
Palavras "cru�is" ouvidas por mulheres ao dar � luz v�o desde a insist�ncia para ela fazer for�a quando n�o consegue faz�-lo at� "cala boca sen�o seu beb� vai nascer surdo", "na hora de fazer (o filho) n�o gritou" ou "cala a boca ou voc� vai acabar matando o seu beb�", relata a m�dica, que � professora de ginecologia e obstetr�cia da Universidade Federal de Campina Grande e coautora de diretrizes nacionais relacionadas a procedimentos obst�tricos.
Essas viol�ncias, segundo ela, transformam partos, mesmo sem intercorr�ncias graves, em "experi�ncias traum�ticas", com sequelas f�sicas e psicol�gicas para mulheres.
O tema da viol�ncia obst�trica veio � tona nesta semana por conta de �udios e v�deos vazados da influenciadora Shantal Verdelho, que deu � luz, em setembro, em um parto realizado pelo m�dico Renato Kalil - agora sob investiga��o do Conselho Regional de Medicina paulista.
No v�deo do parto, o m�dico aparece dizendo "faz for�a, p*rra".
O m�dico argumenta que o v�deo foi "editado e tirado de contexto".
"A �ntegra do v�deo mostra que n�o h� nenhuma irregularidade ou postura inapropriada durante o procedimento. Ataques � sua reputa��o ser�o objeto de provid�ncias jur�dicas, com a an�lise do v�deo na �ntegra", diz nota do m�dico enviada por sua assessoria.
Nos �udios privados que foram tornados p�blicos, Shantal afirmou que os v�deos de seu parto s�o um "show de horror".
"Ele (Kalil) me xinga o trabalho de parto inteiro. Ele fala 'p*rra, faz for�a, filha da m�e, viadinha, ela n�o faz for�a direito. (...) Tem v�deo dele me rasgando com a m�o, era s� para eu ficar arrebentada e falar 'ah voc� tinha raz�o, eu deveria ter feito a episiotomia'."
Episiotomia � um procedimento cir�rgico que visa aumentar a abertura vaginal para a sa�da do beb�. Segundo a Federa��o Brasileira das Associa��es de Ginecologia e Obstetr�cia (Febrasgo), "atualmente, n�o h� evid�ncia cient�fica suficiente para definir as indica��es para a episiotomia, apenas que o uso seletivo continua a ser a melhor pr�tica a ser adotada. (...) Ou seja, n�o fazer episiotomia deve ser a primeira op��o".

Em nota, a assessoria de Kalil afirma que ele � "um dos m�dicos mais reconhecidos do Brasil. Ao longo de sua carreira, j� efetuou mais de 10 mil partos, sem nenhuma reclama��o ou incidente. O parto da sra. Shantal aconteceu sem qualquer intercorr�ncia e foi elogiado por ela em suas redes sociais durante trinta dias ap�s o parto".
Depois do relato de Shantal, a jornalista Samantha Pearson deu entrevista ao jornal O Globo dizendo que tamb�m foi insultada pelo mesmo m�dico durante seu acompanhamento pr�-natal. Segundo ela, ele "falava da minha vagina como se eu n�o estivesse ali", "disse que eu tinha que emagrecer ou meu marido ia me trair". "Me senti humilhada v�rias vezes."
'Interven��es excessivas' e 'sofrimento desnecess�rio'
Para al�m dos casos individuais relatados acima, "(insultos) s�o chocantes e acontecem com muita frequ�ncia, mas s�o a ponta do iceberg" do cen�rio obst�trico no Brasil, afirma Melania Amorim.
Para mensurar a dimens�o da viol�ncia obst�trica no pa�s, argumenta ela, seria preciso juntar "o quanto as mulheres se sentiram ofendidas e agredidas com a quantidade de procedimentos desnecess�rios e prejudiciais na assist�ncia pr�-natal, ao aborto, ao parto e ao puerp�rio".
Ela cita uma revis�o acad�mica feita por pesquisadoras latino-americanas (Brasil incluso) em 2019, apontando que a "falta de respeito e os maus-tratos" durante partos e abortos ocorreram em 43% das gesta��es observadas. Mas h� ind�cios de que esse �ndice esteja muito subestimado.
Isso porque outra pesquisa, Nascer no Brasil, conduzida pela Fiocruz entre 2011 e 2012, com 23,8 mil mulheres, concluiu que "entre as gestantes que tiveram um parto vaginal, observou-se a predomin�ncia de um modelo de aten��o extremamente medicalizado, que ignora as melhores evid�ncias cient�ficas dispon�veis".
"A maioria das mulheres foi submetida a interven��es excessivas, ficou restrita ao leito e sem est�mulo para caminhar, sem se alimentar durante o trabalho de parto, usou medicamentos para acelerar as contra��es (ocitocina), foi submetida � episiotomia, deu � luz deitada de costas, muitas vezes com algu�m apertando a sua barriga (manobra de Kristeller). Esses procedimentos, quando usados sem indica��o cl�nica, causam dor e sofrimento desnecess�rio e n�o s�o recomendados pela Organiza��o Mundial da Sa�de", diz o texto.
O estudo da Fiocruz prossegue: "Poucas mulheres brasileiras tiveram a chance de vivenciar um parto sem as interven��es anteriormente descritas, apenas 5% do total, valor muito inferior aos 40% observados no Reino Unido. O padr�o se distribui por todas as regi�es geogr�ficas e tipos de servi�o de sa�de, mostrando que a medicaliza��o do parto � uma pr�tica disseminada por todo o pa�s."

Para Amorim, esse "� o modelo de assist�ncia obst�trica vigente, com uma necessidade literalmente abusiva de se intrometer na cena do parto".
"Esse vi�s mis�gino ainda perpassa a nossa ginecologia e obstetr�cia mesmo quando ela � muitas vezes feita por mulheres, porque � o modelo vigente, que v� o meu corpo e o seu corpo como defeituosos, que s� v�o parir com uma interven��o m�dica. � o modelo ensinado em muitas escolas m�dicas", critica.
Essa percep��o, ressalta Amorim, "pode ferir a sensibilidade dos profissionais, (ao) se reconhecerem como perpetradores de viol�ncia obst�trica, muito mais d�i nas mulheres que foram v�timas".
Essa viol�ncia pode acontecer em diversos momentos do pr�-natal, do parto ou p�s-parto e n�o � necessariamente perpetrada pelos m�dicos, mas tamb�m por outros profissionais da sa�de ou mesmo pelo sistema de sa�de quando este n�o oferece as condi��es adequadas para um parto que, nas palavras de Amorim, "seja baseado em evid�ncias cient�ficas".
"A ces�rea desnecess�ria, contra a vontade da mulher (quando ela � enganada ou induzida a escolher a ces�rea, por pretextos f�teis ou enganosos), tamb�m � uma forma de viol�ncia obst�trica", explica a m�dica.
"(Nesses casos) h� uma falsa dicotomia: escolher entre um parto 'normal', violento, e uma ces�rea 'limpinha' � uma escolha de Sofia que ningu�m deveria ser obrigada a fazer. Porque existe uma terceira via, que deveria ser a regra: da assist�ncia ao parto baseada em evid�ncias, (termo) que eu at� prefiro do que humaniza��o da assist�ncia ao parto, porque o sentido � menos esvaziado do que o r�tulo 'humanizado'.
Isso inclui o respeito � autonomia e ao protagonismo feminino, inclui s� usar procedimentos respaldados em evid�ncias s�lidas, inclui o significado do parto como um evento psicossocial, e n�o como um ato m�dico.
E isso � totalmente poss�vel sem que voc� seja obrigado a fazer uma falsa escolha."
'Viol�ncia obst�trica � naturalizada'
Um dos problemas, segundo Amorim, � que partos com interven��es nem sempre necess�rias ou m�todos pouco eficazes s�o naturalizados tanto na forma��o dos m�dicos quanto na forma como o nascimento humano � retratado na nossa cultura popular.
"Nas novelas, tem sempre algu�m dando comandos (a uma mulher em trabalho de parto), dizendo 'for�a, for�a', geralmente a uma mulher deitada de pernas abertas. E voc� come�a a normalizar que aquilo ali � o padr�o, � a forma correta do parto. Geralmente s�o partos medicamentosos, e com muita viol�ncia", argumenta.

"(...) Falo isso com muita tranquilidade porque sou m�dica, mas a resid�ncia nos prepara basicamente para agir nos partos de alto risco, nos partos complicados.
A� se cria uma falsa sensa��o de que a mulher � uma bomba-rel�gio prestes a explodir e que essas interven��es se justificariam. Com o tempo isso se normaliza, e voc� come�a a intervir mesmo quando n�o � necess�rio."
Segundo Amorim, dois procedimentos bastante invasivos - e comuns - s�o a manobra de Kristeller e episiotomias feitas sem consentimento da mulher, ou manualmente, sem anestesia.
"A violenta atroz press�o no fundo de �tero, a manobra de Kristeller, � uma das formas mais frequentes, e paciente n�o percebe aquilo como viol�ncia. Pode passar despercebida por tr�s de procedimentos incorporados pela pr�tica m�dica, mas que n�o s�o naturais", diz.
Essa manobra, tamb�m chamada de press�o f�ndica no per�odo expulsivo do parto, n�o � recomendada pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS).
Sobre a episiotomia feita � for�a, h� "casos em que a mulher fez um plano de parto dizendo que n�o queria episiotomia, o m�dico (parece ter) ficado muito irritado com aquilo e faz uma manobra com muita for�a e rasga o per�neo da mulher com a m�o. N�o vi isso uma ou duas vezes, foram v�rios casos - de per�neos abertos a m�o, sem anestesia. Me choca pelo car�ter de retalia��o, de vingan�a. � como dizer 'voc� (mulher) ousou ditar as normas, agora voc� vai ver'", diz Amorim.
"E tem a episiotomia feita com pontos sem anestesia. A gente n�o concebe isso em nenhuma outra circunst�ncia da medicina - cortar e suturar tecidos (humanos) sem anestesia. E numa regi�o t�o �ntima e sens�vel, e num momento t�o especial como o parto."
Dizer 'faz for�a' tamb�m � prejudicial, diz m�dica
Amorim defende que, durante um trabalho de parto, "qualquer forma de press�o � nociva, n�o � efetiva, e, portanto, deve ser abolida".
"Amarrar as pernas da parturiente, obrig�-la a parir na posi��o deitada - que s� � boa pro m�dico - e (dar) os comandos durante o per�odo expulsivo - como 'fa�a for�a', 'trinca os dentes e fa�a for�a' -, a gente j� tem evid�ncia de que (esses procedimentos) n�o s�o necess�rios, mesmo que n�o sejam francamente agressivos", argumenta.
"Porque o parto � uma for�a da natureza - um evento incontrol�vel, que tem uma dimens�o transformadora, um tsunami. Na tentativa de controlar o incontrol�vel, os profissionais de sa�de, embebidos desse modelo de forma��o machista, lidam com esse medo de algo t�o intenso impondo um controle r�gido.
Isso explica, mas n�o justifica oprimir outra (pessoa), minar sua autoestima. Em v�rias circunst�ncias a gente pode ter necessidade de interven��o (no parto), mas essa interven��o pode ser, quase sempre, salvo nas emerg�ncias, pactuada com a parturiente."
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