
Os gastos dos governos federal e estaduais com equipamentos de hacking e software espi�o, que permitem extrair dados de celulares e outros dispositivos, explodiu no governo Bolsonaro.
No Executivo, o gasto com licen�as para uso desse tipo de ferramenta passou de R$ 30,3 milh�es nos primeiros tr�s anos do governo Dilma-Temer para R$ 81,5 milh�es (em valores corrigidos) no mesmo per�odo da administra��o Jair Bolsonaro, alta de 168%.
Nos governos estaduais, o salto foi ainda maior -R$ 15,1 milh�es de 2015 a 2017 (Dilma-Temer) e R$ 92,9 milh�es de 2019 a 2021, em valores corrigidos, um crescimento de 514%.
Os dados s�o resultado de estudo "Mercadores da inseguran�a: conjuntura e riscos do hacking governamental no Brasil", do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec).
Pesquisadores do instituto levaram um ano investigando e mapeando a compra de ferramentas de extra��o de dados de celulares e computadores por entidades governamentais no Brasil.
Al�m do crescimento nos gastos com essa ferramenta altamente invasiva, o que surpreende � o fato de �rg�os n�o diretamente ligados a investiga��es desse tipo estarem comprando dispositivos de extra��o de dados, como o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econ�mica), secretarias estaduais da Fazenda de Minas Gerais e Mato Grosso, e pol�cias militares da Para�ba e Minas Gerais, cuja fun��o constitucional � policiamento ostensivo, e n�o investiga��o.
Segundo Andr� Ramiro, coordenador da pesquisa do IP.rec e pesquisador visitante no Humboldt Institute for Internet and Society, os softwares e hardwares Cellebrite comprados pelo governo "oferecem uma capacidade de acesso a comunica��es e dados pessoais sem precedentes".
Isso inclui desbloqueio de qualquer dispositivo, independente do tipo de bloqueio (c�digo PIN, padr�o ou senha), supera��o de diferentes tipos de criptografia, extra��o de dados dos mais variados aplicativos, como redes sociais, e-mails, servi�os de nuvem e navegadores, hist�ricos de localiza��o do indiv�duo, recupera��o de arquivos deletados, acesso a senhas armazenadas, entre outros.
"Seria poss�vel concluir que qualquer aparelho celular, de qualquer brasileiro, est� sujeito � intrus�o", diz Ramiro.
As ferramentas da marca Verint s�o ainda mais invasivas, porque s�o capazes de acesso remoto. Segundo Ramiro, o "GI2", da Verint, permite ouvir, ler, editar, e redirecionar chamadas recebidas e realizadas, mensagens de textos, al�m de poder ativar remotamente o microfone de um celular.
J� a "PI2", da mesma empresa, tamb�m permite a "coleta de tr�fego GSM" (padr�o de comunica��o entre aparelhos celular) em "�rea ampla", al�m da intercepta��o de liga��es e mensagens.
"Enquanto a maioria das ferramentas pede que o celular seja antes apreendido, essas ferramentas permitem uma vigil�ncia sem necessidade de acesso f�sico ao aparelho. Efetivamente s�o ferramentas de espionagem remota."
Entre os 46 �rg�os governamentais que compraram as ferramentas de hacking, a maioria � ligada ao Minist�rio ou �s Secretarias de Justi�a, Pol�cia Civil, Minist�rio P�blico e For�as Armadas. Mas as exce��es chamam a aten��o.
O Cade, �rg�o que monitora fus�es e aquisi��es e visa a garantir a livre concorr�ncia, comprou, em 23 de dezembro de 2021, o Cellebrite UFED Touch2, que possibilita desbloquear dispositivos, acessar mensagens e outros dados apagados. O valor do contrato foi de R$ 563.660.
Procurada, a Superintend�ncia-Geral do Cade informou que a compra foi realizada para "fins de cumprimento de sua fun��o institucional de investiga��o de cart�is."
E disse que, por lei, "a Superintend�ncia-Geral possui compet�ncia legal para requerer ao Poder Judici�rio, por meio da Procuradoria Federal junto ao Cade, mandado de busca e apreens�o de objetos, pap�is, computadores e arquivos magn�ticos de empresa ou pessoa f�sica, com vistas � obten��o de provas de infra��es � ordem econ�mica".
A assessoria do Cade diz que os telefones celulares apreendidos em dilig�ncias de busca e apreens�o, autorizadas judicialmente, constituem importantes fontes de dados para as investiga��es de cart�is, e, para a extra��o e an�lise de tais dados, "faz-se necess�ria a utiliza��o de softwares que fa�am tal extra��o de forma fidedigna".
A advogada Fl�via Lef�vre Guimar�es, especializada em direitos digitais, questiona a necessidade do Cade de ter essas ferramentas.
"Pela lei, o Cade tem atribui��o de abrir inqu�rito administrativo para apurar infra��es da ordem econ�mica, mas o �rg�o trabalha com o Minist�rio P�blico e a Pol�cia Federal , que conduzem a investiga��o, determinam busca e apreens�o - e eles j� t�m essas ferramentas de extra��o de dados", diz Lef�vre.
O mesmo se aplica �s secretarias da Fazenda, que investigam crimes tribut�rios, lavagem de dinheiro, mas tudo isso em conjunto com for�as policiais.
"Vamos ter tudo quanto � �rg�o p�blico comprando licen�a dessas ferramentas de hacking? Basta a Pol�cia e o MP. Quando se normaliza o uso dessas ferramentas, aumenta a coleta de dados das pessoas, e pode abrir espa�o para intrus�o e vigil�ncia", diz a advogada.
A assessoria de comunica��o da secretaria da Fazenda de Minas Gerais afirmou que a tecnologia Cellebrite adquirida pelo �rg�o "permite t�o somente a realiza��o de c�pias digitais (duplica��o forense) de todos os conte�dos existentes em equipamentos de telefonia celular apreendidos por meio de ordens devidamente expedidas pela Justi�a."
Ainda segundo a assessoria, "o Cellebrite � uma ferramenta essencial na extra��o, coleta e an�lise de dados de evid�ncias a serem incorporadas em processos de investiga��es feitos nas opera��es de combates � sonega��o fiscal e crimes correlatos." A Secretaria da Fazenda do Mato Grosso n�o respondeu aos pedidos da Folha.
Outro aspecto que preocupa especialistas � a compra de ferramentas de hacking por pol�cias militares como a da Para�ba e a de Minas Gerais.
"Pela Constitui��o federal, a investiga��o criminal � prerrogativa das pol�cias civis no Brasil e � Pol�cia Militar cabe o policiamento ostensivo preventivo, o patrulhamento nas ruas. Mas as PMs t�m o chamado P2, o servi�o reservado, que acaba fazendo um pouco o papel de investiga��o. Mas legalmente, pela Constitui��o, quem faz � a pol�cia civil e o excesso de entrada da PM no campo investigativo � ilegal", diz Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
"J� � grave a pol�cia civil comprar software espi�es, porque � preciso ter limites muito claros, sabermos que essa ferramenta pode ser fonte de inger�ncia indevida na vida de particulares, obten��o de dados e informa��es. Mas quando as PMs fazem isso, � ainda mais grave, porque elas n�o t�m autoriza��o legal para fazer esse tipo de investiga��o."
Procurada, a Pol�cia Militar de Minas Gerais afirmou que comprou o equipamento para us�-lo em "suas miss�es constitucionais de Pol�cia Militar Judici�ria."
Ramiro, coordenador do estudo do Ip.rec, acredita que essas ferramentas, por terem alto potencial de violar direitos e liberdades, devem ter seu uso restrito a situa��es excepcionais e por �rg�os tamb�m espec�ficos.
"Do contr�rio - e � isso o que estamos vendo - banalizamos o uso de tecnologias altamente danosas aos indiv�duos e � coletividade, que colocam em xeque os direitos fundamentais dependentes da seguran�a dos dispositivos conectados quando s�o usadas de forma arbitr�ria ou quando s�o acessadas por atores n�o autorizados."
Gastos com sistema de espionagem
Governo federal
2015 R$ 8,9 milh�es
2016 R$ 7,6 milh�es
2017 R$ 13,6 milh�es
2018 R$ 6,4 milh�es
2019 R$ 8,4 milh�es
2020 R$ 63,6 milh�es
2021 R$ 9,3 milh�es
Governos estaduais
2015 R$ 754 mil
2016 R$ 9,5 milh�es
2017 R$ 4,7 milh�es
2018 R$ 15,1 milh�es
2019 R$ 22,4 milh�es
2020 R$ 22 milh�es
2021 R$ 48,3 milh�es