
A menos de 50 dias do primeiro turno das elei��es, o Brasil vive um momento de turbul�ncia institucional, inclusive com o questionamento das autoridades eleitorais. O cen�rio, que na semana passada contou com a leitura da carta em defesa do Estado Democr�tico de Direito, em S�o Paulo, exp�e fragilidades comunicativas e traz � tona o papel democr�tico da transpar�ncia p�blica, do acesso � informa��o e da abertura � participa��o propiciado pelas institui��es do pa�s.
Alvo da desconfian�a e de ataques constantes do candidato � reelei��o ao Planalto, Jair Bolsonaro (PL), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) � colocado em xeque �s v�speras de exercer o momento crucial de seu papel institucional: operar a vota��o e a apura��o do resultado das urnas.
Para a doutora em direito pela UFMG e profissional da �rea de direito regulat�rio e rela��es governamentais, Caroline Maciel, parte do sucesso no ataque �s institui��es se d� pela fragilidade das mesmas. Com uma comunica��o d�bil com a popula��o, � mais dif�cil assumir uma posi��o de credibilidade diante da desconfian�a.
"Quando as pessoas n�o entendem algo, elas duvidam, questionam ou n�o acreditam. O primeiro trabalho que precisa ser feito � tornar o acesso � informa��o inclusivo. Estamos falando tamb�m de trabalhar com plataformas privadas como o WhatsApp, Telegram e outras redes, para propagar o m�ximo de informa��es e evitar que os ataques sejam feitos em um contexto de pouca transpar�ncia. Falar sobre a seguran�a das urnas, por exemplo, com uma linguagem clara, acess�vel, deixando claro o funcionamento das elei��es e mostrando como � limpo", explica.Recupera��o da credibilidade
Neste contexto, se criar uma posi��o de credibilidade exige tempo e a cria��o de uma rela��o de transpar�ncia e participa��o popular, recuperar a credibilidade se apresenta como uma miss�o ainda mais dif�cil, aponta Maciel, autora da tese "Fundamentos da Transpar�ncia P�blica- Informa��o, Participa��o e Dados Abertos".
"A atua��o do TSE e do STF �, por natureza, reativa, ela est� sempre atrasada e o risco de se estar atrasada � de �s vezes ser tarde demais. Essa desconfian�a sobre a seguran�a eleitoral se propagou de uma forma que j� gerou uma tens�o social. N�o devia ser permitido se candidatar se voc� ataca as regras eleitorais, voc� est� atacando as regras do jogo. � o que demonstram Levitsky (Steven) e Ziblatt (Daniel) em sua obra sobre o decl�nio das democracias", avalia.
Queda nos indicadores democr�ticos
Em sua tese de doutorado, que ser� lan�ada ainda este ano como livro pela editora Del Rey, Caroline Maciel traz dados que apontam que o Brasil vive momento de queda nos indicadores democr�ticos. Ela usa como exemplo os dados do Varieties of Democracy Institute, que apresenta �ndices espec�ficos para medir o grau democr�tico dos pa�ses.
"Cito na tese o estudo do V-Dem que mede as varia��es da democracia, um dos pontos mensura o que se chama de 'democracia eleitoral', que apresentou queda significativa nos �ltimos anos. Todos os �ndices avaliados est�o em queda, mas especificamente o eleitoral pode refletir essa situa��o de inseguran�a", explica.
"A atua��o do TSE e do STF �, por natureza, reativa, ela est� sempre atrasada e o risco de se estar atrasada � de �s vezes ser tarde demais"
O �ndice, que varia de 0 a 1, atingiu seu ponto mais alto em 2005, com 0,88 (marca depois repetida em 2006, 2010, 2013 e 2014). Na �ltima publica��o, em 2021, o n�mero chegou a 0,66, menor marca desde a redemocratiza��o. A avalia��o de "democracia eleitoral" mede a capacidade de realiza��o de elei��es limpas, livres e justas e tamb�m a liberdade de express�o, fontes de informa��o e o sufr�gio universal.
'Comunica��o mais acess�vel'
"Um ponto importante e muito discutido � o da linguagem, que chamamos de ‘linguagem cidad�’. Desde a �poca do Bentham (Jeremy, jurista e fil�sofo ingl�s dos s�culos 18 e 19), que � debatida uma forma de criar uma comunica��o mais acess�vel", aponta Caroline Maciel sobre um dos empecilhos em se estabelecer um cen�rio de amplia��o da compreens�o e alcance popular das informa��es disponibilizadas pelas institui��es.
Um exemplo levantado pela especialista s�o os portais da transpar�ncia. Ferramentas b�sicas para acesso � movimenta��o das institui��es p�blicas, eles sofrem com a falta de uniformidade nos sistemas e na maneira como as informa��es s�o compartimentadas.
"Hoje, nos portais da transpar�ncia, toda a linguagem dos or�amentos e da transpar�ncia fiscal � muito dif�cil de ser entendida. � importante que esse conte�do seja mais palat�vel para permitir que a popula��o entenda esse mecanismo como uma forma de participa��o e de cobrar responsabilidade com os gastos p�blicos. Al�m disso, h� uma falta de uniformidade de articula��o e intera��o entre plataformas. Isso � muito s�rio. Pense que cada vez que voc� tem que fazer uma consulta voc� tem que entrar em uma s�rie de sites e que cada um � de um jeito, isso sem contar que a gente ainda tem um problema de exclus�o digital", aponta.
"Hoje, nos portais da transpar�ncia, toda a linguagem dos or�amentos e da transpar�ncia fiscal � muito dif�cil de ser entendida"
Em question�rio aplicado por Caroline Maciel a representantes de organiza��es da sociedade civil em sua tese de doutorado, dados apontam que o Portal da Transpar�ncia do Governo Federal imp�e dificuldades no acesso � informa��o e, parte do problema se d� pela dificuldade na compreens�o dos dados.
Falta de clareza sobre dados
Sobre a inteligibilidade dos dados dispon�veis, 51,6% dos entrevistados pela pesquisadora disseram ter tido dificuldade, mas conseguiram compreender as informa��es com uma pesquisa por conta pr�pria, 12,9% precisaram solicitar um esclarecimento dos dados e 3,2% afirmaram ter desistido da consulta ap�s a falta de clareza do portal. Vale lembrar que as respostas foram dadas por integrantes de organiza��es que acessam com frequ�ncia os dados p�blicos, quase todos com ensino superior completo e cerca de metade com mestrado ou doutorado conclu�dos.
Para Maciel, a atua��o democr�tica dos cidad�os passa pela capacidade de alcan�ar e compreender as informa��es disponibilizadas pelas institui��es do Estado. Ela explica que existem duas formas b�sicas de classifica��o da transpar�ncia, a passiva e na ativa e, em ambas, podem se identificar problemas na forma como o brasileiro consegue acess�-las.
A transpar�ncia ativa trata sobre os dados que s�o disponibilizados e tornados p�blicos pelo Estado. "Corroborado pelos question�rios, percebe-se que a falta de elabora��o de um site �nico e a quebra de links posteriores ao lan�amento do portal unificado gov.br dificultam o acesso. A partir da�, voc� pode ter que solicitar mais informa��es e a institui��o tem um tempo para te responder ou n�o; isso configura a transpar�ncia passiva. Nesse caso, outro problema nas ferramentas � o fato de que foi constatado que nem todas elas permitem pedidos an�nimos, em alguns locais, isso cria um impedimento. Isso tem a ver com os nossos tra�os de patrimonialismo", exemplifica.
Constru��o da transpar�ncia
"A gente tinha um cen�rio anterior de um governo autorit�rio e assiste, com a Constitui��o de 1988, o processo de redemocratiza��o no qual vemos nos debates da Assembleia Constituinte uma grande preocupa��o dos parlamentares com publicidade e a transpar�ncia serem o mote de todo o nova constru��o do estado. � uma mudan�a paradigm�tica de que a informa��o p�blica n�o pertence ao Estado, pertence a sociedade e ela precisa ter acesso at� para questionar as decis�es", avalia Caroline Maciel.
Como ponto de virada na constru��o do atual sistema de transpar�ncia e acesso � informa��o p�blica no pa�s, a Constitui��o de 1988 estabeleceu par�metros que determinam a publicidade como norma e o sigilo como exce��o, embora existam subterf�gios legais que permitem governos serem menos ou mais abertos.
Outro ponto apresentado pela pesquisadora foi a Lei de Acesso � Informa��o (LAI), sancionada em 2011. Mais de dez anos ap�s sua implementa��o, a lei constitui-se em instrumento fundamental no acesso � informa��o p�blica, embora precise ser modernizada para acompanhar os avan�os tecnol�gicos, aponta Maciel. Ela ressalta que a LAI j� foi uma medida tardia no pa�s.
"A gente teve, e isso � inquestion�vel, essa mudan�a na constitui��o que foi importante para mudar a concep��o de transpar�ncia. Mas a gente vem assegurar mesmo esse acesso no Brasil depois, com a Lei de Acesso � Informa��o. Fomos um dos �ltimos, inclusive na Am�rica Latina, a aprovar uma lei desse tipo. Havia muita resist�ncia, inclusive dos servidores p�blicos, para definir a quais informa��es se daria o acesso. Na �poca, j� havia 70 pa�ses com uma legisla��o sobre o tema e o Brasil n�o conseguia aprovar", comenta.
Tr�s perguntas para Caroline Maciel
Embora a constitui��o e a LAI ofere�am um respaldo para a constru��o da transpar�ncia e do acesso � informa��o como uma obriga��o perene do Estado, h� oscila��es nesses quesitos dentro do per�odo p�s-redemocratiza��o, como isso � observado?
"Existe uma cl�usula na LAI, por exemplo, que diz que o governo n�o � obrigado a sistematizar dados que j� n�o est�o organizados. Isso � muito ruim, a gente j� passou do est�gio inicial da LAI, a lei j� tem mais de 10 anos e o cen�rio tecnol�gico � outro. Isso devia ser revogado, isso n�o poderia ser uma cl�usula geral.
Outro exemplo, foi a Medida Provis�ria 928/2020, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, que suspendeu os prazos de resposta aos pedidos de acesso � informa��o durante a pandemia, quando o momento era de oferecer mais dados � popula��o. Essa medida foi derrubada pelo STF, mas mostra como existe um risco de oscila��o na pol�tica de transpar�ncia, que deveria ser uma pol�tica de Estado e n�o de governo."
Como a desinforma��o, quando parte de agentes p�blicos, exp�e a fragilidade das institui��es em rela��o � abertura e comunica��o com a popula��o?
"Vamos dar o exemplo da pandemia, a gente teve uma postura ativa do presidente contra o uso de m�scaras, questionando a vacina e defendendo medicamentos sem efeitos comprovados. Para a popula��o, isso foi muito vendido e muita gente acreditou nisso. A maior figura do Estado � o presidente e tem um outro problema � que com a era digital isso se intensificou.
Porque hoje as plataformas modernas disponibilizam conte�do conforme o que voc� acredita. O Estado precisa atuar ativamente de duas formas, construindo ferramentas de informa��o e com possibilidade de acesso, compreens�o e participa��o e regulando as plataformas para evitar a propaga��o de informa��es falsas.
� necess�rio trazer o cidad�o para tomar a decis�o junto das autoridades, com audi�ncias p�blicas, consultas p�blicas. Primeiro que no governo atual a gente viu uma redu��o da quantidade desses mecanismos participativos. E tamb�m menos qualidade, na tese, eu analiso alguns casos espec�ficos de que voc� abre uma consulta p�blica, mas n�o implementa nenhuma sugest�o e n�o tem um retorno justificando a decis�o, as pessoas se sentem deslocadas do processo."
Existe uma diferen�a entre a transpar�ncia e uma estrat�gia de acesso � informa��o?
"Com certeza. Uma coisa � transpar�ncia e isso tem a ver com a forma de voc� tomar uma decis�o e usar o dinheiro p�blico de forma transparente, por exemplo. Ela n�o traz necessariamente qualidade. Ela coloca uma press�o no agente p�blico, mas ela n�o � democr�tica necessariamente. Mas o acesso � informa��o ela j� � o conte�do, que deve ser tratado e disponibilizado da melhor forma poss�vel.
Al�m disso, hoje a gente tem tanta informa��o, que a gente se perde, n�o se absorve a informa��o pela quantidade, o que se absorve � o conhecimento, quando se entende o que est� exposto ali. A gente tem transpar�ncia, porque a LAI � s�lida, ela funciona. Nosso problema fica na participa��o e no governo aberto."