Pastores usam profecias e revela��es para convocar 'guerra santa' por Bolsonaro

A derrota de Jair Bolsonaro (PL) na elei��o presidencial gerou um racha no universo evang�lico brasileiro. Enquanto alguns l�deres de grandes igrejas v�m tentando se aproximar do governo Luiz In�cio Lula da Silva (PT), um grupo de pastores aderiu ao movimento que defende uma interven��o militar e o retorno de Bolsonaro ao poder.

V�rios desses pastores pertencem a igrejas pequenas ou nem sequer atuam em templos f�sicos. Nas redes sociais, por�m, eles alcan�am milh�es de pessoas e pregam uma esp�cie de guerra santa contra o novo governo.

Entre os conte�dos que esse pastores divulgam, est�o v�rias profecias e revela��es que eles dizem ter recebido de Deus - como uma revela��o sobre a destrui��o do Supremo Tribunal Federal (STF), uma vis�o sobre um pacto que Lula teria feito com dem�nios e mensagem de que Deus seria favor�vel a uma interven��o nos poderes da Rep�blica.

Esse � o tema do epis�dio que abre a segunda temporada de Brasil Partido, um podcast da BBC News Brasil, veiculado na segunda-feira (06/02) no site da BBC e em plataformas de �udio como Spotify e Apple Podcasts e Deezer.

Torres derrubadas

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Um dos pastores com maior proje��o no movimento que tenta uma virada de mesa � Sandro Rocha. Ele mora em Guaratuba, munic�pio com 37 mil habitantes no litoral do Paran�, e pertence � Igreja do Porto de Cristo, que funciona na casa de um bairro pobre, em uma rua sem asfalto.

Mas n�o h� nada de humilde na atua��o do pastor nas redes sociais.

No Twitter, onde ele usa seu segundo nome, Mauricio, o pastor soma mais de 120 mil seguidores. No YouTube, s�o quase 500 mil, e seus v�deos j� tiveram quase 75 milh�es de visualiza��es.

Em 11 de janeiro, Sandro Rocha publicou no YouTube um v�deo com o t�tulo "Pequeno sinal" e a imagem de uma explos�o numa torre de energia.

Dias antes, tr�s torres de energia haviam sido derrubadas em diferentes partes do pa�s. A pol�cia investiga se os atos t�m alguma rela��o com o movimento que tenta derrubar o governo Lula.

Nesse v�deo, Sandro Rocha associa as derrubadas das torres � vontade divina. "Quem � que t� agindo? � Deus", ele diz.

Na mesma grava��o, o pastor afirma que o "Ex�rcito n�o � representado por alguns generais que est�o l� em cima". "Eles est�o perdendo o comando da tropa. A coisa - pra eles, n�? - t� bem complicada", diz o pastor.

No Twitter, em 1º de novembro, o pastor postou uma foto em que aparece em um protesto que bloqueou uma rodovia. O tu�te continha a seguinte mensagem: "Pare de falar e tome uma atitude!!!! #Caminhoneiros #Interven��omilitar".

Tamb�m no Twitter, Sandro Rocha foi um dos primeiros a espalhar uma das informa��es falsas que mais circularam em grupos bolsonaristas em novembro: a de que Lula tinha morrido e estava sendo substitu�do por um s�sia.

Questionados pela BBC, o Twitter e o YouTube n�o responderam se as falas do pastor violavam as regras das empresas.

Em 18 de julho de 2022, Sandro Rocha foi recebido no Pal�cio do Planalto pelo general Augusto Heleno, ministro de Seguran�a Institucional do governo Bolsonaro. O encontro foi registrado na agenda oficial de Heleno.

A BBC questionou o ex-ministro sobre o teor do encontro. Ele respondeu: "Se encontrasse esse pastor, n�o o reconheceria. N�o me recordo de t�-lo recebido."

Explos�o no STF

 

Em 2020, Sandro Rocha gravou um v�deo ao lado do blogueiro bolsonarista Oswaldo Eust�quio descrevendo uma s�rie de revela��es que disse ter recebido de Deus.

A primeira delas trata de uma explos�o no STF. "Ficou tudo preto, queimado, n�o ficou nada", diz o pastor.

Depois da explos�o, ele diz ter visto "quatro forcas e quatro pessoas enforcadas". "N�o sei quem eram, foi uma vis�o. E o Esp�rito Santo frisava: 'todos acham que s�o tr�s, mas v�o ser quatro'", prosseguiu o pastor.

Em seguida, ele fala de outra revela��o - essa sobre a entrada de um anjo com uma espada no Congresso.

"Eu vi sangue no ch�o. Ent�o, no Congresso, eu vi esse anjo, anjo de Deus, em posi��o de ataque, pra entrar no Congresso", afirmou.

Por fim, Sandro Rocha cita uma vis�o sobre o Ex�rcito. "Eu vi eles marchando e faziam barulho na rua. Vai come�ar no Sul", afirmou.

"Muita gente vai morrer, vai haver uma guerra no Brasil", completou. A BBC pediu uma entrevista a Sandro Rocha e lhe perguntou se suas mensagens n�o poderiam estimular a viol�ncia, mas o pastor n�o respondeu.

'Tempo de paz, tempo de guerra'

Valdirene Moreira � outra estrela no universo dos pastores bolsonaristas youtubers.

Moradora de Guarapari, cidade com 120 mil habitantes no Esp�rito Santo, ela n�o � ligada a nenhuma igreja conhecida, mas tem centenas de milhares de seguidores em diferentes contas no YouTube.

Em 15 de novembro, Lucas Moreira, filho da pastora, postou um v�deo ao lado da m�e numa manifesta��o que bloqueou a rodovia BR-101. "N�s fazemos a nossa parte, Deus faz a dele, h� tempo de paz e h� tempo de guerra", afirmou a pastora.

Em outro v�deo, postado em 8 de janeiro, Valdirene comentou as invas�es ocorridas horas antes nas sedes dos Tr�s Poderes, em Bras�lia.

"Infelizmente, gente, embora Zacarias ensine que n�o � por for�a nem por viol�ncia, muitas vezes no passado o Senhor permitiu coisas acontecerem pra que chegasse �quilo que � a vontade dele", ela disse.

Desde novembro, quando o YouTube derrubou a p�gina da pastora, ela tem recorrido aos canais dos filhos e a duas novas p�ginas para seguir publicando na plataforma. Questionado pela BBC, o YouTube n�o respondeu por que tirou do ar o canal principal da pastora, mas n�o os outros que ela usa.

A BBC pediu uma entrevista com Valdirene Moreira e lhe enviou v�rias perguntas - uma delas, se seus v�deos n�o poderiam estimular a radicaliza��o pol�tica. N�o houve resposta.

Pacto com dem�nio

Outro pastor que tem feito profecias pol�ticas � Reginaldo Rolim, ex-vereador de Fortaleza que tamb�m se define como ap�stolo e profeta no Minist�rio Atalaia do Deus Vivo, uma pequena igreja na capital cearense.

Em 29 de outubro, na v�spera do segundo turno, Reginaldo disse ter recebido a seguinte revela��o: Bolsonaro ganharia a elei��o, mas Lula seria declarado o vencedor. "Muitas pessoas dizem que Bolsonaro ia dar um golpe militar, s� que eu via que o Ex�rcito � que tomava a frente, intervinha nas elei��es e divulgava algo que estava em oculto e que estava sendo tramado h� muito tempo atr�s", diz o pastor.

Reginaldo afirma que, ao intervir nas institui��es, o Ex�rcito estaria na verdade agindo em nome de Deus.

"O Senhor disse assim: 'Sou eu que entro nos Poderes e fa�o justi�a'".

Reginaldo diz que a mesma revela��o lhe mostrou que Lula teria feito um pacto com "dem�nios". "Eu via que o governo do PT colocou instrumentos, eu n�o via como seres humanos, mas como esp�ritos, como dem�nios, que os dem�nios entravam dentro de institui��es."

"O Lula fazia um pacto com os outros esp�ritos, mas eu n�o via o Lula, eu via um esp�rito. Esse esp�rito fazia um pacto com os outros esp�ritos, pra que esse esp�rito representando a pessoa de Lula assumisse a Presid�ncia da Rep�blica."

Procurado pela BBC, Reginaldo tamb�m n�o respondeu a um pedido de entrevista.

Bandeira vermelha

Nem sempre as profecias citadas pelos pastores t�m desfechos que eles consideram positivos.

� o caso de uma profecia feita pelo pastor Marcelo de Carvalho dias ap�s a posse de Lula, na qual disse ter recebido a revela��o de que a bandeira brasileira seria alterada.

"A bandeira do Brasil n�o ser� mais verde e amarela, estou profetizando. A bandeira do Brasil vai mudar, vai ser vermelha. Deus mostrou que as bandeiras, estou falando literalmente, as novas bandeiras do Brasil j� come�aram a ser confeccionadas", disse o pastor.

Marcelo de Carvalho atua no Minist�rio Ci�ncia da Profecia, uma igreja sem endere�o f�sico. Ele n�o diz nas redes onde mora, mas seu celular tem o DDD de Santa Catarina.

O pastor conta com mais de 200 mil seguidores no YouTube.
No mesmo v�deo, Marcelo cita outra revela��o: "Deus mostrou rachaduras em todos os lugares do Brasil", afirmou.

"Sabe o que isso significa? Significa que o Brasil ser� destru�do."

Mas eis que, nesse cen�rio, o pastor aponta uma sa�da: a compra de um curso virtual de R$ 389 para "sobreviver ao que est� vindo".

"Diante dessa revela��o, diante dessa senten�a, Deus me mandou fazer o seguinte: o curso estava conclu�do, mas agora, em fun��o do novo governo, do que Deus mostrou, Deus colocou no meu cora��o o seguinte: vou come�ar a acrescentar materiais nesse curso", ele diz.

Contatado pela BBC, Marcelo n�o respondeu e apagou o v�deo. Dias depois, ap�s nova tentativa de contato, ele respondeu por email.

O pastor disse que, em seu v�deo, havia apenas reproduzido revela��es de outra pessoa - ainda que, na grava��o, ele diga que recebeu aquelas profecias diretamente de Deus.

Sobre o curso, Marcelo disse que "� apenas um curso que ensina as pessoas a viver melhor em meio a crises financeiras, a cultivar e armazenar alimentos, se poss�vel, a ter menos d�vidas".

Marcelo disse ainda que tirou o v�deo do ar porque ele era muito longo. Questionado se seus v�deos poderiam estimular atos como as invas�es em 8 de janeiro, disse: "Sempre disse que o povo tinha que aceitar o novo governo do presidente Lula. Essa, inclusive, foi a raz�o de eu ser xingado por muitas pessoas de direita."

 

Qual a posi��o do YouTube?

 

A BBC perguntou ao YouTube se a plataforma sabe que tem sido usada para difundir discursos religiosos que podem agravar a viol�ncia pol�tica - e o que a companhia tem feito para evitar isso.

Uma porta-voz do Youtube respondeu que a empresa tenta equilibrar o combate � desinforma��o com o respeito �s liberdades religiosa e de express�o.

O YouTube disse ainda que usa v�rios mecanismos para tirar do ar v�deos que violem suas regras, como grava��es com informa��es falsas sobre a elei��o ou que possam provocar danos � sociedade.

A BBC perguntou ainda ao YouTube se os canais dos pastores citados nesta reportagem s�o monetizados, mas a empresa disse que n�o poderia responder por uma quest�o de confidencialidade contratual.

Radicaliza��o nas redes sociais

Para Vinicius do Valle, doutor em Ci�ncia Pol�tica pela USP e que pesquisa o universo evang�lico desde 2010, as redes sociais permitiram a ascens�o de l�deres religiosos sem v�nculos com grandes institui��es.

Ele afirma que, por n�o estarem ligados a grandes igrejas, muitos desses pastores "n�o t�m uma grande institui��o pela qual eles t�m que ser respons�veis, prezar pela imagem, ent�o eles t�m uma liberdade maior para fazer profecias, acusa��es e agir de forma mais extremista".

Valle diz ainda que a maneira como as redes incentivam conte�dos que causam fortes emo��es pode estar abrindo as portas para um extremismo religioso que talvez n�o tivesse tanto apelo em igrejas f�sicas.

"Os pastores que t�m seu maior p�blico nas redes sociais, eles at� t�m um est�mulo para serem mais radicalizados, porque as redes sociais s�o um ambiente que trazem essa radicaliza��o maior, esse extremismo maior", afirma.

Al�m disso, ele diz que as redes sociais propiciaram aos pastores uma nova fonte de financiamento. � poss�vel, diz Valle, que muitos pastores de igrejas pequenas recebam mais por seus canais do YouTube do que por d�zimos pagos por fi�is.

Para Celeste Leite dos Santos, professora de Direito Penal da USP e promotora de Justi�a em S�o Paulo, os v�deos dos pastores citados na reportagem t�m de ser analisados pelos investigadores dos atos de 8 de janeiro.

"Quando voc� come�a a incitar os fi�is � pr�tica de crimes, voc� ultrapassa os limites de uma liberdade religiosa. Porque todo direito fundamental, ele n�o � ilimitado", afirma.

"Se n�s temos a liberdade religiosa, n�s tamb�m temos a liberdade de todos os cidad�os brasileiros de poderem contribuir com o Estado social e democr�tico de direito vigente e n�o sofrer intimida��es, n�o correr o risco de que amanh� ele vai acordar e j� estar vivenciando um regime de exce��o obtido atrav�s da viol�ncia e da for�a", afirma.