bar s�o repletas de refer�ncias a Cuba.

CHARUTO
A simplicidade do ambiente em im�vel antigo remete � atmosfera de Havana. At� o aut�ntico charuto cubano pode ser comprado no estabelecimento, que abrir� em breve a segunda unidade, no Bairro Santa Efig�nia, o Ursal Praia, inspirado na praia cubana de Varadero. Mas a m�sica � brasileir�ssima, sem deixar de fora Caetano Veloso e Chico Buarque – que tocaram durante a ida da reportagem ao bar – e m�sicos da cena independente.
Bandeiras de rep�blicas comunistas e socialistas, estrela vermelha e fotos de Che Guevara comp�em a decora��o. E ele n�o � o �nico a ser homenageado no boteco, com p�ster da pintora mexicana Frida Kahlo e do ex-presidente venezuelano Hugo Ch�vez. Al�m de dar nome a pratos e cerveja “Lula Livre”, o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva aparece em v�rios cartazes do boteco.
O estabelecimento tamb�m j� promoveu v�rias festas, como o 1º de Abril, Dia da Mentira, considerado o dia do “Bolsonday”, e a festa em comemora��o � pris�o do ex-presidente Michel Temer (MDB).
As s�cias afirmam que os funcion�rios t�m carteira assinada e que h� uma pol�tica de participa��o de lucros na casa, mas reconhecem que a maior parte do faturamento est� sendo destinada � abertura da segunda unidade. Elas tamb�m garantem que os propriet�rios do O Destro j� foram vistos na Ursal, bebendo “Lula Livre”.

DIREITA, VOLVER
A direita vem ganhando espa�o no pa�s, desde o Pal�cio do Planato, com a elei��o do presidente Jair Bolsonaro (PSL) �s mesas de bar. Inaugurado em mar�o, O Destro, na Rua Pium-�, no Bairro Sion, Zona Sul de BH, se apresenta como primeiro bar de direita do Brasil. “Em BH tem v�rios bares com refer�ncia � esquerda e criar um de direita surgiu como brincadeira”, afirma Jos� Neto, um dos quatro s�cios do estabelecimento.
Para o cliente desavisado, o local pode passar por um barzinho comum entre os tantos do reduto bo�mio da Zona Sul, com pessoas bebendo em ambientes decorados com TVs de plasma, luz indireta e m�veis no estilo “varanda gourmet”. Mas aos poucos aparecem as evid�ncias de que n�o se trata somente de um bar. “A ideia � ser tamb�m um espa�o para debater ideias que n�o chegam nas universidades”, comenta Neto, explicando que o bar vai receber sess�es de cinema e lan�amentos de livros ligados � tem�tica.
A doutrina liberal tamb�m inspira promo��es. Ter�a-feira � dia de “Imposto � Roubo”, quando a casa oferece chope e tira-gosto mais barato, descontando o valor dos tributos. Na quinta-feira, o bar d� 20% de desconto na carta de drinques, em refer�ncia � luta de Tiradentes contra a cobran�a do quinto pela Coroa portuguesa. Sentados � direita de quem entra no bar, o casal Osvaldo Vaz, de 48, e Ruth Silva, de 52, escolheram mesa pr�xima � imagem do m�rtir e disseram estar animados com o momento pol�tico. “O pa�s agora vai endireitar”, comenta Ruth.
Quadros com rostos de defensores do pensamento liberal e do Estado m�nimo, como o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan e a ex-primeira-ministra brit�nica Margareth Thatcher, ornam as paredes. O �nico homenageado vivo � o escritor Olavo de Carvalho, considerado guru de Bolsonaro. “Esse fen�meno da direita no Brasil � por causa do Olavo”, afirma. Se Bolsonaro vai virar quadro? ”O Bolsonaro � presidente h� tr�s meses, deixa ele fazer alguma coisa”, responde Neto, que ressalta que o bar n�o tem qualquer liga��o partid�ria.
LIVROS
O livro O m�nimo que voc� precisa saber para n�o ser um idiota, de Olavo, � um dos volumes para empr�stimo na pequena biblioteca do boteco, que conta tamb�m com exemplar “A verdade sufocada – A hist�ria que a esquerda n�o quer que o Brasil conhe�a”, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, s�mbolo da repress�o na ditadura militar. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro apontou ser esse seu livro de cabeceira.
Bem perto da biblioteca, um espa�o de airsoft, simula��o de tiro ao alvo. Por R$ 9,90, o cliente tem direito a seis tiros para num alvo de papel, onde o engenheiro de minas Kerim Savassi, de 29 anos, e Marcelo Ubaldo, de 28, ambos a favor do porte de armas e do liberalismo, se divertiam. “Viemos para conhecer, mas ser de direita n�o impede que a gente pule carnaval em bloco de esquerda, que s�o os melhores”, comenta Ubaldo.
A trilha sonora de O Destro tamb�m tem vi�s ideol�gico e as playlists privilegiam artistas que se posicionaram a favor do pensamento liberal, como Frank Sinatra, Johnny Cash e Lob�o. Caetano Veloso e Chico Buarque s�o vetados. “Esse pessoal que puxa saco de ladr�o n�o toca aqui”, diz o propriet�rio. Mas, segundo ele, todos os clientes s�o bem-vindos. “Todo mundo � livre para beber onde quiser”, diz.