
No fim de semana, a Bahia sofreu um novo epis�dio que escancarou ainda mais o acirramento da viol�ncia no Estado nos �ltimos meses. Dez pessoas morreram em uma opera��o da pol�cia na periferia de Salvador.
Na sexta-feira, agentes federais, civis e militares realizaram uma opera��o no bairro de Val�ria. Oficialmente, a a��o visava o combate a grupos criminosos que nas �ltimas semanas v�m promovendo conflitos pelo controle do tr�fico de drogas ilegais em v�rios pontos da capital baiana.
Na a��o, cinco pessoas - entre elas, o policial federal Lucas Carib� - morreram em um tiroteio. Dois agentes tamb�m ficaram feridos. Nos dias seguintes, outros cinco suspeitos de participarem do primeiro tiroteio foram mortos em confrontos com policiais, segundo a Secretaria da Seguran�a P�blica.
O caso impulsionou o envio de tr�s ve�culos blindados da Pol�cia Federal para integrar uma for�a tarefa com a PM e Pol�cia Civil que visa combater fac��es, refor�ando um cen�rio de viol�ncia at� ent�o incomum para os soteropolitanos: o conflito b�lico, em vias p�blicas, entre esses grupos, e entre eles e a pol�cia.
Nos �ltimos meses, jovens baianos cooptados pela fac��o carioca Comando Vermelho (CV) est�o tentando tomar regi�es controladas por grupos locais, como Bonde do Maluco (BDM), causando tiroteios nas ruas, chacinas, cobran�a de taxas a comerciantes e p�nico entre a popula��o.
“Esse � um fen�meno recente na Bahia, de poucos meses. N�o d� para atribuir a escalada da viol�ncia s� a esses conflitos, que come�aram no segundo semestre deste ano. H� anos a taxa de homic�dios � alta na Bahia. � um processo longo de pol�ticas desastradas”, diz Samuel Vida, coordenador do programa de pesquisa em direito e rela��es raciais da Universidade Federal da Bahia (UFBA).Como em todo o pa�s, o n�mero de homic�dios na Bahia est� caindo depois de duas d�cadas em crescimento. Em 2017, por exemplo, o ano mais violento da hist�ria do pa�s, a Bahia registrou 7,4 mil das 65,6 mil mortes violentas no Brasil. Por�m, mesmo com uma diminui��o gradual, os dados da viol�ncia de 2022 colocam o Estado em uma situa��o preocupante por v�rios fatores.
Segundo o Anu�rio Brasileiro de Seguran�a P�blica, houve 6.659 assassinatos na Bahia no ano passado. Embora tenha havido uma queda de 5,9% em rela��o a 2021, o Estado � o primeiro em n�meros absolutos e o segundo mais violento do pa�s em termos proporcionais, atr�s apenas do Amap�. Foram 47,1 homic�dios por grupo de 100 mil habitantes - no Amap� s�o 50,6 v�timas.
O relat�rio, produzido pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica (FBSP), aponta que as quatro cidades mais violentas do pa�s est�o na Bahia: Jequi� (88,8 mortes por 100 mil), Santo Ant�nio de Jesus (88,3), Sim�es Filho (87,4) e Cama�ari (82,1).
No ano passado, a Bahia tamb�m se tornou o Estado com o maior n�mero de mortes em decorr�ncia de a��es policiais, com 1.464 ocorr�ncias - 28 por semana, em m�dia. Desde 2015, diz o anu�rio, esse n�mero quadruplicou.
Mas o que explica todo esse cen�rio?
Nos �ltimos dias, a BBC News Brasil ouviu pesquisadores, policiais e ativistas que acompanham a quest�o para tentar entender os fatores que ajudam a explicar a viol�ncia no Estado.
Em resumo, eles apontam que, para al�m da din�mica de disputa de territ�rio pelas fac��es, os principais gargalos s�o a viol�ncia policial e a escolha pelo confronto b�lico como principal pol�tica de seguran�a p�blica nos governos do PT, o que acaba tendo como maior v�tima a popula��o negra.
Em 2023, o partido entrou em seu quinto mandato consecutivo no comando da Bahia. Foram dois do hoje senador e l�der do governo no Senado Jaques Wagner, entre 2007 e 2014, dois do hoje ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, entre 2015 e 2022, e um do atual governador, Jer�nimo Rodrigues, estreante no cargo.
A gest�o petista confirma um “acirramento do conflito entre fac��es” e afirma que est� investindo para diminuir a viol�ncia, com aumento de pessoal e opera��es de combate ao crime, inclusive com a participa��o da Pol�cia Federal.
Em nota, a Secretaria da Seguran�a P�blica (SSP) citou como exemplo a contrata��o de 2 mil PMs e bombeiros, al�m de 12 mil pris�es e apreens�o de 4 mil armas (entre elas, 47 fuzis) nos primeiros oito meses do ano.
Governos do PT

Para Samuel Vida, professor da UFBA, os governadores do PT optaram por “uma pol�tica de continuidade” na seguran�a p�blica em rela��o aos governos anteriores, chamados de “carlistas” por conta de sua proximidade com o pol�tico Ant�nio Carlos Magalh�es (1927-2007), que governou a Bahia por 12 anos em tr�s ocasi�es.
“Os governos petistas n�o mudaram a l�gica carlista de enxergar a letalidade como crit�rio de efici�ncia da pol�cia. Ao inv�s de investir em intelig�ncia, em melhorar a capacidade de investiga��o e resolu��o de crimes da Pol�cia Civil, essas gest�es investiram em agrupamentos de elite da PM que t�m o confronto armado como prioridade”, diz Vida.
O acad�mico, que por anos foi dirigente do PT, conta que deixou o partido ap�s um epis�dio conhecido como “Chacina do Cabula”. Em fevereiro de 2015, uma opera��o da PM no bairro de Vila Mois�s, em Salvador, terminou com a morte de 12 jovens. Nove policiais foram denunciados pelo Minist�rio P�blico, que os acusou de executar sumariamente as v�timas, mas at� hoje n�o foram julgados.
Um dia ap�s a a��o, o ent�o governador Rui Costa comparou os policiais a atacantes de futebol, declara��o duramente criticada no pr�prio PT e por ativistas pelos direitos humanos.
"� como um artilheiro em frente ao gol que tenta decidir, em alguns segundos, como � que ele vai botar a bola dentro do gol. Se foi um gola�o, todos os torcedores ir�o bater palmas. Se o gol for perdido, o artilheiro vai ser condenado, porque se tivesse chutado daquele jeito, a bola teria entrado. N�s defendemos, assim como um bom artilheiro, acertar mais do que errar”, afirmou.
Samuel Vida conta que a fala de Rui Costa o convenceu a deixar o partido. “Rui Costa foi aplaudido por policiais, pois muitos na corpora��o viram que o governador concordava com esse tipo de a��o, que tem como maiores v�timas jovens negros e perif�ricos”, diz o acad�mico.
A reportagem tentou contato com as assessorias de imprensa de Rui Costa e Jaques Wagner, mas n�o obteve resposta. A escalada da viol�ncia na Bahia, com repercuss�o nacional, � tamb�m um inc�modo para o PT, j� que o Estado � um importante reduto do partido, onde o presidente Luiz In�cio Lula da Silva obteve 72,12% dos votos na disputa com Jair Bolsonaro em 2022.

Conflitos por territ�rio
A piora da viol�ncia na Bahia n�o � um fen�meno isolado no Nordeste. Outros Estados, como Rio Grande do Norte, Para�ba e Cear�, tamb�m enfrentam o problema.
Segundo o Atlas da Viol�ncia, publica��o do Instituto de Pesquisa Econ�mica Aplicada (Ipea) e do FBSP que compila dados desde 1989, a Bahia registrou 1.242 homic�dios em 2000. Nas duas d�cadas seguintes, esse n�mero aumentou ano a ano, chegando a 7.487 casos em 2017, pior momento da s�rie hist�rica, alta de 502% em rela��o ao ano 2000.
No ano passado, de acordo com o Anu�rio Brasileiro da Seguran�a P�blica, foram 6.659 v�timas.
Por outro lado, a gest�o Jer�nimo Rodrigues afirma que houve uma redu��o de 22,5% no n�mero de assassinatos entre 2016 e 2022. Entre janeiro e agosto deste ano, a queda foi de 3,3% em rela��o ao mesmo per�odo do ano passado, diz o governo.
O alto n�mero de assassinatos, por�m, n�o � acompanhado por investiga��es efetivas. Um estudo do Instituto Sou da Paz mostrou que em 2020 apenas 22% das mortes violentas na Bahia foram solucionadas - a m�dia brasileira � de 37%.
Segundo especialistas, o aumento da viol�ncia na regi�o tamb�m est� associado � chegada de grandes fac��es, como o PCC e o Comando Vermelho. At� ent�o, a Bahia nunca teve uma fac��o hegem�nica - e sim grupos menores.
Esse cen�rio est� mudando, por�m, com a tentativa do CV de tomar regi�es controladas por siglas menores, segundo a reportagem apurou.
O governo baiano afirma que o “acirramento entre grupos criminosos � o principal respons�vel pela maior parte das mortes registradas no estado, fruto da briga pelo dom�nio da venda de entorpecentes”.
Em nota, a gest�o petista tamb�m critica o que chama de “permissividade das interpreta��es das leis”. “Crimes como assaltos a �nibus, roubo de ve�culos e at� homic�dios s�o efetuados por pessoas que j� foram capturadas pela pol�cia, mas que logo retornam �s ruas e voltam a cometer novos delitos”, diz.

Negros como v�timas
Para o policial militar Marco Prisco, coordenador-geral da Associa��o de Pra�as da Bahia (Aspra), a resposta do governo a esses conflitos, por meio de opera��es b�licas, acaba colocando em risco os pr�prios agentes p�blicos.
“A criminalidade anda de bonde, enquanto na viatura est�o dois policiais com armamento inferior. Esse � o policial que vai enfrentar (as fac��es). Aumentam as mortes de bandidos, mas tamb�m de policiais. O policial tamb�m pode sair ferido, sequelado, com problemas psicol�gicos”, afirma o PM, que j� foi expulso da corpora��o por liderar greves, mas depois acabou reintegrado.
J� o militante Marcos Rezende, fundador do Coletivo de Entidades Negras, acredita que, na guerra entre fac��es e pol�cia, a maior v�tima � a popula��o negra baiana, subjugada pelo racismo estrutural que permeia a pol�tica de seguran�a, diz.
“Na pol�cia da Bahia, a grande maioria dos soldados � formada por negros. � um jovem que, para fugir da pobreza, v� a PM como uma oportunidade de melhorar de vida. Ele entra na l�gica do militarismo e da caserna, que prega o confronto. Mas, na realidade, quem acaba morrendo � esse soldado negro”, diz.
“A Bahia � o Estado mais negro do Brasil, mas sua elite pol�tica e econ�mica � formada por brancos que pregam a criminaliza��o do corpo negro por meio do controle de territ�rios e pela chamada guerra �s drogas”, afirma Rezende.
H� alguns meses, o militante, que morava na comunidade Solar do Unh�o, no centro de Salvador, precisou deixar sua casa depois de denunciar abusos de policiais contra jovens do bairro. Temia sofrer repres�lias.
Aconselhado por amigos, Rezende saiu de Solar do Unh�o e morou por alguns meses de favor em outros endere�os de Salvador. Depois foi viver em outro Estado.
Questionada nesta segunda-feira sobre as cr�ticas a respeito do "racismo estrutural", a Secretaria de Seguran�a P�blica da Bahia n�o respondeu.
‘Certeza de injusti�a’
Para a ativista Nadijane Macedo, de 56 anos, m�e de um jovem que foi morto em uma a��o da PM, a sensa��o � de que “nada acontece” com os policiais envolvidos nos chamados “autos de resist�ncia”, quando os agentes afirmam que atiraram em rea��o a um ataque inicial.
O filho de Nadijane, o estudante Alexandre Macedo, tinha 17 anos quando morreu, em 2008, em um bairro na periferia de Salvador. Ele andava na garupa de uma moto quando um tiro disparado por um PM acertou sua nuca. Demorou uma d�cada para o caso fosse julgado.
Os policiais disseram que reagiram a um ataque, mas testemunhas afirmaram que a arma encontrada perto do jovem havia sido plantada pelos agentes - exames apontaram que n�o havia sinais de p�lvora nas m�os do estudante.
Na vers�o inicial dos policiais, Alexandre estava envolvido em uma tentativa de assalto que teria acontecido momentos antes em uma ag�ncia banc�ria. Por�m, a v�tima negou que o jovem estivesse no local, al�m de contar que a tentativa de roubo aconteceu uma hora depois de Alexandre ter sido baleado pelo PM.
“O processo s� foi pra frente, porque eu lutei muito, ajudei a investigar, fiz passeata no centro, falei na televis�o. Tive a sorte de encontrar uma delegada que n�o desistiu do caso. Se n�o fosse por isso, n�o tinha acontecido nada”, diz Nadijane, que hoje auxilia m�es de v�timas da viol�ncia na ONG Odara - Instituto da Mulher Negra.
Mesmo com sua luta, o caso s� foi a j�ri popular em 2018, uma d�cada depois - o julgamento chegou a ser adiado seis vezes.
O policial que atirou em Alexandre foi condenado a 12 anos de pris�o, e teve direito a recurso. A senten�a foi confirmada em 2020, mas, como ele fora julgado em liberdade, n�o se apresentou � Justi�a para cumprir a pena - hoje, o PM � considerado foragido.
“Fizeram de tudo para que n�o acontecesse nada. Meu filho era um jovem bonito, trabalhava, frequentava a igreja. N�o tinha envolvimento com nada. Na Bahia, a certeza da injusti�a � muito grande. H� muitas m�es que est�o h� anos esperando um julgamento, m�es de crian�as que foram mortas no quintal de casa”, diz Nadijane.