Virtudes s�o disposi��es est�veis e firmes de fazer o bem. Elas envol- vem intelig�ncia e vontade, e podem ser naturais (natas) ou adquiridas (fruto de bons h�bitos). “A gratid�o, enquanto virtude, � uma mem�ria agradecida, o reconhecimento de um bem ou benef�cio recebido, um rendimento de gra�as. � mais que um sentimento, � uma atitude diante da vida, que revela nobreza, humildade, sentimento de perten�a, capacidade de olhar al�m de si mesmo e atribuir a um outro bondade. A gratid�o cria v�nculo verdadeiro, estabelece uma rela��o emp�tica e gera felicidade. Numa sociedade centrada no “eu” e na “apar�ncia”, como a nossa, materia- lista, utilitarista, injusta e preconceituosa, �, com certeza, uma das virtudes mais dif�ceis de se cultivar”, destaca padre Andr� Erick Alves Ferreira, vice-reitor do Semin�rio Arqui diocesano Cora��o Eucar�stico de Jesus (Sacej) e coordenador do curso de teologia da Pontif�cia Universidade Cat�lica de Minas Gerais (PUC Minas).
Se a gratid�o � nobre e enobrece, a ingratid�o � bruta e embrutece. Para o padre Andr� Erick, � preciso uma boa dose de maturidade afetiva e convic��o, para as pessoas insistirem na pr�tica do bem, mesmo diante de incompreens�o, falta de reconhecimento ou ingratid�o. “Fazer o bem � um ato de amor, e amor nem sempre � reciprocidade, mas � sempre gratuidade. Fazer o bem � bom e n�o beneficia apenas quem o recebe, beneficia tamb�m quem o faz, tornando bom ou me- lhor quem o pratica. Por isso, mesmo que a resposta ao bem que fazemos seja a ingratid�o, vale a pena faz�-lo porque edifica”, explica.
Fazer o bem � um ato de amor, e amor nem sempre � reciprocidade, mas � sempre gratuidade
Padre Andr� Erick, vice-reitor do Sacej
Padre Andr� Erick
Ramon Lisboa/EM/D.A Press
“Em um mundo individualista e competitivo, � um grande diferencial. S�o Francisco ensina ‘que h� mais alegria em dar, que em receber’. Ent�o, se fizermos o bem gratuitamente, isto �, sem esperar recompensa, j� nos sentiremos agraciados. Quem faz o bem esperando algo em troca, n�o d�, empresta, e �s vezes espera receber com juros. Por isso, n�o sente a alegria � qual se refere o santo de Assis. Creio que quando sentimos gratid�o a Deus, � vida, as pessoas, quando reconhecemos o quanto somos agraciados, ent�o conseguimos ser altru�stas. A� n�o estamos tentando angariar algo, mas partilhar um pouco do que recebemos gratuitamente.”
O padre Andr� Erick compartilha algo que leu ou ouviu certa vez, registrou na mem�ria e, desde ent�o, traz com gratid�o. “‘Dentro de cada um de n�s tem dois lobos, um bom e outro ruim, prevalece aquele que alimentamos.’ Fazer o bem, alimenta o lobo bom e vai nos tornando bons. Ser grato por um novo dia, uma nova chance, por um pr�mio, por um gesto de delicadeza recebido e, �s vezes, at� por algo desafiador que nos acontece, faz-nos pessoas que cultivam a gratid�o, com boa energia, capazes de gerar vida ao redor. E � interessante como a gratid�o transforma a vida, o olhar e, consequentemente, nosso ser e estar nesse mundo, que � desafiador, complicado, mas tamb�m cheio de oportunidades e possibilidades. Quem vive a virtude da gratid�o, naturalmente vai se tornando mais generoso, mais forte, mais altru�sta, emp�tico, integrado, alegre, mais feliz.”
Em um mundo t�o duro, t�o desigual, abalado desde 2020 com a instala��o da pandemia da COVID-19, e no Brasil, particularmente, t�o dividido politicamente, com enfrentamentos, intoler�ncia, ele ensina como exercer a gratid�o. “Verdade, o mundo se apresenta duro, desigual, nos sentimos todos inseguros diante da pandemia e dos seus efeitos, a pol�tica tem gerado, em n�o poucos, animosidade e viol�ncia, o tecido social est� esgar�ado e a economia parece cada vez mais usur�ria e excludente. H� guerras fratricidas em curso no exterior e, aqui, no Brasil, vemos fam�lias e comunidades divididas, ideologias variadas fomentando rela��es t�xicas, preconceito, intoler�ncia e des- confian�a”, diz.
“Vemos mazelas que deveriam h� muito estar superadas, tais como a fome e a mis�ria, rondarem nossas casas, e doen�as como sarampo e p�lio voltarem a amea�ar nossas crian�as. Por mais desafiados que nos sintamos hoje, podemos e devemos exercer a gratid�o.”
Gratid�o amplia horizontes
O padre acrescenta que a gratid�o nos salvar� de nos fecharmos em n�s mesmos, no nosso grupo, na nossa vis�o de mundo, na nossa dor, a ir al�m. “A gratid�o ampliar� horizontes e nos levar� a manter viva a esperan�a, fazer o bem e viver uma vida que vale a pena. Nesse sentido, o papa Francisco, com sua enc�clica ‘Fratelli tutti’ (2019), que trata da fraternidade e da amizade social, nos d� uma importante contribui��o, pois aponta o caminho do di�logo, da empatia, da responsabilidade social como rem�dio para as sombras que nos encobrem e impedem de colaborar e agir em conjunto”, destaca padre Andr� Erick.
De acordo com padre Andr� Erick, a gratid�o permite ver os desafios como possibilidades, abre espa�o para a esperan�a. “E, talvez, agora mais do que nunca, precisamos de esperan�a e de transformar esse substantivo em um verbo – ‘esperan�ar’ – visando �s a��es e atitudes concretas. Creio que a gratid�o nos ajuda nisso, pois educa o olhar, nos faz reparar no que est� acontecendo de bom e de belo ao redor e foment�-lo, a perceber sinais de esperan�a e se tornar tamb�m um sinal dela.”
Para ele, no auge da pandemia, as pessoas pensaram na vida e no que realmente importa. “Houve gestos de empatia, partilha e solidariedade. Mas bastou retomarmos a rotina estressante e ritmo fren�tico que esquecemos do que hav�amos refletido e redescoberto, nos fechamos em n�s mesmos de novo.”
MEM�RIAS
Mas como resgatar a gratid�o? “Eu diria que recordando todas as coisas boas que nos aconteceram e ajudar outras pessoas a recordar tamb�m. Celebrar essas mem�rias pessoal e comunitariamente, n�o deixar que se apaguem, pois t�m um potencial enorme de bem-estar. De certo modo, � isso que fazemos na eucaristia, celebramos a mem�ria agradecida do evento salvador, a paix�o-morte-ressurrei��o de Jesus, por amor a n�s. Ao recordar a a��o de Deus na missa, percebemos que ela n�o se restringe ao passado, que ela continua acontecendo no presente e que Ele continuar� nos salvando, transformando, sanando, por seu amor.”
Padre Andr� Erick enfatiza que a gratid�o aponta para al�m de n�s mesmos, para a transcend�ncia e para o transcendente, nos ajuda a perceber que n�o estamos s�s, que contamos com uma for�a que vem do alto e “conspira a nosso favor”. “Desse modo, a gratid�o nos ajuda a trilhar um caminho diferente, com mais cor, com brilho, com mais capacidade de sonhar e realizar. Nessa perspectiva, sugiro que cada um olhe para 2022 e pense honestamente nos muitos motivos que tem para ser grato – a vida, a fam�lia, os amigos, o amor, a sa�de (ainda que prec�ria), o estudo, o trabalho, as pequenas e grandes conquistas, os fracassos e os aprendizados, os talentos recebidos, e colocados a servi�o, a resili�ncia, as oportunidades que conseguiu aproveitar, a democracia celebrada nas elei��es, a presen�a amorosa de Deus no seu cotidiano – e veja 2023 como um novo ano com todas as possibilidades que naturalmente traz”, comenta.
“A gratid�o � filha da humildade e caminha junto com a esperan�a, elas se alimentam. Gratid�o � ver al�m do �bvio, ela nos enche de esperan�a-certeza para continuar, n�o obstante os desafios. O ser humano � um ser em rela��o. Se viv�ssemos sozinhos, n�o saber�amos quem somos. O outro � necess�rio para que nos percebamos distintos, indiv�duos. Desejo a todos um ano novo de paz, de alegria, de muitas realiza��es; que possamos aprender com as diferen�as e reconhecer a import�ncia do outro, dos outros e do grande Outro (Deus) nas nossas vidas, com gratid�o.”
Marcelo Galuppo
Arquivo pessoal
Tr�s perguntas para...
Marcelo Galuppo, professor de filosofia do direito na PUC Minas e UFMG e coautor, com Davi Lago, do livro “#Umdiasemreclamar”, da Editora Citadel
1 - O que a filosofia explica sobre gratid�o e esperan�a?
H� uma tend�ncia no ser humano para a ingratid�o, que � um sinal da inadequa��o do mundo aos nossos desejos. Existe a hist�ria de uma menina que ganhou uma ma�� de uma senhora e n�o agradeceu, e a m�e da menina, sentindo vergonha, perguntou para a filha, com a cara fechada: “O que a gente diz quando ganha uma ma��?”. A menina estendeu o bra�o com a ma�� para a senhora e lhe disse: “Descasca!”. Pode parecer c�mico, mas � tr�gico. Isso n�o quer dizer que n�o existam pessoas gratas, mas essas pessoas tiveram que cultivar uma virtude, que � a virtude da gratid�o. Arist�teles dizia que as virtudes n�o s�o nem naturais (porque sen�o todo mundo seria virtuoso), nem antinaturais (porque sen�o ningu�m seria virtuoso), mas que elas podem ser desenvolvidas pela pr�tica constante. Esse � o caso da gratid�o e da esperan�a. Por causa de uma certa seculariza��o da filosofia ocidental ao longo do tempo, os fil�sofos contempor�neos tendem a n�o pensar muito nas chamadas virtudes teologais (que s�o a f�, a esperan�a e o amor), mas elas s�o virtudes como quaisquer outras, e mesmo um ateu pode desenvolv�-las. Immanuel Kant, por exemplo, dizia haver tr�s perguntas fundamentais para o ser humano: o que posso saber, como devo agir e o que me � l�cito esperar. Assim como o conhecimento e o dever, a esperan�a � importante para orientar nossa vida. Por exemplo: quando aplicamos dinheiro em algum investimento, quando escolhemos um candidato em uma elei��o, quando decidimos nos casar com algu�m ou quando prestamos um concurso, h� sempre algum tipo de esperan�a que orienta nossas escolhas.
2 - Reclamar � ser ingrato?
O primeiro sinal da ingratid�o � exatamente a reclama��o. Ela surge quando as coisas n�o s�o como gostar�amos que fossem. Queremos estar no controle da realidade, mas muitos fil�sofos, como os estoicos e os c�ticos, pensam que isso � imposs�vel: nossa vida � determinada por muitos fatores, e apenas uma parte deles depende de n�s. Conf�cio, o fil�sofo chin�s, achava que, exatamente por isso, a �nica coisa que nos interessa (porque � �nica que podemos mudar) � nosso car�ter (porque n�o temos controle total sobre nossa riqueza, sa�de etc.). Isso tem a ver com a gratid�o: muitas vezes, n�o podemos mudar nossa sorte, mas podemos mudar como reagimos diante dela. Podemos ser gratos com o que temos mesmo no meio da adversidade.
3 - A gratid�o tem de estar presente nas rela��es humanas? � uma ferramenta evolutiva?
N�s podemos ser ingratos �s vezes, mas dever�amos sempre fazer um exame de consci�ncia ao final do dia e avaliar nosso comportamento. Isso � importante porque � um processo para serenar a mente. Quando percebo minha pr�pria ingratid�o, come�o a fazer as pazes com o mundo e comigo mesmo. S� assim podemos dormir tranquilos.
4 - Gratid�o proporciona felicidade? Mas felicidade n�o � uma utopia?
A felicidade n�o � uma utopia, desde que a pensemos sob duas condi��es. Primeiro, que ela n�o � sin�nimo de alegria. Alegria � um sentimento, uma emo��o, uma paix�o. A felicidade � um estado da vida humana. Significa que nossa vida � de tal modo que ela � uma vida que consideramos que valha a pena ser vivida. A segunda condi��o � que devemos procurar a felicidade n�o nas coisas extraordin�rias (como a riqueza ou a fama), mas nas coisas ordin�rias. A fil�sofa Agnes Heller diz que h� tr�s coisas que nos tornam felizes. A primeira � um m�nimo de seguran�a e de certezas. Algu�m que n�o tenha condi��es m�nimas de exist�ncia, algu�m que n�o saiba se ter� alimento amanh�, n�o pode ser feliz. A segunda � o desenvolvimento dos talentos pessoais. Algu�m que sempre quis ser m�dico ou aprender a tocar um instrumento musical, mas que n�o dedicou tempo para isso tamb�m nunca ser� feliz. E a terceira � envolver-se em rela��es pessoais profundas e significativas. E, sem gratid�o, uma pessoa nunca ter� amigos. Ningu�m gosta de ingratos.
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