
A mineira J�lia Pontes � artista, fot�grafa, pesquisadora e ativista. Ela acaba de terminar seu mestrado em artes visuais na Columbia University, em Nova York (EUA). Na formatura, com a filha Stella Lyra, de 8 meses, no colo, ganhou destaque n�o s� entre os alunos, mas foi not�cia em v�rios portais de not�cias dos Estados Unidos. Em sua rede social, J�lia fez um relato em que contou ter passado por uma rela��o abusiva, as dificuldades que teve para chegar a se formar, e estimulou outras m�es solo a n�o desistirem de seus sonhos. “N�o sou hero�na e n�o queria ser. Tamb�m n�o preciso de d�, pena ou julgamento. O que n�s, m�es, precisamos � de um sistema que entenda o que passamos e que nos d� suporte para que possamos ser a melhor vers�o de n�s mesmas.”
Filha de T�lio Mour�o, mineiro de Divin�polis, compositor, pianista e arranjador brasileiro, desde 2015 J�lia se dedica a pesquisar, documentar e denunciar a devasta��o humanit�ria e ambiental causada pela minera��o. Seu trabalho foi reconhecido e premiado pela Planetary Alliance da Universidade de Harvard, institui��o da qual � embaixadora.
Atualmente, ´ï¿½ bolsista da National Geographic Foundation, com um trabalho de documenta��o do impacto da pandemia em comunidades atingidas pela minera��o em Minas. Dos EUA, ela conversou com o Bem Viver sobre ser mulher, m�e, militante e suas batalhas pessoais, pelo outro e pela sociedade.
Fale um pouco de suas ra�zes e como se formou mulher do seu tempo.
Sou uma mulher contempor�nea, mas minhas ra�zes est�o em BH. Minha fam�lia � de Divin�polis, e todos n�s, essa heran�a, a cria��o em Minas foram fundamentais para a pessoa que sou hoje. Sou muito arraigada no meu solo, na rela��o com a terra e com as montanhas. Sa� de BH em 2004, fiquei 10 anos na Argentina, o que tamb�m foi importante para me tornar quem sou. Buenos Aires � a capital financeira e pol�tica de um pa�s que convive com toda a movimenta��o social que ocorre por l�, panela�os e protestos, ainda muito arraigado no sexismo, no machismo. Por outro lado, � progressista em pol�ticas da mulher. A Argentina foi o primeiro pa�s da Am�rica Latina a autorizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a aprovar o aborto, tem muitas mulheres no congresso, na pol�tica, e isso foi fundamental na minha forma��o. Em 2014, me mudei para Nova York, porque sempre quis trabalhar com pol�ticas p�blicas. Quando me formei e fui trabalhar no governo foi dif�cil porque vi que n�o teria est�mago para lidar com a pol�tica. Eu queria falar sobre causas sociais. Ent�o, migrei para a fotografia e, em Nova York, encontrei espa�o para pensar a foto e o document�rio e desenvolver meu pensamento cr�tico em rela��o � minera��o e todas as coisas que fazem parte do meu trabalho. Hoje, fico aqui, mas sempre volto para Minas para falar sobre o desaparecimento das montanhas - que s�o fundamentais para mim.
N�o se nasce mulher, se torna mulher. N�o se nasce m�e, se torna m�e. Como tem sido a jornada solo?
Nasci como m�e no meu parto. Uma transforma��o forte, foram 27 horas de trabalho de parto, e n�o tinha nem planejado, n�o sabia que seria m�e. Tive tr�s cirurgias no �tero, de endometriose, n�o era uma certeza na vida de que conseguiria ser m�e. De repente, me assustei gr�vida. Engravidei durante a pandemia, enquanto fazia trabalho de campo em Minas, documentando o que estava ocorrendo nas comunidades mineradoras, os abusos e avan�os, aproveitando que todo mundo estava focado na COVID-19. Ent�o, foi um susto, estava no meio do mestrado e, ao mesmo tempo, m�gico. A maternidade me deixou mais focada, centrada, passei a relativizar tudo e ter uma outra rela��o com a terra. Minha tese � sobre Minas e a conex�o com a terra e que minha filha, Stella, mesmo longe, me faz continuar ligada a Minas Gerais. Ser m�e solo � dif�cil, quando se est� longe de casa, e com minhas decis�es de vida, aumenta a dificuldade porque n�o tem as m�es, os pais e amigos de inf�ncia por perto. Ao mesmo tempo, h� anos estou acostumada a ser solo na vida, ent�o, encaro como um novo desafio, de maneira independente. N�o � f�cil de jeito nenhum. Sou m�e solo sim, mas sozinha nunca.
E a J�lia ativista? Como nasceu?
Como nasce uma ativista? Desde temprana idade sempre imaginei, quis e sabia que iria trabalhar dentro da pol�tica de alguma forma. Aos 30 anos, tive uma mudan�a brusca de carreira, mudei o caminho para trabalhar com temas sociais, com a certeza de que reformas sociais precisam existir. O fato de estar longe e depender de um aeroporto para chegar a BH fez com que eu ficasse atenta a todas as mudan�as no entorno de Confins. Minas Gerais est� virando um queijo su��o e n�o falamos sobre isso. S� naquele entorno, Lagoa Santa, Pedro Leopoldo, Confins e um pouco mais ao norte, Prudente de Morais, uma �rea muito restrita - s�o 30 licen�as ativas de minera��o. O territ�rio de Minas � todo recortado, praticamente signado, o que � de quem no subsolo mineiro. Com licen�as ativas ou para pesquisa, requerimento de lavra ou alguma outra autoriza��o e as cavas se tornando cada vez maiores. Fora as minas na regi�o de Nova Lima, Serra do Curral, ent�o, o que me interessava muito era porque n�o se fala tanto sobre isso? Foi o meu despertar.
Como surgiu seu projeto de fotos a�reas das �reas de minera��o?
N�o se fala do assunto porque, primeiro, � cultural e, depois, pelo fato do relevo e das montanhas tamparem sempre as minas. Preserva-se a parte vis�vel da montanha, como � o caso de Concei��o do Mato Dentro. S� consegui colocar em pr�tica este projeto de fotografar as �reas de cima depois de Mariana, porque houve uma sensibiliza��o, com mais pessoas acreditando que havia algo. Fotografei de cima o territ�rio e as minas perto do Quadril�tero Ferr�fero. Eu me assustei, chorava muito, principalmente no voo que percorri o caminho da lama. H� muitas pessoas sofrendo, principalmente quando se percebe de cima o n�vel e a dimens�o de tudo, � inacredit�vel. Para mim, � a necessidade das pessoas que s�o v�timas todos os dias da minera��o, com dificuldades graves, numa regi�o t�o rica, n�o terem as necessidades b�sicas atendidas. A minera��o, por mais que explore, n�o retribui. Isso me faz mobilizar neste lugar.
Minas, sua terra, e a minera��o. Como entende este ch�o de montanhas, muitas j� ocas?
Tenho uma rela��o com a terra e as montanhas de Minas visceral. Passo pelas estradas perto de Itabirito e aquele buraco parece que � em mim. Hoje, tento entender ao ler A�lton Krenak, por exemplo, a rela��o de olhar para montanha com um olhar da nossa pr�pria exist�ncia. Uma mineradora demora 30, 40 anos numa mina, e parece muito tempo, n�o �? Mas se olhar os 2; 2,5 bilh�es de anos que uma montanha mineira demorou no geral para ser formada, os veios do ferro, isso � que � muito tempo. E num piscar de olhos as montanhas desapareceram. Como viveremos o resto da vida sem aquele recurso? � preciso pesquisar, saber, pensar neste lugar em que a destrui��o s� aumenta e acelera, principalmente, a partir dos anos 2000, desde a privatiza��o da Vale, desde que o capital estrangeiro teve permiss�o para investir em minera��o no Brasil, com a reforma constitucional de 1995. O que fazer para olhar para a montanha, n�o como um objeto inanimado, mas sim um ser que vive, como os povos tradicionais nos ensinam, em uma outra velocidade, outra dimens�o, que n�o � a nossa. As montanhas mudam, sim, de lugar, s� que sua velocidade � menor do que a nossa �nfima vida neste universo � capaz de perceber. Este � o convite que fa�o a partir da minha obra e trabalho art�stico.
Com que ferramentas enfrenta preconceitos, a mulher no mercado de trabalho, a m�e, o sexismo... Qual � o seu olhar?
� t�o mais dif�cil para a mulher do que para o homem ser valorizada, ter o trabalho respeitado, que a gente d� conta... E isso � o tempo todo. J� � dif�cil porque sou uma mulher de pele clara, imagina para uma mulher negra e perif�rica? E isso quando traduzo por estar aqui, eu que vim de Minas, de um lugar de privil�gio, estudei nas escolas da Zona Sul de BH, portanto, tudo era mais f�cil, mesmo assim, ainda � dif�cil. E quando venho para os EUA, tenho a no��o de que a cor da pele n�o est� relacionada com a quest�o racial, ser mulher latina aqui � muito mais dif�cil. Existe o estigma do que somos capazes de fazer, h� menos oportunidades. A gente fala de equidade de g�nero achando que a regra � igual para todo mundo, mas n�o tem jeito, porque homens e mulheres t�m realidades diferentes. E geralmente a produtividade da mulher, que � alt�ssima, se d� de maneira diferente da masculina. Vejo na minha maternidade: as pessoas esperam que eu esteja dispon�vel para responder prontamente, o que � dif�cil. Minha realidade � outra, o que n�o quer dizer que n�o vou me dedicar ao trabalho, que agora funciona de outra maneira, como m�e. � uma resist�ncia, uma luta e uma conversa longa e sem resposta, porque a estrutura, as leis s�o para privilegiar um grupo de pessoas, principalmente os homens brancos.
Voc� enfrentou um abuso. O machismo continua intr�nseco na sociedade, como superar?
A pergunta me deixou reflexiva. Eu, com todas as ferramentas, questiono, penso, falo sobre preconceito, quest�es raciais, tenho a vis�o cr�tica e, mesmo assim, fui v�tima de uma rela��o abusiva. O genitor da minha filha � uma pessoa abusiva e foram meses de sofrimento e, por medo, nunca compartilhei essa hist�ria. Ent�o, imagina quem est� arraigada, que n�o pode questionar, levada a pensar que a culpa � sempre da mulher... A mulher, �s vezes, est� t�o acostumada a ser tratada de uma maneira, que passa a ver aquilo como normal, ser silenciada e que o homem pode explodir. N�o, n�o �. Acho importante falar da minha hist�ria para que outras mulheres, maltratadas, possam ver. Muitas quando t�m sua pr�pria hist�ria questionada s�o levadas a acreditar que valem menos do que valem. Espero que elas vejam outras hist�rias e possam procurar caminhos, porque h� outras possibilidades.