
Em 2009, o economista R�gis Feitosa Mota ficou abalado ao descobrir que a filha mais velha dele, Anna Carolina, na �poca com 12 anos, estava com leucemia linfoide aguda, o tipo de c�ncer mais comum entre as crian�as.
Foram quase tr�s anos at� a jovem encerrar o tratamento com radioterapia e quimioterapia contra a doen�a. "Depois disso, ela ficou muito bem", diz R�gis, de 52 anos, � BBC News Brasil.
No �ltimo dia 19, Anna Carolina morreu em decorr�ncia de um tumor no c�rebro. Foi o terceiro filho que R�gis perdeu em raz�o do c�ncer. "Em quatro anos e meio, perdi todos os meus filhos", lamenta.
Ele perdeu a filha ca�ula, Beatriz, em 2018, em virtude de uma leucemia linfoide aguda. Dois anos depois, outro filho dele, Pedro, morreu em decorr�ncia de um c�ncer no c�rebro — anteriormente, ele j� havia tratado outros tumores.

Enquanto chorava pelas mortes dos filhos, R�gis ainda teve que lidar com os pr�prios tratamentos de sa�de. Desde 2016, ele trata uma leucemia linfoide cr�nica. J� em 2021, ele descobriu um linfoma n�o Hodgkin, c�ncer que surge no sistema linf�tico (rede de pequenos vasos e g�nglios que � parte dos sistemas imunol�gico e circulat�rio).
Os casos na fam�lia do economista foram relacionados a um problema que ele descobriu em 2016: uma s�ndrome heredit�ria chamada Li-Fraumeni (LFS), causada por uma muta��o gen�tica que aumenta significativamente o risco de c�ncer (saiba mais abaixo).
'Os casos n�o poderiam ser coincid�ncia'

Antes do primeiro diagn�stico de c�ncer em 2009, R�gis afirma que ele e os tr�s filhos eram saud�veis e a fam�lia n�o tinha hist�rico de problemas de sa�de.
Depois que Anna Carolina encerrou o tratamento contra a leucemia, passaram-se alguns anos at� que o c�ncer voltasse a preocupar.
"O segundo diagn�stico (na fam�lia) foi em 2016, quando descobri uma leucemia linfoide cr�nica, ap�s apresentar sintomas como febre, incha�o no pesco�o e fraqueza", detalha o economista.
A equipe m�dica informou a R�gis que a doen�a dele costumava ter uma evolu��o lenta e ele poderia conviver com ela
por anos. Ainda em 2016, ele come�ou o tratamento com quimioterapia oral.
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Tamb�m em 2016, o filho dele, Pedro, ent�o com 17 anos, foi diagnosticado com osteossarcoma, c�ncer que se desenvolve no osso, na regi�o da perna esquerda.
Os diagn�sticos dele e do filho, al�m daquele que Anna Carolina recebera anos atr�s, chamaram a aten��o do economista. "Nesse momento, a gente passou a acreditar que esses tr�s casos n�o poderiam ser coincid�ncia. Nesse per�odo decidimos que seria melhor investigar", diz R�gis.
Ele e os tr�s filhos - Anna Carolina e Pedro eram filhos do primeiro casamento e Beatriz, do segundo - passaram por exames gen�ticos em S�o Paulo.
"Os resultados mostraram que eu tinha uma altera��o gen�tica que, lamentavelmente, passou tamb�m para os meus filhos, e que potencializa o surgimento de c�ncer", conta o pai.

Segundo o economista, nenhum outro parente pr�ximo dele ou as m�es de seus filhos t�m essa s�ndrome. "N�o sabemos a origem dessa minha altera��o gen�tica, at� porque meus pais n�o t�m. O meu pai atualmente tem 85 anos e a minha m�e tem 78. S�o saud�veis", explica R�gis.
Para entender a altera��o ao qual o economista se refere, primeiro � preciso compreender o gene TP53. A partir dele � produzida a prote�na p53, que impede o crescimento de tumores. Essa prote�na executa diversas fun��es no ciclo celular e tenta impedir a prolifera��o das c�lulas que t�m erros - que d�o origem aos tumores.
Mas para aqueles que carregam essa muta��o nesse gene, h� uma produ��o inadequada ou uma falta de produ��o da p53.
"Com isso, o risco para o desenvolvimento do c�ncer � muito maior. O risco (entre quem possui essa altera��o) vai chegar a quase 20% at� os 10 anos de idade e, no adulto ao longo da vida, vai chegar a quase 90%", explica a m�dica geneticista Maria Isabel Achatz, que pesquisa o tema h� mais de duas d�cadas e j� publicou estudos sobre ele em revistas cient�ficas internacionais como Frontiers in Oncology e Lancet Regional Health Americas.
Essa altera��o no gene TP53 � chamada de s�ndrome de Li-Fraumeni, ou LFS. Os estudos apontam que ela tem 50% de chance de ser passada de pai ou m�e para filho.
Segundo a especialista, o risco entre essas pessoas � aumentado para quase todos os tipos de c�ncer - alguns dos mais frequentes para os portadores da s�ndrome s�o os sarcomas e o c�ncer de mama.
Um portador dessa muta��o gen�tica pode ter somente um tumor, diversos tumores independentes ou mesmo nunca desenvolver a doen�a. Mas, em geral, � comum que tenham um hist�rico de diversos familiares que morreram de c�ncer.
Os casos no Brasil
Achatz e outros especialistas t�m acompanhado de perto quadros de Li-Fraumeni no Brasil, j� que as regi�es Sul e Sudeste t�m revelado uma presen�a maior da altera��o gen�tica do que outras partes do pa�s e do mundo. Existe uma "variante brasileira" da s�ndrome, caracterizada por um tipo de muta��o espec�fica no gene TP53, a R337H.
Como mostrou a BBC News Brasil em 2018, uma hip�tese de Achatz � que parte desses casos da altera��o gen�tica no Brasil tenha sido transmitida por um tropeiro no s�culo 18.
Estudos j� estimaram que a incid�ncia de pessoas carregando uma altera��o no gene em todo o mundo varia entre 1 a cada 5 mil pessoas a 1 a cada 20 mil. No Sul e Sudeste brasileiro, a frequ�ncia da muta��o R337H � muito maior, estimada em 1 a cada 300 pessoas.

Por outro lado, pessoas com a muta��o R337H t�m um risco um pouco menor de desenvolver c�ncer ao longo da vida, de 50 a 60%, segundo um estudo publicado em agosto por Achatz e colegas. Enquanto pacientes com o tipo cl�ssico da Li-Fraumeni t�m 50% de chance de desenvolver c�ncer at� os 30 anos, naqueles com a variante R337H, o risco � menor, de 15 a 20%.
"A gente tem todos os ind�cios de que essa seja uma s�ndrome mais moderada do que a s�ndrome mundial. Por que a gente tem tanta gente no Brasil (com a s�ndrome)? Porque ela mata menos aqui", explica Achatz, doutora em oncologia pela Universidade de S�o Paulo (USP) e coordenadora da unidade de oncogen�tica do Hospital S�rio-Liban�s.
A m�dica alerta que, uma vez descoberto que uma pessoa tem a s�ndrome, outros familiares devem busca uma consulta m�dica para investigar se tamb�m t�m a condi��o - o que � feito, entre outros procedimentos, atrav�s de exames e do sequenciamento (an�lise) do gene TP53.
Apesar da s�ndrome n�o poder ser curada, o diagn�stico permite que a sa�de do paciente seja acompanhada mais de perto e traz oportunidades para que poss�veis tumores sejam detectados mais precocemente. Achatz explica que o tratamento para c�ncer em pessoas que t�m a s�ndrome n�o muda na compara��o com aquelas que n�o t�m Li-Fraumeni.
"Tamb�m � poss�vel buscar orienta��o sobre como investigar a poss�vel s�ndrome por meio da Rede Nacional de C�ncer Heredit�rio (REBRACH) ou na Associa��o da S�ndrome de Li-Fraumeni (cujo site tem uma vers�o em portugu�s)", diz a m�dica.
No caso de R�gis, os exames apontaram que ele, assim como os filhos, t�m a s�ndrome cl�ssica, que n�o � a mais comum no pa�s e � considerada mais severa que a variante encontrada no Brasil.
As mortes dos tr�s filhos em menos de cinco anos
Ap�s a descoberta da s�ndrome, R�gis e os tr�s filhos passaram a fazer acompanhamento m�dico constante. Em 2017, o economista comemorava a sua recupera��o e o bom resultado do tratamento de Pedro quando a filha ca�ula foi diagnosticada com leucemia, a mesma que Anna havia tido no passado.
Bia, como a garota era chamada, tinha 9 anos quando come�ou o tratamento contra a doen�a em S�o Paulo. Ela passou por um transplante de medula, no qual a m�e dela, Camila Barbosa, foi a doadora.
Em 2018, exames feitos meses ap�s a garota encerrar o primeiro tratamento apontaram que a doen�a havia voltado.
"A gente achava que ela iria superar e ficar curada, como a irm� ficou quando mais nova. Mas a doen�a voltou muito r�pido, ela n�o tinha mais for�a para outro transplante naquele momento e morreu em junho de 2018", conta R�gis.
Al�m da perda da ca�ula, o economista tamb�m acompanhava a luta do filho contra o c�ncer. Ao longo dos �ltimos anos de vida, ap�s o primeiro tratamento, Pedro teve met�stase (quando a doen�a se espalha para outras partes do corpo) no pulm�o, na coluna tor�cica e na coluna lombar.

"Foram v�rios anos de quimioterapia. Ele foi considerado curado nessas quatro vezes. Entre um tratamento e outro, tinha uma vida normal, porque todos eram bem-sucedidos", diz R�gis. "Ele, assim como as irm�s, sempre foi muito positivo e tinha expectativas de que se curaria", conta.
Pedro sonhava em se formar em engenharia el�trica. Ele chegou a cursar cerca de dois meses, mas logo parou em raz�o do tratamento de sa�de.
Em 2019, Pedro descobriu um c�ncer no c�rebro, "Dessa vez, infelizmente, ele n�o conseguiu se recuperar", conta o pai. O jovem morreu em novembro de 2020, aos 22 anos.
"Ele era um rapaz com uma alma bastante evolu�da. Todos eles eram muito evolu�dos, totalmente tranquilos e gostavam de viver de forma alegre. N�o havia tristeza ou trauma por conta do tratamento", diz R�gis.
A �ltima perda do economista ocorreu h� menos de duas semanas, quando Anna Carolina morreu ap�s um duro tratamento contra um c�ncer no c�rebro. A doen�a foi descoberta no ano passado, em um dos per�odos mais felizes da vida dela: a conclus�o do curso de Medicina.
"Ela queria ser m�dica desde crian�a, por causa do tempo em que ficou no hospital tratando a leucemia e tamb�m por causa do padrasto (j� falecido), que tamb�m era m�dico", comenta R�gis.
Segundo ele, a filha n�o teve nenhum outro diagn�stico entre 2012 e 2021 — intervalo entre o fim do tratamento contra a leucemia e o diagn�stico no c�rebro.
"Foi bastante dram�tico quando ela descobriu o c�ncer no c�rebro, porque ela estava formada, cheia de sonhos e expectativas", diz o pai.
"Ela estava noiva, queria se casar em 2022 e se especializar em dermatologia", detalha R�gis.
Ele conta que a filha acreditava na cura da doen�a, mas passou a aceitar que n�o tinha mais jeito quando a situa��o agravou.
"A partir da�, ela passou a dizer que j� tinha cumprido a sua miss�o, ela passou a encarar assim, dizia que tinha se realizado como pessoa e que conquistou o seu objetivo de ser m�dica", conta.
'Nunca me culparam'

Para R�gis, as perdas dos filhos podem ser definidas como situa��es traum�ticas e dolorosas.
"� a invers�o da ordem natural da vida."
O economista afirma que nunca se sentiu culpado por ter a s�ndrome ou por ter passado para os filhos. "Os meus filhos diziam que eu fui t�o v�tima quanto eles", diz.
Ap�s enfrentar os diversos problemas de sa�de na fam�lia, ele diz que mudou completamente a forma como enxerga a vida. "Hoje a minha vis�o � de que a gente tem que viver intensamente, com a m�xima alegria. O meu filho dizia uma frase muito coerente: ningu�m consegue medir a dor do outro. N�o acredito que exista problema maior ou menor, o fato � que a gente n�o consegue medir a dor do outro."
R�gis segue em tratamento contra a leucemia cr�nica e contra o linfoma n�o Hodgkin. "Esses tratamentos n�o t�m prazo para terminar. Por enquanto n�o estou curado, s� estabilizado por causa dos medicamentos di�rios e monitoramento mensal com exames."
O economista conta que usou todo o dinheiro que havia guardado ao longo da vida nos tratamentos de sa�de dos filhos em S�o Paulo e que agora precisa do apoio financeiro dos pais. R�gis diz que um de seus objetivos para o futuro � come�ar a dar palestras para contar sobre a sua hist�ria e tamb�m falar sobre supera��o.
H� alguns anos, ele compartilha a sua vida nas redes sociais. No Instagram, atualmente ele acumula mais de 185 mil seguidores em seu perfil (@regisfeitosamota).
"Comecei usando as redes como forma de me comunicar com os amigos e familiares, para que acompanhassem a gente, mas isso acabou crescendo muito. Hoje recebo muitas mensagens de pessoas dizendo que foram impactadas positivamente pela nossa hist�ria", diz.
Ele tamb�m quer que a sua hist�ria possa dar mais visibilidade � s�ndrome Li-Fraumeni, para que outras pessoas conhe�am mais sobre o tema e at� fa�am acompanhamento necess�rio, caso tenham o mesmo problema ou desconfiem que possam ter.
Sobre o futuro, R�gis diz que o seu objetivo principal � viver um dia de cada vez.
"Como a minha filha dizia, quero buscar a alegria em cada dia e tentar olhar para a vida de forma que eu veja luz e felicidade."
"O meu filho Pedro dizia que a felicidade � apenas quest�o de ponto de vista", acrescenta.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63761506