
�nica filha viva de Juscelino Kubitschek, presidente que idealizou Bras�lia, a arquiteta chorou ao ver a turba golpista de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadir e depredar os pal�cios do governo, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, na sinistra tarde de domingo (8).
"Bras�lia � minha irm� ca�ula, que vi ser sonhada, planejada e erguida. Para mim, aquilo foi uma agress�o pessoal", diz ela � Folha, por telefone, ainda desolada com a selvageria cometida contra a capital que ela, aos 18 anos, em abril de 1960, testemunhou o pai inaugurar com os olhos marejados.
Enquanto a horda avan�ava em f�ria sobre o patrim�nio p�blico e hist�rico destruindo o que encontrava pela frente, Maria Estela recebia mensagens pelo celular de gente que podia imaginar seu desespero. "Eu chorei. N�o sabia se pegava um avi�o do Rio de Janeiro at� l� para fazer alguma coisa, se rezava para papai proteger a cidade, ou o que eu podia fazer", relembra.Estupefata como tantos outros compatriotas, ela pensava no trabalho de todos os brasileiros que ajudaram a levantar e manter a capital federal, desde o arquiteto Oscar Niemeyer, que projetou os pr�dios, at� os candangos que levantaram cada viga e os servidores que cuidam diariamente da conserva��o.
Indignava-se com o que considerou "falta de comando" na seguran�a, sem entender por que os extremistas irromperam com tanta facilidade. Ficou incr�dula ao ver cadeiras sendo arremessadas pelas janelas e a mesa de jacarand� que Juscelino usava no trabalho acabar virando barricada.
Passado o pior momento, com certo al�vio porque o vandalismo n�o foi ainda maior ("J� imaginou se o fogo se alastra l� dentro?"), a filha de JK foi abatida por perguntas que continua a se fazer.
"N�o � do instinto do brasileiro fazer uma coisa dessa. N�o sei se onde saiu aquele �dio, se foi incentivado por algu�m muito odiento. Ainda estou procurando respostas", diz, antes de lamentar que pessoas com o dom de influenciar usem essa capacidade para o mal. "Papai tinha essa for�a, mas para o bem."
Nas reflex�es, ela acaba chegando ao nome de Bolsonaro como quem pode ter semeado a disc�rdia democr�tica ao recusar a transi��o pac�fica de poder depois de contestar as urnas eletr�nicas.
"A gente criou [d�vidas sobre o resultado] quando ele foi eleito? Algu�m duvidou da elei��o dele? S� vale para um lado? � aquele neg�cio: a� vem a turma que fica com raiva e quer arrebentar tudo. Quer dizer, [ele] est� dando corda para isso."
E se p�e a explicar com didatismo: "Elei��o voc� ganha ou perde, � simples. Se voc� se prontifica a participar sabendo que pode ganhar, tem que saber tamb�m que pode perder. Se o eleitor n�o ficou feliz, espera o tempo passar e dali a quatro anos vota de novo".
Ela mesma achou que em 2022 era hora de o ex-presidente ir embora —n�o imaginava, contudo, que ele faltaria � posse do sucessor, deixando "a impress�o de que fugiu" para os Estados Unidos.
Diz que votou em Luiz In�cio Lula da Silva (PT) e que, como "democrata por nascimento, por heran�a e por aprendizado", sempre respeita governos eleitos, mas tamb�m exerce o direito de criticar e discordar.
N�o gostou, por exemplo, de ver a primeira-dama Ros�ngela Lula da Silva, a Janja, chamar a GloboNews para mostrar o estado em que Bolsonaro e fam�lia deixaram o Pal�cio da Alvorada. "A situa��o � triste, mas n�o devia ter sido divulgada daquela forma, voc� vai me desculpar. O fato de mostrar [na TV] ficou uma cr�tica muito forte. N�o sei se foi para justificar a necessidade de uma total reforma."
A arquiteta evita se estender no assunto. Diz que � rotina fazer reparos quando h� troca de governante. "O que sei � que mam�e sempre tinha a preocupa��o de entregar tudo cert�ssimo, tudo arrumad�ssimo, roupa de cama lavada. � aquilo: quando voc� mora em um lugar que n�o � seu, tem que ter ainda mais zelo."
Adotada por Sarah e Juscelino aos cinco anos, Maria Estela viveu com eles e com a irm� M�rcia, filha biol�gica do casal, em uma Bras�lia ainda despovoada e isolada. Na fase de obras da capital, dava um jeito de viajar com o pai para a vistoria dos trabalhos, "de curiosa que era". Foi na cidade que aprendeu a dirigir, com as li��es do motorista de JK, e tirou a 38ª habilita��o emitida na hist�ria local.
Com tantas mem�rias atreladas � capital, ela poderia se considerar meio dona de tudo aquilo. "Bras�lia n�o � de ningu�m, � de todos n�s. Isso [invas�o] me doeu muito, mas a maior agress�o foi � nossa democracia. N�o tem perd�o."
"Papai no Brasil de hoje estaria como eu, sem entender nada", diz ela sobre o pol�tico morto em 1976. Na ditadura militar (1964-1985), ele teve seu mandato de senador cassado, viveu exilado e chegou a ser preso. "Aceitou a pris�o tranquilamente. Ele s� falava: 'Isso vai acabar, isso vai passar'", recorda a filha.
Para a arquiteta, uma rea��o contundente como a de domingo passado poderia ser justificada se o pa�s estivesse sob amea�a de virar uma ditadura. "E, mesmo assim, n�o com viol�ncia, mas com palavras. Mais forte do que quebrar � falar, denunciar. Aquelas cenas transmitiram ao mundo um retrato feio. N�o foi um exemplo de democracia, mas de revanchismo, n�o sei bem de qu�."
Maria Estela foi filiada ao PSDB e chegou a participar de elei��o como vice de Eduardo Paes (que tamb�m era do PSDB) na disputa pelo Governo do Rio de Janeiro em 2006. A chapa com Paes, que � o atual prefeito da capital fluminense, ficou em quinto lugar —o vencedor foi S�rgio Cabral (MDB).
Na noite de domingo, depois das horas de terror, a arquiteta foi ao Facebook e escreveu: "N�o tenho palavras para expressar a tristeza que estou vivendo hoje ao ver a destrui��o de Bras�lia, minha 'irm� ca�ula'. Que Deus nos proteja contra o �dio, o vandalismo e salve a nossa 'capital da esperan�a'".
� Folha ela reitera a mensagem: "O que aconteceu n�o � reflexo do Brasil que eu vivi nem � o Brasil que n�s queremos. Nunca imaginei que, na minha idade, eu ia passar pelo que passei. Bras�lia representa os sonhos n�o s� daquela �poca, mas ainda hoje � a nossa esperan�a. E o Brasil � forte o suficiente para passar por isso".
