
A impunidade de muitos crimes raciais no Brasil � estimulada, principalmente, pela omiss�o do Poder Judici�rio, contaminado por um racismo estrutural presente na sociedade e nas institui��es do pa�s. A opini�o � da advogada Eunice Aparecida de Jesus Prudente, 73 anos, que conhece de perto o assunto e o estuda com profundidade. Eunice Prudente critica a baixa aplica��o da Lei do Racismo, crime inafian��vel e imprescrit�vel
Ex-secret�ria de Justi�a do Estado de S�o Paulo, Eunice Prudente tamb�m revela ter militado no Movimento Negro ao lado do jornalista e escritor Oswaldo de Camargo. Ele � pai do atual presidente da Funda��o Palmares, S�rgio Camargo, que, recentemente, chamou o movimento de “esc�ria maldita”. Na avalia��o de Prudente, S�rgio Camargo comete il�cito ao negar as atribui��es legais da Funda��o Palmares. A seguir, os principais trechos da entrevista
Em pleno s�culo XXI, a popula��o brasileira est� indo �s ruas protestar contra o racismo. O que isso diz sobre a nossa sociedade?
Diz que ela est� exercendo o direito fundamental como posto pela Constitui��o Federal no artigo quinto, que � de se reunir pacificamente, em manifesta��es em locais p�blicos, e h� um motivo muito forte, muito grave para isso: a despeito de, com muita luta, muita contribui��o dos movimentos sociais, em especial do Movimento Negro, para que a Constitui��o criminalizasse a discrimina��o racial, ainda atos ocorrem. Particularmente ou individualmente temos pr�ticas racistas, mas muitas vezes essas pr�ticas s�o institucionais; isso � muito grave. Institui��es p�blicas e privadas v�m praticando discrimina��o racial. Neste momento, a popula��o se volta para uma quest�o grav�ssima, que � o fato de as pol�cias militares dos estados terem j� uma pr�tica bastante violenta contra homens negros, principalmente jovens negros. O F�rum Nacional de Seguran�a P�blica traz n�meros, o Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada, o Ipea, tamb�m traz essas den�ncias com n�meros. Ent�o n�s n�o estamos aqui opinando, estamos nos baseando em n�meros. H�, sim, uma persegui��o policial que alcan�a a juventude negra em termos de perdas de vidas.
A legisla��o brasileira obteve avan�os em rela��o ao combate ao racismo. Mas esse crime continua sendo praticado amplamente no Brasil. Por qu�?
Nossa Constitui��o � inclusiva, avan�ou-se juridicamente, porque os movimentos sociais se uniram, enfrentando a ditadura militar recente e, pela primeira vez na hist�ria, uma sociedade civil organizada participou de uma Constituinte. Ent�o essa Constitui��o � inclusiva porque ela tem muito de n�s, brasileiros. E o Movimento Negro, obviamente, tamb�m cresceu, evoluiu junto com os demais movimentos, que cuidavam de quest�es muito particulares e precisas. � o movimento dos trabalhadores, o movimento LGBT, o feminismo voltado para os direitos das mulheres, o Movimento Negro. Quando esses movimentos organizam assembleias, exibem manifestos, atuam conjuntamente, todos crescem, porque v�o conhecer melhor a pr�pria sociedade, os problemas sociais, e a� vem essa Constitui��o cidad�, assim chamada por Ulysses Guimar�es. Mas a pergunta �: como � que avan�amos juridicamente, mas os aplicadores do direito ainda sentem uma grande dificuldade para aplicar esse direito? Porque entre n�s, o racismo, as discrimina��es muitas vezes s�o praticadas pelas pessoas, pelas institui��es, mas a� vem a contribui��o do jovem jurista e professor S�lvio Almeida: o racismo estrutural. Est� a� nas estruturas, precisamos vencer isso.
H� uma grande impunidade para os crimes raciais no Brasil. Por que isso acontece?
� muito grave que os profissionais de direito se comportem dessa maneira. A quest�o � que os ju�zes n�o deixam de ser pessoas brasileiras, n�o deixam de estar inclu�dos nesta sociedade, onde o racismo � estrutural. A pessoa � educada e formada considerando o outro como um ser � parte, v� a quest�o da escraviza��o como algo dos negros, eles que cuidem, n�o � uma quest�o pol�tica brasileira, no pensamento deles, � claro. Ent�o, o juiz pensa: 'Eu estou aqui judicando, exercendo uma das fun��es do poder. E vai chegar diante de mim um r�u que n�o � um r�u pobre; n�o � o mo�o pardo pobre das periferias das cidades brasileiras. � um outro r�u, � a dona do col�gio t�o importante', etc. S�o as pr�ticas dos shopping centers, onde os seguran�as s�o orientados a seguir, a vigiar os cidad�os negros, ou nas rela��es do trabalho, em que o empregador diz 'n�o quero, n�o emprego negros', etc.
Na sua vis�o, ent�o, o Judici�rio tamb�m est� contaminado pelo racismo estrutural no Brasil.
Veja a que n�vel n�s chegamos. A situa��o, por exemplo, quando o juiz tem diante dele um r�u com um perfil muito parecido, e esse r�u � acusado de racismo. E a� n�s temos a rela��o, essa institui��o de um par�grafo do artigo do C�digo Penal que trata dos crimes contra a honra, como a inj�ria. A inj�ria racial, ela existe. Mas ela est� sendo constru�da, ou reconstru�da pelo pr�prio Judici�rio. Estamos chegando, j� temos jurisprud�ncia, de quando, por exemplo, voc� ou qualquer um de n�s que sofre uma inj�ria racial, esta inj�ria est� alcan�ando, na verdade, todo o contingente de pessoas negras. E ent�o, n�o deve ser mais encarada como um crime contra a sua pessoa, � sua honra, mas a pr�tica do crime de racismo como previsto, l� na 1.716 de 1989, ou seja, crime de racismo, inafian��vel, imprescrit�vel. O fato de ser inafian��vel, de mandar, imediatamente, para a pris�o um r�u que n�o tem o perfil do mo�o pobre, isso tamb�m, a gente nota, at� nas audi�ncias de cust�dia da atualidade, notamos uma certa dificuldade de os ju�zes mandarem para a cadeia p�blica.
Os tratamentos s�o diferentes, dependendo da cor e da lasse social?
Sim. Uma aluna que faz est�gio veio assim muito preocupada conversar conosco dizendo 'olha, eu estava l� estagiando, era uma audi�ncia de cust�dia, e o juiz e o promotor, ou seja, o Judici�rio e o Minist�rio P�blico, ficaram l� muitos minutos, quase uma hora, dando conselhos para uma mo�a r�, que era estrangeira, da Europa, loira, etc, totalmente fora aqui dos padr�es dos pobres brasileiros. Ent�o ficaram dando conselhos para ela que ela precisava mudar toda a maneira de ser dela, enfim, uma s�rie de cuidados com essa pessoa'. Eu disse para a aluna: 'Eu nunca vi nenhum juiz fazer isso. Que pena, porque este seria o papel dele e do Minist�rio P�blico'. Essa cultura do punitivismo � um ran�o atrasado do Brasil, porque quem era punido durante 400 anos em pra�a p�blica no pelourinho? O escravizado. Ent�o, essa cultura de punitivismo, de ver os cidad�os negros sempre como suspeitos � a express�o desse racismo estrutural. Isso � cultura atrasada. A Constitui��o, que pro�be a pena de morte, pro�be pris�o perp�tua, pro�be penas cru�is, nos d� um recado muito claro: � preciso a reinser��o social, trazer a pessoa de novo ao conv�vio da sociedade.
A senhora militou no Movimento Negro. O presidente da Funda��o Palmares, S�rgio Camargo, chamou o Movimento Negro de “esc�ria maldita”. Como recebeu isso?
Recebo como uma ofensa muito grave, como um delito mesmo, inclusive administrativo, porque ele � administrador de uma funda��o p�blica, ele est�, publicamente, atuando contra a pr�pria institui��o que ele est� dirigindo. Ele est�, sim, praticando um ato ilegal, porque trai a finalidade legal da pr�pria institui��o, a Funda��o Palmares. Ele n�o poderia estar mais l�. A situa��o dele j� est� sub judice, j� est� em processo. Ele foi afastado judicialmente, depois voltou, com liminares, mas ainda h� processos em andamento, porque a pessoa est� manifestamente, atuando contra a pr�pria institui��o que dirige.
Que delitos podem ser atribu�dos ao presidente da Palmares?
A Constitui��o trata, no artigo 37, da legalidade, da publicidade, da impessoalidade, da moralidade na administra��o p�blica. A quest�o da moralidade p�blica � bem aplic�vel contra as manifesta��es dessa pessoa. Isso � motivo, sem d�vida alguma, para o ministro ao qual est� vinculada essa funda��o demiti-lo, ou o pr�prio presidente da Rep�blica. Se n�o o fazem, a� temos que ir ao Poder Judici�rio, e j� se foi, como o fizeram partidos pol�ticos, e acho que � uma quest�o de tempo, porque suponho que esteja sendo aplicado o devido processo legal, ele tendo o tempo para promover a defesa dele, e haver� um veredito. E acho que a decis�o � pela exonera��o dessa pessoa.
Ainda em rela��o � Funda��o Palmares, estaria havendo desvio de finalidade e desperd�cio de recursos p�blicos?
Desvio de finalidade � justamente o que o presidente da funda��o est� praticando. O dinheiro p�blico que est� sendo ali investido n�o est� sendo dirigido para a finalidade da inclus�o do afrodescendente, da educa��o, das finalidades buscadas pela Funda��o Palmares. Neste caso h�, sim, um desvio, � o princ�pio da legalidade, e acho que alcan�a tamb�m um outro princ�pio, que � o da efici�ncia na administra��o p�blica, que est� no mesmo artigo 37. Ele n�o est� buscando os fins para os quais a funda��o foi institu�da, ent�o ela n�o est� prestando os servi�os p�blicos com efici�ncia, sob a dire��o dele.
A senhora conheceu o pai do presidente da Funda��o Palmares. Ele e a senhora militaram juntos no Movimento Negro. Poderia dar detalhes sobre isso?
Eu n�o vou falar sobre isso at� por uma quest�o de �tica. A �nica coisa que digo � que conheci e conhe�o o jornalista, pianista, poeta e escritor Oswaldo de Camargo. H� um livro dele chamado O negro escrito, que � uma li��o de conhecimentos mostrando o protagonismo negro no mundo antigo, no mundo medieval, nas artes, uma demonstra��o de conhecimento e de consci�ncia pol�tica e racial. Ele foi jornalista do jornal O Estado de S. Paulo. Ent�o, tamb�m me entristece, portanto, as manifesta��es p�blicas desse senhor S�rgio Camargo. O Oswaldo de Camargo integrou o Movimento Negro aqui no estado de S�o Paulo no passado, hoje est� com mais de 80 anos.
Apesar de tudo, o presidente Jair Bolsonaro insiste em manter o presidente da Funda��o Palmares no cargo. O que acha disso?
� uma pena. � uma pena, porque as principais fun��es do poder s�o Legislativo, Executivo, Judici�rio, Minist�rio P�blico, mas sempre a �ltima palavra � do Judici�rio, uma vez que o Supremo Tribunal Federal � o guardi�o da Constitui��o e respons�vel pelo controle. Afinal, da constitucionalidade de todos os atos praticados pelo poder. � uma pena, porque o Executivo tem a administra��o p�blica como uma estrutura para atender �s necessidades do povo. Ent�o, caberia a ele resolver essa quest�o, n�o nos consta que tenha resolvido. E o Judici�rio vai acabar dando a �ltima palavra, e isso � grave, porque, mais uma vez, n�s vamos ver o Judici�rio resolvendo uma quest�o que era para o Executivo ter resolvido.
Fascismo e racismo t�m rela��o?
H� uma rela��o, porque no fascismo, enquanto doutrina pol�tica, o Estado subjuga o cidad�o. O cidad�o servia ao Estado, n�o havia o direito do cidad�o de participar da organiza��o da vida em sociedade. Ele n�o era considerado capaz para tal. Mas, vejam que ideias fascistas aliaram-se a ideias racistas, e a� temos o nazismo, trazendo ainda a cultura de que existem ra�as humanas e que h� uma hierarquia entre elas. Ent�o, eu acho que racismo e o fascismo s�o, antes de tudo, a��es que v�o contra as demonstra��es cient�ficas. As ci�ncias j� vieram, fizeram suas demonstra��es em sociedade, mas algumas pessoas ainda adotam essas pr�ticas, e elas precisam ser alcan�adas pelos �rg�os do Estado.
Muitas pessoas t�m defendido, em manifesta��es, ideias antidemocr�ticas e fascistas.
Sim, � a liberdade de express�o. Ent�o tem gente pensando bem diferente de n�s. Mas eu n�o vejo isso como um perigo; pelo contr�rio, eu vejo isso nos chamando a aten��o de quanto a nossa cidadania precisa ser ativa. N�o basta ser antifascista, ou antirracista. � preciso, realmente, ter a��es positivas, de inclus�o, n�o basta apenas dizer, precisa, realmente, de uma pr�tica democr�tica na fam�lia, no trabalho, na nossa atua��o pol�tica. Eu vejo isso como uma instiga��o, e isso eu digo, pessoas nas ruas, com m�scaras, com tochas acesas lembrando a Ku Klux Klan, vejo todas essas a��es como um chamado a todos n�s para uma atua��o pol�tica nos termos postos pela Constitui��o. Eu costumo dizer que � pela via da educa��o que venceremos preconceitos e a discrimina��es, inclusive o autoritarismo. E essa vit�ria n�o levar� muito tempo, porque, hoje, temos a tecnologia para ser utilizada na educa��o, levando a informa��o a esses 53% de negros brasileiros. Informa��o sobre o protagonismo negro, do quanto fomos e somos importantes nessa sociedade, e � com a conscientiza��o pol�tica que as pessoas v�o perceber que a banaliza��o da viol�ncia entre n�s � resultado de pr�ticas violentas.
A senhora � a primeira e �nica professora negra da Faculdade de Direito da USP. A que atribui isso?
Atribuo � discrimina��o racial, at� por ser uma advogada ativista na OAB. Fui diretora em uma das gest�es da OAB, fui diretora da Escola Superior de Advocacia da OAB. Nas comiss�es da OAB contra a discrimina��o racial, al�m do contato em processos judiciais, vi magistradas, principalmente muitas advogadas, de excelente n�vel de conhecimento, muito bem preparadas. Por que s� eu, mulher negra na Faculdade de Direito da USP? Ent�o, realmente, isso � fruto de empecilhos que colocam �s mulheres, sobretudo aos negros. Ent�o acabei ficando a �nica professora negra. N�o � que me incomode, � que isso deixa muito claro a necessidade imediata de democratizar os acessos � doc�ncia na Universidade de S�o Paulo. Mas tamb�m em outras faculdades da Universidade de S�o Paulo temos muito poucos professores negros. Mas eu quero estar, ainda, viva para ver isso mudar.