
Se "uma fam�lia feliz � o para�so na Terra", conclui-se que uma fam�lia infeliz � um verdadeiro inferno.
� medida que vai chegando o fim do ano, muitos de n�s j� estamos nos preparando para poss�veis tens�es ou discuss�es. Pode ser a silenciosa reprova��o da qualidade da comida, um ressentimento latente sobre declarados favoritismos ou uma intensa discuss�o sobre valores sociais e pol�ticos.
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As reuni�es familiares muitas vezes despertam o que h� de pior em n�s. Mas somente se decidirmos ver nossas fam�lias. Para muitas pessoas, n�o h� outra escolha a n�o ser passar o Natal isoladas.
Os conflitos familiares podem ser fonte de entretenimento em s�ries de TV como Succession, mas as consequ�ncias para a vida real n�o s�o de brincadeira.
"Uma consequ�ncia muito comum do distanciamento familiar � sentir-se isolado", com sensa��es de vergonha e julgamento, afirma Lucy Blake, psic�loga do desenvolvimento da Universidade do Oeste da Inglaterra e autora do livro No Family is Perfect: A Guide to Embracing the Messy Reality ("Nenhuma fam�lia � perfeita: guia para abra�ar a dif�cil realidade", em tradu��o livre).N�o existe solu��o f�cil para fraturas nos relacionamentos, mas a melhor compreens�o da nossa din�mica familiar pode ajudar a nos preparar para os inevit�veis focos de conflito e revelar formas de lidar com as tens�es.
As pessoas muitas vezes relutam em falar sobre reuni�es infelizes e distanciamento familiar. Por isso, alguns de n�s que temos essa experi�ncia podemos ser levados a pensar que se trata de algo incomum. Podemos at� imaginar que haja algo de errado conosco por termos essas m�s rela��es.
As redes sociais podem contribuir com essa sensa��o de isolamento, segundo Blake.
"O que vemos muitas vezes � a 'atua��o' de uma fam�lia, que pode fazer voc� se sentir cada vez mais isolado."
Mas poucas pessoas postam uma fotografia de uma discuss�o - voc� provavelmente ver� as caretas nos rostos antes da refei��o e n�o as l�grimas depois do conflito.

Mas dados de pesquisas an�nimas sugerem que relacionamentos familiares turbulentos s�o incrivelmente comuns.
Blake indica um estudo norte-americano que perguntou a 633 adultos de meia idade sobre seus relacionamentos com pais e filhos. Em quase um ter�o dos relacionamentos estudados, havia pouco contato, embora a maioria das pessoas sentisse la�os emocionais, relatando bons e maus sentimentos com rela��o a eles.
Dentre as pessoas com contatos mais regulares, muitos consideraram seus relacionamentos "conflituosos" ou "ambivalentes". Somente 28% dos la�os entre pais e filhos eram participativos e harmoniosos.
Outro documento, publicado no in�cio de 2021, examinou dados de um enorme estudo longitudinal na Alemanha tentando identificar a incid�ncia do distanciamento familiar. Os pesquisadores consideraram pais e filhos como distanciados se eles n�o mantivessem contato ou tivessem contato menos de uma vez por m�s, combinado com baixa proximidade emocional.
Segundo esses crit�rios, cerca de 20% das pessoas sofriam distanciamento dos seus pais e 9% sofriam distanciamento das suas m�es.
Nem todos os conflitos causam rompimentos t�o profundos, mas at� pequenas brigas familiares podem causar s�rias feridas - e algumas causas comuns costumam estar presentes.
Hist�rico comum
Embora qualquer relacionamento tenha potencial para tens�o, as discuss�es familiares muitas vezes surgem de interpreta��es conflituosas do passado, que at� o mais leve coment�rio espont�neo pode fazer relembrar e reativar as emo��es negativas.
E, ao contr�rio das amizades fora do cl�, os riscos emocionais s�o extraordinariamente altos.
"Nas fam�lias, existe um sentimento quase primordial de que minha lealdade mais importante est� sendo contestada - que meu amor est� sendo contestado", afirma Terri Apter, psic�loga residente no Reino Unido e autora de diversos livros sobre a tens�o nas rela��es familiares, incluindo Difficult Mothers e The Sister Knot ("M�es dif�ceis" e "O n� das irm�s", em tradu��o livre).
"Existe sempre a amea�a de redu��o do status na fam�lia e perda de conex�o", pontua.
Os gatilhos que acionam essas frustra��es e as formas de sua express�o naturalmente depender�o da posi��o de cada um na �rvore familiar.
Um pai pode ainda acreditar que tem autoridade para dar conselhos a um filho adulto - seja sobre sua apar�ncia, decis�es de carreira ou relacionamentos amorosos. Mas seus coment�rios bem intencionados podem fazer seu filho se lembrar de constantes cr�ticas injustas na adolesc�ncia.
J� entre irm�os, pode haver rivalidade em termos de quem recebe mais aten��o dos pais ou quem se sente mais dominante.
Um coment�rio �spero de um irm�o mais velho pode dar a impress�o de que ele ainda acha que sabe tudo ou o mau humor da irm� menor pode ser um sinal de que ela est� "fazendo teatro" para ser o centro das aten��es.

Se voc� estivesse experimentando esses casos como eventos isolados, poderia observ�-los de forma muito diferente.
O pr�prio conselho do seu irm�o poderia soar um pouco irritante, mas voc� conseguiria ver que ele foi bem intencionado. E talvez voc� pudesse acreditar que a birra da sua irm� � um caso isolado, motivado por um dia ruim.
Mas, com seu hist�rico familiar, a mais leve lembran�a de um ressentimento anterior pode fazer com que voc� se sinta preso em um eterno Dia da Marmota (express�o americana em que os acontecimentos de um dia se repetem � exaust�o nos dias seguintes), em que as faltas do passado seguem se repetindo em um ciclo sem fim.
"N�o � preciso muito para despertar no presente padr�es que pareciam desconfort�veis no passado", afirma Apter.
"E o fato de que voc� n�o aprecia especificamente suas pr�prias rea��es a esse comportamento pode causar tens�o e desconforto."
Como enfrentar as culturas familiares
Interagir com a fam�lia do seu parceiro traz um conjunto pr�prio de desafios, segundo Apter - pois as regras de comportamento de uma fam�lia podem ser muito diferentes da outra.
Algumas a��es - como quem se voluntaria para lavar os pratos ou como voc� trata os diversos parentes - podem ser menosprezadas, e o que � uma brincadeira amig�vel em uma resid�ncia pode soar como um insulto em outra.
Em alguns aspectos, entrar em outra fam�lia � como aprender a viver em um pa�s estrangeiro. Levar� tempo para traduzir seus comportamentos e formas de express�o em um idioma que voc� consiga entender.
Como resultado, gestos simples podem ser perdidos na "tradu��o", gerando conflitos que podem multiplicar-se ao longo do tempo.
Se os conflitos inevit�veis levarem voc� ou seus parentes a se ofender e seu parceiro n�o ficar do seu lado, o sofrimento s� aumenta.
Pode ocorrer que, ap�s viver o roteiro da fam�lia por tanto tempo, o seu parceiro simplesmente n�o consiga entender o seu ponto de vista, ou - devido aos pap�is aceitos na fam�lia - ele se sinta incapaz de intervir, mas isso n�o torna o problema mais f�cil de suportar.
Voc� pode se sentir totalmente abandonado nesse territ�rio desconhecido.
"Trai��o muitas vezes n�o � uma palavra muito �spera [para descrever] essas circunst�ncias", destaca Apter.
Ela ressalta que muitos desentendimentos muitas vezes n�o s�o expressos verbalmente.
"�s vezes, voc� se sente como se n�o tivesse voz. E isso gera uma sensa��o de grande desconforto e descontentamento - que voc� n�o pode ser voc� mesmo, ou agir espontaneamente."

Grandes expectativas?
Pode ser necess�rio um milagre para solucionar todas as tens�es familiares no Natal, mas Apter sugere algumas medidas para amenizar as tens�es.
Uma mudan�a positiva poder� ser evitar �lcool.
"�s vezes, as pessoas bebem muito, esperando que isso ajudar� a tolerar as tens�es. Mas, muitas vezes, a bebida as torna menos capazes de moderar e contextualizar sua irrita��o."
Voc� poder� tamb�m desviar suas expectativas sobre o evento. Em muitos casos, o nosso pr�prio medo de tens�es e o desejo pelo dia "perfeito" podem aumentar nossos n�veis de estresse, o que aumenta a possibilidade de discuss�es.
"Voc� tem o que os psic�logos chamariam de alta excita��o, que deixa voc� hipervigilante quanto a certos riscos", explica Apter. "Por isso, a press�o para que seja um evento 'bom' pode contribuir para que o evento seja muito ruim."
Portanto, pode ser mais saud�vel aceitar que alguma discord�ncia � inevit�vel, mas que ela n�o precisa "arruinar" o evento.
"Se voc� puder chegar ao ponto de conseguir resolver uma discuss�o facilmente, isso ajudar� muito."
Como parte desse comportamento de maior aceita��o, voc� poder� ser mais compreensivo com voc� mesmo quando se sentir irritado ou preocupado e dar a voc� o espa�o necess�rio para o autocuidado.
"Voc� poder� perceber que precisa de um tempo sozinho, talvez em outra �rea da casa ou fora dela, onde possa respirar e recuperar sua pr�pria identidade", aconselha Apter.
Por fim, lembre-se de que n�o existe fam�lia perfeita e n�o haver� perfei��o no Natal - nem no Diwali, Hanuc�, Ano Novo Chin�s ou qualquer outra reuni�o comemorativa. Mas reconhecer as nossas falhas e as dos demais e o potencial de disc�rdia pode, ironicamente, ajudar-nos a ter uma celebra��o mais relaxada.
Leia a �ntegra desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2021 e republicado ap�s atualiza��o.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-59712592