
Alexandre de Moraes chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2017 por obra do acaso, quando uma inesperada vaga na Corte foi aberta ap�s um acidente fatal vitimar o ministro Teori Zavascki. De l� pra c�, se tornou, possivelmente, a autoridade mais temida e poderosa da Rep�blica.
� frente de inqu�ritos controversos abertos de of�cio pelo pr�prio STF, o ministro j� determinou centenas de pris�es, suspens�o de contas em redes sociais e at� mesmo o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, sob a justificativa de conter ataques � Corte e ao Estado Democr�tico de Direito.
Para alguns, Moraes se tornou o her�i da Rep�blica, entendimento que ganhou mais apoio ap�s o dia 8 de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro inconformados com a elei��o do presidente Luiz In�cio Lula da Silva invadiram as sedes dos tr�s Poderes. Para outros, por�m, � visto como um ministro que acumulou poderes demais e tem desrespeitado garantias constitucionais, ferindo o sistema democr�tico que pretende preservar.
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A origem dos 'superpoderes'
As investiga��es concentradas no gabinete de Moraes tiveram origem no chamado inqu�rito das Fake News, alvo de controv�rsia jur�dica j� no seu in�cio, por ter sido aberto no in�cio de 2019 por decis�o direta do ent�o presidente do STF, Dias Toffoli. Isso foi feito � revelia da Procuradoria-Geral da Rep�blica - ou seja, sem a participa��o do Minist�rio P�blico, que � a institui��o respons�vel por investigar e denunciar criminalmente no pa�s, segundo a Constitui��o Federal.
No entanto, julgamento do STF de junho de 2020 considerou o inqu�rito legal. A avalia��o foi que o Supremo pode abrir investiga��o quando ataques criminosos forem cometidos contra a pr�pria Corte e seus membros, representando amea�as contra os Poderes institu�dos, o Estado de Direito e a democracia.A partir da�, outros inqu�ritos foram instaurados, como os que investigam atos antidemocr�ticos ou a atua��o de mil�cias digitais. Em vez de a relatoria dessas investiga��es serem sorteadas entre os ministros do STF, elas foram mantidas com Moraes, sob a justificativa de apurarem poss�veis crimes relacionados ao inqu�rito inicial.
Para cr�ticos, como o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) Jo�o Pedro P�dua, isso estaria concentrando muitos poderes nas m�os do ministro.
"A l�gica do Estado de Direito foi criada l� no s�culo 18, principalmente contra o absolutismo mon�rquico, que era o s�mbolo da concentra��o de poder. Ent�o, a l�gica do Estado de Direito � dividir poder, evitar que uma autoridade s�, por mais poderosa que ela seja, decida sobre tudo. Porque se essa autoridade falhar, e � previs�vel que ela v� falhar, ningu�m mais tem prote��o em lugar nenhum", argumenta o professor.

O professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Emilio Peluso considera dif�cil avaliar no curso das investiga��es, que em boa parte tramitam em sigilo, se de fato h� conex�o em todos os inqu�ritos que justifiquem sua manuten��o nas m�os de Moraes.
Ele reconhece que a concentra��o dos casos com um �nico ministro traz riscos, mas avalia que uma recente mudan�a no regimento interno do Supremo, obrigando que todas as medidas cautelares adotadas individualmente por ministros sejam imediatamente submetidas ao plen�rio ou a uma das duas turmas da Corte, reduz a possibilidade de abusos. Medidas cautelares s�o aquelas que visam preservar o andamento de uma investiga��o ou processo, como pris�es tempor�rias, monitoramento eletr�nico e suspens�o da fun��o p�blica.
"Com isso, voc� mant�m um ministro que j� tem conhecimento de toda a investiga��o e j� sabe aquilo que pode levar a uma eventual responsabiliza��o no futuro, que conhece o processo como um todo e que pode continuar dirigindo esse processo de uma maneira eficaz dali em diante. E, ao mesmo tempo, voc� exige que todos esses atos sejam fiscalizados pelo plen�rio ao exigir essa submiss�o imediata das decis�es cautelares", nota Peluso.
Para o professor de Direito da Universidade de S�o Paulo (USP) Rafael Mafei, � natural que haja controv�rsias quando se trata de um volume t�o grande de decis�es. No entanto, ele avalia que, de modo geral, o ministro tem agido corretamente para enfrentar o que v� como o maior ataque ao sistema democr�tico estabelecido pela Constitui��o de 1988.
"Evidentemente, se a gente for olhar uma por uma, � muito dif�cil - e isso vale para Alexandre Morais, para qualquer outro magistrado - que haja consenso sobre todas as decis�es que tomou num universo t�o grande de casos, porque as pessoas t�m mesmo interpreta��es divergentes, seja sobre os fatos, as provas, ou a (aplica��o da) lei", afirma.
Medidas fora da Constitui��o?
Na vis�o de P�dua, por�m, a atua��o de Moraes para proteger a Constitui��o tem usado medidas extraordin�rias sem base na pr�pria Constitui��o e nas leis brasileiras. E, na sua avalia��o, o grave cen�rio pol�tico n�o autoriza essa atua��o, mesmo que ele venha recebendo apoio do Supremo, com medidas referendadas pelo plen�rio.
P�dua ressalta que a pr�pria Constitui��o prev� situa��es extraordin�rias em que pode haver supress�o de direitos e aumentos dos poderes de certas autoridades provisoriamente, como a decreta��o de Estado de Defesa ou do Estado de S�tio pelo presidente, com aprova��o do Congresso.
"Nenhum Poder, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, poderia invocar situa��es excepcionais para aumentar os seus poderes, exceto nos casos que a pr�pria Constitui��o prev�", defende P�dua.
"A despeito dos atos an�malos do dia 8 de janeiro, do cen�rio pol�tico que vemos no Brasil, ningu�m, que eu saiba, prop�s a s�rio a decreta��o de algum Estado de S�tio ou de Defesa no Brasil", disse ainda.
Na sua avalia��o, � poss�vel enfrentar as amea�as autorit�rias com mecanismos constitucionais.
P�dua cita como exemplo o afastamento de Ibaneis Rocha por 90 dias, que foi determinado por Moraes sem que houvesse um pedido da Procuradoria-Geral da Rep�blica ou mesmo de outra institui��o. Ele ressalta que o artigo 36 da Constitui��o permite ao STF determinar interven��o em uma unidade da federa��o para "assegurar o regime democr�tico", desde que haja uma representa��o da PGR.
Apoiadores da atua��o de Moraes, por outro lado, argumentam que o procurador-geral da Rep�blica, Augusto Aras, no cargo desde setembro de 2019, � aliado de Bolsonaro e tem sido omisso na repress�o aos movimentos antidemocr�ticos.
Para o professor da UFF, isso tamb�m n�o justifica a��es que v� como anticonstitucionais. Ele questiona tamb�m se havia de fato necessidade de afastar Rocha quando Lula j� havia determinado a interven��o federal na �rea de seguran�a p�blica do DF at� 31 de janeiro. Essa medida adotada pelo presidente est� prevista na Constitui��o e foi rapidamente referendada pelo Congresso, seguindo o que determina a lei.

Emilio Peluso, por sua vez, defende a legitimidade da decis�o. Ele nota que o afastamento foi determinado dentro de um requerimento apresentado pela Advocacia Geral da Uni�o (AGU), �rg�o que representa os interesses do Poder Executivo federal.
Embora n�o houvesse uma solicita��o direta para afastar o governador, o requerimento pedia de forma ampla que Moraes adotasse provid�ncias para impedir a repeti��o dos crimes, as chamadas medidas cautelares.
� o que diz esse trecho do requerimento, apresentado dentro de um dos inqu�ritos presididos por Moraes: "Pris�o em flagrante de todos os envolvidos nos atos criminosos decorrentes de pr�dios p�blicos federais em territ�rio nacional, inclusive do Secret�rio de Seguran�a P�blica do Distrito Federal e demais agentes p�blicos respons�veis por atos e omiss�es, avaliando, at� mesmo, a ado��o de outras medidas cautelares que impe�am a pr�tica de novos atos criminosos".
Ao determinar o afastamento com base nesse pedido, Moraes avaliou que "a omiss�o das autoridades p�blicas, al�m de potencialmente criminosa, � estarrecedora, pois os atos de terrorismo se revelam como verdadeira 'trag�dia anunciada', pela publicidade da convoca��o das manifesta��es ilegais pelas redes".
Peluso ressalta tamb�m que a decis�o de Moraes foi referendada por ampla maioria do STF. Apenas os ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro se opuseram ao afastamento. Para Nunes Marques, n�o houve omiss�o dolosa (intencional) por parte de Ibaneis Rocha. J� Andr� Mendon�a considerou que o Supremo n�o era a Corte adequada para decidir, j� que governadores t�m foro especial no Superior Tribunal de Justi�a (STJ).
Pris�es em massa?
Outro ponto alvo de questionamentos foi a decis�o de Moraes de determinar a pris�o de todos que estavam no acampamento em frente ao Quartel General (QG) do Ex�rcito, no dia seguinte aos ataques antidemocr�ticos.
Esse acampamento teve in�cio logo ap�s a elei��o de Lula e pedia a a��o das For�as Armadas para barra a posse do presidente eleito.
O local serviu de ponto de concentra��o para os v�ndalos que atacaram as sedes dos tr�s Poderes, muitos deles vindos de �nibus de diferentes cantos do pa�s nos dias anteriores. Na noite de 8 de janeiro, ap�s os ataques, quando parte deles havia retornado ao QG, a Pol�cia Militar tentou entrar no acampamento para efetuar pris�es, mas o pr�prio Ex�rcito teria impedido.

"Soldados da Pol�cia do Ex�rcito, equipados com escudos, formaram um cord�o que impediu a passagem da PM. Foram posicionados tr�s blindados para refor�ar o bloqueio", noticiou o jornal Folha de S.Paulo, que esteve no local.
Ap�s isso, ainda na madrugada do dia 9 de janeiro, Moraes determinou a dissolu��o em at� 24 horas dos acampamentos que continuavam em frente a quart�is em diversas cidades do pa�s, sob pena de responsabiliza��o das autoridades civis e militares respons�veis pela retirada dos acampados.
Ele decretou tamb�m a "pris�o em flagrante de seus participantes pela pr�tica dos crimes previstos nos artigos 2ª, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparat�rios) da Lei nº 13.260, de 16 de mar�o de 2016 e nos artigos 288 (associa��o criminosa), 359-L (aboli��o violenta do Estado Democr�tico de Direito) e 359-M (golpe de Estado), 147 (amea�a), 147-A, § 1º, III (persegui��o), 286 (incita��o ao crime)".
Com isso, na manh� do dia 9, a pol�cia do DF encaminhou cerca de 1.200 pessoas da �rea do QG do Ex�rcito para averigua��o na Academia Nacional de Pol�cia, segundo relat�rio da Defensoria P�blica da Uni�o (DPU). Somadas a outras pris�es, como as efetuadas da noite anterior durante os atos de vandalismo, cerca de 1400 pessoas foram detidas.
Depois, essas pessoas foram submetidas a audi�ncias de cust�dia com ju�zes, direito que � garantido aos presos para que seja avaliada a legalidade da pris�o. Essas audi�ncias devem ser realizadas em 24 horas, mas diante do n�mero elevados de presos, levaram alguns dias.
Ap�s essas audi�ncias, Moraes decidiu converter 942 pris�es em flagrante em pris�es preventivas (sem prazo para soltura), sob a justificativa de garantir a ordem p�blica e a efetividade das investiga��es. Os demais 464 obtiveram liberdade provis�ria e poder�o responder a eventuais processos com a coloca��o de tornozeleira eletr�nica entre outras medidas.
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Segundo um levantamento da Defensoria P�blica da Uni�o, em ao menos seis casos Moraes estabeleceu a pris�o preventiva contrariando a posi��o do Minist�rio P�blico, que havia recomendado a libera��o da pessoa ou outras medidas, como pris�o domiciliar.
Em um relat�rio sobre os direitos humanos desses presos, a Defensoria P�blica da Uni�o argumenta que a lei 13.964/2019, ao alterar o C�digo Processo Penal para eliminar a possibilidade de pris�o "de of�cio" pelo juiz, na pr�tica "vedou, de forma absoluta, a decreta��o da pris�o preventiva, ou imposi��o de medidas cautelares diversas da pris�o, sem o pr�vio requerimento do Minist�rio P�blico, seja no curso da investiga��o criminal ou do processo".
No entanto, a decis�o de Moraes n�o � totalmente inovadora nesse ponto, pois h� um precedente de 2022 do STJ estabelecendo que, se houver pedido do Minist�rio P�blico por outras medidas cautelares mais leves que a pris�o, o juiz poder� optar por prender o investigado, sem que essa decis�o seja considerada de "of�cio".
H� ainda, por�m, outras controv�rsias na deten��o massiva dos suspeitos de crimes no 8 de janeiro. Na avalia��o da DPU, a a��o contra centenas de pessoas a partir da decis�o gen�rica de Moraes resultou em pris�es que n�o cumpriram os tr�mites previstos na lei e deveriam ser imediatamente revertidas.
"No decorrer das audi�ncias de cust�dia realizadas, observa-se uma grande quantidade de autos de pris�o em flagrante deficit�rios, isto �, n�o instru�dos com a documenta��o indicada no artigo 304 e seguintes do C�digo de Processo Penal, tais como oitiva do condutor (autoridade que efetua a pris�o), testemunhas e exame de corpo de delito", destaca o relat�rio da Defensoria.
"Assim, em aten��o � jurisprud�ncia do Supremo Tribunal Federal, que reconhece o auto de pris�o em flagrante como ato de formal documenta��o, a manuten��o das priva��es de liberdade mesmo diante dos autos de pris�o sem os documentos exigidos por lei, configura quadro que deve ser sanado pelo imediato relaxamento das pris�es efetuadas em desacordo com a legisla��o", diz ainda o documento da DPU.
J� Rafael Mafei, da USP, considera que as centenas de pris�es foram necess�rias para identificar os potenciais criminosos, j� que houve uma "turba de milhares de pessoas tentando um golpe de Estado".
Se n�o houvesse uma a��o imediata, diz, as pessoas retornariam para suas casas em diferentes cantos do pa�s, dificultando a a��o da Justi�a na apura��o e puni��o dos graves crimes cometidos no 8 de janeiro.
"O correto a se fazer nesse caso, quando h� suspeita de uma pessoa que est� cometendo um crime ou que acabou de cometer o crime, � recolher essa pessoa, levar at� um lugar onde ela fique � disposi��o das autoridades, at� que se possa avaliar a participa��o dela naquele epis�dio, minimamente, e decidir se ela precisa ficar preventivamente presa ou n�o", afirma Mafei.
"O que voc� n�o pode �, depois de avaliar a participa��o daquelas pessoas, manter preso quem a lei manda que seja solto, que responsa o processo em liberdade", acrescentou.
Controv�rsias anteriores
Apesar de defender a atua��o de Moraes na rea��o ao 8 de janeiro e, de modo geral, na condu��o dos inqu�ritos que passaram a investigar ataques � Corte e ao Estado Democr�tico de Direito desde 2019, o professor da USP critica algumas decis�es do ministro, como a opera��o contra empres�rios bolsonaristas em agosto de 2022.
Na ocasi�o, Moraes autorizou a apreens�o de celulares e o bloqueio de contas banc�rias e de perfis dos empres�rios nas redes sociais ap�s uma reportagem do portal Metr�poles revelar que eles teriam apoiado um poss�vel golpe de Estado em conversas em um grupo de WhatsApp.
Para Mafei, as medidas "parecem excessivas", j� que n�o houve uma investiga��o pr�via � opera��o que indicasse uma articula��o concreta dos empres�rios para de fato empreender um golpe de Estado.
"Teve gente que sofreu restri��es ou coa��es por condutas no grupo de Whatsapp que eram absolutamente insignificantes. Me pareceu uma medida principalmente com papel intimidat�rio em rela��o a pessoas que estivessem cogitando algum tipo de apoio mais expl�cito a iniciativas golpistas, o que n�o � o uso pr�prio daquelas medidas legais", analisa o professor da UFF.
No geral, por�m, Mafei considera que a atua��o de Moraes tem sido correta no enfrentamento de s�rios ataques e amea�as ao Estado Democr�tico de Direito. E, na sua avalia��o, h� um apoio das institui��es a essa atua��o, j� que o plen�rio do STF t�m confirmado decis�es do ministro e o Congresso n�o tomou medidas para cont�-lo, como instalar uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito para investig�-lo ou abrir um processo de impeachment, embora haja dezenas de pedidos nesse sentido apresentados no Senado.
"Ent�o, existiu uma amea�a real, a grande amea�a que j� houve � ordem democr�tica de 1988, porque ela tem estrutura, tem financiamento, tem lideran�a pol�tica, tem uma articula��o comunicacional, tem pessoas dispostas a agir e, inclusive, se submetendo �s consequ�ncias mais graves", avalia o professor.
"E h� um conjunto de dispositivos legais que est� sendo interpretado n�o pelo Alexandre de Moraes (isoladamente), mas pelo Supremo, com apoio das outras institui��es, de maneira a reagir a esses ataques", refor�ou.
-Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64464312