
Desde que chegou ao poder, em 2010, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orb�n, vem acumulando poderes por meio de uma guinada autorit�ria que come�ou no Judici�rio e no Legislativo, avan�ou para a imprensa e chegou �s escolas.
Em pouco mais de uma d�cada, Orb�n trocou centenas de ju�zes das cortes h�ngaras por aliados, alterou a lei eleitoral para beneficiar seu partido, transformou centenas de jornais independentes em m�quinas de propaganda do Estado e chegou a reimprimir livros did�ticos de Hist�ria com conte�do considerado xenof�bico.
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O primeiro-ministro h�ngaro foi um dos poucos l�deres europeus presentes na posse de Jair Bolsonaro em 2019. Poucos meses depois, em abril, recebeu Eduardo Bolsonaro em Budapeste, quando o filho do presidente estava � frente da Comiss�o de Rela��es Exteriores da C�mara.
Bolsonaro retribuiria a visita em 2020, mas teve de suspender os planos por conta da pandemia de covid-19. Nesta quinta-feira (17/2), ele realiza a primeira viagem oficial ao pa�s.
O presidente brasileiro n�o � o �nico a fazer acenos ao pol�mico primeiro-ministro. O avan�o do autoritarismo na Hungria fez de Orb�n inspira��o para a ultradireita em outros pa�ses.� o caso da Pol�nia, que vem implementado uma s�rie de medidas que retiram autonomia do Judici�rio. No poder h� 6 anos, o partido ultraconservador polon�s Lei e Justi�a j� declarou espelhar-se nele e no seu Fidesz (Partido Uni�o C�vica H�ngara).
"A Hungria � um pa�s pequeno [com cerca de 9,7 milh�es de habitantes], e, quando se trata das grandes decis�es no cen�rio internacional, o primeiro-ministro n�o tem muito a dizer - mas � verdade que Orb�n tem uma influ�ncia desproporcional ao tamanho do pa�s que comanda", avalia o cientista pol�tico Zsolt Enyedi, professor da Central European University (CEU).
Na avalia��o de Kim Lane Scheppele, professora de sociologia e rela��es internacionais na Universidade de Princeton, nos EUA, Orb�n chama aten��o da ultradireita por ter conseguido incorporar uma esp�cie de "ditador do s�culo 21", que corr�i as institui��es democr�ticas por dentro, muitas vezes de forma discreta, por meio da lei.
"Se pensarmos nos ditadores do s�culo 20 - Hitler, Stalin -, eles vinham com ideologias, tanques nas ruas…todos esses sinais perigosos que hoje todos reconhecemos e que, uma vez identificados, provavelmente seriam combatidos. As novas ditaduras conhecem esse script - e fazem diferente", diz ela, que � especialista em direito constitucional h�ngaro.
"O que eles fazem � ati�ar as massas com uma ret�rica inflamada. Mas h� um limite do que a ret�rica inflamada pode fazer, ent�o eles v�o consolidando poder atrav�s de mudan�as legais, bloqueando poder de forma que a oposi��o tenha cada vez menos chance de ganhar as elei��es. Eles mant�m uma fachada democr�tica, mant�m todas as institui��es em seus lugares para fazer parecer que ainda existe democracia", completa.
Entenda, em quatro pontos, a estrat�gia por tr�s da escalada autorit�ria na Hungria - e por que ela vai ser colocada � prova nas elei��es nacionais marcadas para abril.
1. O controle do Judici�rio
Orb�n � um velho conhecido da pol�tica h�ngara. Estudante de Direito no fim dos anos 1980, estava entre os jovens que tomavam as ruas da capital, Budapeste, para protestar contra o regime comunista (a Hungria esteve na esfera de influ�ncia da Uni�o Sovi�tica por 50 anos, de 1949 a 1989).
Conquistou o primeiro cargo pol�tico em 1990, eleito para o parlamento. Tornou-se primeiro-ministro em 1998 e perdeu a disputa pela reelei��o em 2002. Foi nessa �poca que seu partido deu in�cio a uma guinada ideol�gica, deixando para tr�s o vi�s liberal e abra�ando um discurso nacionalista e religioso, centrado na religi�o cat�lica.
A ret�rica conservadora o al�ou de volta ao poder em 2010 - e o ajudou a se reeleger em 2014 e 2018.
Pouco depois de tomar posse, ainda no primeiro mandato, Orb�n aproveitou a ampla base de apoio que conquistara no Parlamento para aprovar uma s�rie de medidas que enfraqueciam o Judici�rio.
Aumentou o total de ju�zes do Tribunal Constitucional de 11 para 15 e indicou todos os ocupantes das quatro novas cadeiras. Reduziu a idade de aposentadoria compuls�ria para ju�zes e promotores, abrindo espa�o para indica��es de aliados. Criou o controverso Departamento Judici�rio Nacional para centralizar a administra��o e coordenar a indica��o de novos ju�zes.
A primeira titular do DJN foi uma colega de faculdade de Orb�n, T�nde Hand�. Seu marido, J�zsef Sz�jer, ajudou a redigir a nova Constitui��o aprovada em 2011, que substituiu a Carta de 1949.
Diversas institui��es independentes j� apontaram que o Judici�rio vem perdendo sua autonomia e prejudicando a separa��o entre os tr�s poderes considerada essencial para o bom funcionamento da democracia.
Ainda em 2012, quando a nova Constitui��o entrou em vigor, a Comiss�o de Veneza, �rg�o consultivo do Conselho Europeu (institui��o oficial da Uni�o Europeia), chamou aten��o para a concentra��o excessiva de poder do Departamento Judici�rio Nacional, que contradiz o princ�pio da independ�ncia do Judici�rio defendido pela Uni�o Europeia, da qual a Hungria � membro desde 2004.
"� uma institui��o problem�tica, � qual foram dados poderes excessivos e que � dirigida por pessoas pr�ximas ao governo", resume Lydia Gall, advogada no Human Rights Watch, organiza��o de promo��o dos direitos humanos que tem acompanhado de perto a situa��o no pa�s.
Al�m de escolher ju�zes, o DJN tem a prerrogativa de distribuir parte dos casos entre as cortes - decidindo, na pr�tica, qual juiz vai avaliar cada caso. Em paralelo, o Conselho Nacional de Justi�a, que deveria coibir eventuais abusos e garantir o bom funcionamento do judici�rio, foi esvaziado.

2. Uma avalanche de novas leis
O controle do Judici�rio anda de m�os dadas com outra caracter�stica marcante do regime de Orb�n, a transforma��o do arcabou�o legal.
Logo nos primeiros anos de mandato, o primeiro-ministro aproveitou a maioria que tinha no Parlamento para mudar uma enxurrada de leis - al�m de redigir uma nova Constitui��o.
Scheppele, que estuda justamente o sistema legal do pa�s, lembra que teve de contratar um pesquisador assistente para conseguir dar conta do volume de trabalho.
"O Parlamento aprovava muita coisa. Eram 300 p�ginas de leis - e no meio delas alguns par�grafos sobre outra coisa, que se relacionavam com algo que estava escrito em outro lugar. Era preciso ler com aten��o cada palavra para entender o que estava acontecendo e montar uma esp�cie de quebra-cabe�a", conta.
"Em determinado momento meu conhecimento de h�ngaro n�o era r�pido o suficiente para dar conta das milhares de p�ginas, e tive de contratar um assistente."
Para ela, esse foi um movimento planejado.
"Enquanto esteve fora do poder, o partido de Orb�n literalmente pagou para que empresas de todo o pa�s redigissem projetos de lei. Por isso o sistema � t�o herm�tico e permite um bloqueio t�o significativo de poder - porque eles o desenharam como um sistema antes de voltar ao poder em 2010."
Uma caracter�stica particular da Hungria, contudo, facilitou o processo, acrescenta Enyedi.
Ao contr�rio do Brasil, por exemplo, que � uma federa��o com Estados, em que governadores concentram um certo n�vel de poder, o pa�s � um Estado unit�rio.
"� mais f�cil centralizar poder", diz ele.
"O que Orb�n fez foi tomar controle de todos os operadores da pol�tica logo que foi eleito e depois, gradualmente, acumular poder sobre os processos de tomada de decis�o em cada segmento da sociedade. Hoje nenhuma grande decis�o � tomada na ind�stria da moda, da cultura, do esporte, dos neg�cios [livre de influ�ncia do governo]."

3. O cerceamento da imprensa
O controle da imprensa tamb�m tem sido um pilar importante no processo de concentra��o de poder em torno de Orb�n.
"Hoje algo entre 85% e 90% dos meios de comunica��o s�o direta ou indiretamente controlados pelo governo", diz Gall, que vive h� 15 anos em Budapeste.
Ao contr�rio do que aconteceu com o Judici�rio e com o sistema legal, contudo, a transforma��o nessa frente foi mais gradativa. No decorrer dos �ltimos 12 anos, foram v�rios os instrumentos usados pelo governo para sufocar a liberdade de imprensa.
Um deles � o �rg�o regulador, criado ainda em 2010. O Nemzeti M�dia- �s H�rk�zl�si Hat�s�g (NMHH, algo como "autoridade nacional de m�dia e infocomunica��es") tem controle sobre as concess�es de r�dio e televis�o e poderes para multar empresas de m�dia, inclusive por causa de coberturas que considere desequilibradas - algo que jornalistas afirmam ser usado para intimidar os profissionais.
Um caso com grande repercuss�o nesse sentido foi o da r�dio Klubr�di�, que perdeu a licen�a para operar no in�cio de 2021, ap�s uma longa batalha judicial, que durou quase uma d�cada.
Ao comentar sobre o caso, Andr�s Arat�, que durante 20 anos comandou a emissora, afirmou que foram muitos os obst�culos com os quais a r�dio se deparou. Houve os problemas com Conselho de M�dia (ligado ao NMHH) e com a Justi�a, mas tamb�m quest�es de ordem financeira.
Segundo ele, o governo pressiona empresas privadas para que suspendam os an�ncios em ve�culos vistos como cr�ticos, al�m de redirecionar sua verba para publicidade aos meios simp�ticos � administra��o.
"Em vez de atacar a liberdade de imprensa de forma direta, prendendo jornalistas ou censurando jornais, Orb�n usou alavancas econ�micas para enfraquecer a imprensa independente. Foi uma estrat�gia inteligente, que evitou como��o internacional, mas que aos poucos, um a um, os meios de comunica��o independentes foram sendo eliminados", afirmou Arat� em um artigo de opini�o.
A ofensiva ganhou outra frente no fim de 2018, quando foi criada a Funda��o de Imprensa e M�dia da Europa Central, conhecida pelo acr�nimo KESMA (de K�z�p-Eur�pai Sajt� �s M�dia Alap�tv�ny).
De l� para c�, dezenas de empresas privadas transferiram os direitos de propriedade para a funda��o, que se tornou um gigante da m�dia do pa�s. Hoje concentra mais de 500 ve�culos, entre canais de televis�o, portais de not�cias e esta��es de r�dio que, de forma geral, fazem uma cobertura elogiosa ao governo.
Em um relat�rio t�cnico feito a pedido da Comiss�o Europeia, o Centro para o Pluralismo da M�dia e a Liberdade de Imprensa (Center for Media Pluralism and Media Freedom), ligado � European University Institute, afirmava em 2019 que a fus�o de centenas de meios de comunica��o em uma funda��o suscet�vel � interfer�ncia do governo representava um risco ao pluralismo da imprensa no pa�s.
Em seu �ltimo Monitor do Pluralismo da M�dia, de 2021, o CMPM avaliou como alto o risco representado pela concentra��o de mercado dos ve�culos de imprensa na Hungria.

4. O nacionalismo populista
A grande maioria das mudan�as que Orb�n e seu partido v�m fazendo na Hungria nos �ltimos 12 anos s� foi poss�vel, de certa forma, porque o governo tem apoio popular.
"Ainda que Orb�n seja um l�der autorit�rio e tenha destru�do os pesos e contrapesos [que garantem o funcionamento do Estado de Direito], ele conta com algum apoio genu�no por v�rias raz�es, sendo uma delas o fato de expressar ansiedades, medos e aspira��es de muitos h�ngaros", avalia o cientista pol�tico Zsolt Enyedi, da CEU.
Nesse ponto, o discurso do primeiro-ministro se aproxima do de muitos l�deres populistas de direita que ascenderam ao poder na �ltima d�cada com uma ret�rica nacionalista, conservadora e que ataca minorias.
O governo tem uma posi��o clara anti-imigra��o desde que voltou ao poder em 2010. Em 2015, a Hungria foi o primeiro pa�s a erguer uma fronteira f�sica para impedir que milhares de refugiados atravessassem o pa�s. Mais recentemente, o pa�s mudou seus livros escolares para promover a ideia de que � uma na��o "homog�nea" e alertar sobre os "perigos" da imigra��o.
Tamb�m s�o alvos de ataque a comunidade LGBTQIA+, organiza��es da sociedade civil que promovem, por exemplo, os direitos das mulheres, e a pr�pria Uni�o Europeia. O bilion�rio h�ngaro George Soros est� no topo da lista de inimigos, acusado de financiar entidades supostamente interessadas em promover a imigra��o em massa e destruir o pa�s.
Para Scheppele, a ret�rica conservadora tamb�m foi e tem sido usada como estrat�gia pelo primeiro-ministro.
Ela chama aten��o para a transforma��o do discurso do pr�prio Orb�n como pol�tico, algo que ela conseguiu ver de perto quando dava aulas em uma cidade que concentra popula��o de etnia h�ngara no oeste da Ucr�nia nos anos 90.
"Orb�n come�ou como um liberal conservador, at� que, no meio dos anos 90, percebeu que o eleitorado com esse perfil era pequeno. Foi a� que ele come�ou a mudar, a se apresentar como nacionalista conservador, e come�ou a testar esse discurso, essa nova persona, no oeste da Ucr�nia", relata.
"Coincidentemente, eu ensinava direito constitucional na mesma cidade naquela �poca. Orb�n e sua entourage ficaram no mesmo hotel que eu estava, ent�o pude acompanh�-los por alguns dias, assisti-lo testar a nova ret�rica. Foi assim que eu o conheci pessoalmente."
A hegemonia do primeiro-ministro ser� colocada � prova em abril, para quando est�o marcadas elei��es nacionais. Em uma movimenta��o surpreendente nos bastidores da pol�tica, Orb�n deve enfrentar pela primeira vez uma oposi��o mais organizada, que se uniu em torno de uma frente ampla com 6 partidos.
Em um pa�s polarizado e com as institui��es democr�ticas fragilizadas, o resultado ainda � uma inc�gnita.
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