Alerta: esta reportagem cont�m imagens que podem ser consideradas perturbadoras por algumas pessoas


Mão de criança yanomami com tungíase. Foto tirada em janeiro de 2022 na comunidade Yaritobi, parte do território yanomami

M�o de crian�a yanomami com tung�ase. Foto tirada em janeiro de 2022 na comunidade Yaritobi, parte do territ�rio yanomami

Arquivo pessoal/ Carla C F Rodrigues

Al�m de casos graves de desnutri��o, mal�ria e quadros de verminoses, os ind�genas yanomami, que passam hoje por uma crise humanit�ria de grandes propor��es, sofrem com a dissemina��o da tung�ase, infec��o popularmente conhecida como "bicho de p�", que se torna um problema grave de sa�de quando n�o h� tratamento adequado.


As infec��es s�o mais comuns em zonas pobres ou remotas, como as aldeias ind�genas, comunidades rurais e favelas das metr�poles.

Entre as raz�es para maior dissemina��o nesses locais, de acordo com m�dicos entrevistados pela BBC News Brasil, est�, principalmente, a maior exposi��o ao meio ambiente sem a prote��o de roupas ou sapatos.

 

"Na terra ind�gena yanomami, especificamente, h� tamb�m um desequil�brio ambiental causado pelo garimpo, que torna as infesta��es mais prop�cias, e o fato de sistema imunol�gico dos ind�genas estar prejudicado pela desnutri��o e outros quadros", afirma Carla Rodrigues, m�dica do grupo de sa�de ind�gena da SBFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Fam�lia e Comunidade) que atuou em comunidades yanomami entre maio de 2021 e fevereiro de 2022.


pé de criança yanomami com feridas causadas pela tungíase

P� de crian�a yanomami com feridas causadas pela tung�ase

Associa��o M�dicos da Floresta

Dados divulgados pela Opas (Organiza��o Pan-Americana da Sa�de) estimam que, apenas na Regi�o das Am�ricas, mais de 20 milh�es de pessoas estejam em risco de serem infectadas - particularmente, crian�as, pessoas com defici�ncia e idosos.

 

"Nos ind�genas yanomami, a tung�ase tem causado m�ltiplas les�es dolorosas, al�m de 'abrir portas' para outras infec��es e, em casos mais graves, faz at� com que alguns percam peda�os dos membros", explica Bruna Abilio, m�dica pediatra volunt�ria da Associa��o M�dicos da Floresta e parte do corpo cl�nico do Hospital Israelita Albert Einstein.

 

"Isso causa, muitas vezes, problemas para caminhar e dificulta que os ind�genas mantenham seu potencial produtivo de ca�a e cuidados da ro�a."

O que � a tung�ase e como � transmitida?

A doen�a � causada por f�meas do parasita Tunga penetrans, que gosta de ambientes secos e solos arenosos, e se alimenta do sangue de humanos e de animais.

 

Ele entra na pele por qualquer parte do corpo que est� em contato com o ch�o - principalmente p�s, m�os e n�degas - causando, como primeiros sinais, irrita��o e coceira.

 

Uma vez dentro do corpo, o parasita, se n�o for retirado a tempo, coloca seus ovos na pele, e a infec��o se alastra.

"Quando a f�mea est� gr�vida, ela usa sua cabe�a pontiaguda para penetrar na pele do hospedeiro e ali maturar seus ovos at� que eles estejam prontos para eclodir. A partir da�, s�o expelidos no ambiente", aponta Carla S�ssi, m�dica veterin�ria do Grad (Grupo de Resgate de Animais em Desastre).

 

S�ssi explica que, durante sete a 10 dias, o parasita pode deixar at� 200 ovos no ambiente, e ap�s tr�s semanas, essas larvas j� est�o maduras o suficiente para acasalar, iniciando o ciclo de infesta��o novamente.

Como a tung�ase se manifesta

As les�es causadas pela tung�ase podem ser �nicas ou bastante numerosas, dependendo da infesta��o do solo.

A princ�pio, a infec��o se manifesta como uma pequena pequena marca marrom escura com um c�rculo fino e claro ao seu redor.

Se as les�es s�o m�ltiplas e a inflama��o local se torna intensa, o acometido pode ter infec��o bacteriana secund�ria e ter sua mobilidade reduzida.

"O risco de infec��es bacterianas secund�rias � especialmente alta se a pessoa tenta tirar a les�o sem conhecimento t�cnico de como remov�-la completamente, e sem material est�ril - h�, inclusive, risco de t�tano", Igor Queiroz, infectologista do Rio Grande do Norte consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Animais tamb�m s�o afetados

Assim como os seres humanos, os animais tamb�m podem ser parasitados e sofrem com sintomas similares.

"Neles, o bicho de p� tamb�m causa muita coceira e ard�ncia, e assim como em humanos, pode virar uma infec��o realmente grave, com risco de perda do coxim, aquela parte macia na pata. Em pessoas, observamos [nas comunidades] casos grav�ssimos que provocam a perda de membro", aponta Carla S�ssi, m�dica veterin�ria do Grad.


Agente do Grad Brasil mostra pata de cachorro infectada pela tungíase

Agente do Grad Brasil mostra pata de cachorro infectada pela tung�ase

Grad Brasil

"A ocorr�ncia da tung�ase no territ�rio yanomami � um bom exemplo do que chamamos de tr�ade na sa�de �nica, que � a rela��o da sa�de humana, animal e ambiental. N�o adianta tratar cada um desses separadamente - apenas tratando os tr�s ao mesmo tempo por um per�odo de m�dio a longo prazo � que � poss�vel conseguir resultados no controle dessa zoonose", complementa S�ssi.

Em um dos posts recentes no Instagram do Grad, a veterin�ria faz um apelo por transporte para Boa Vista, capital de Roraima, para um jovem desnutrido de 20 anos que sofre com tung�ase h� uma d�cada e est� com os p�s em estado grave, sem possibilidade de se movimentar bem.

No v�deo, a veterin�ria conta que o rapaz sofre de depress�o e que seus pais imploram por ajuda.


Cachorro com tungíase sendo examinado em aldeia indígena

Cachorro com tung�ase sendo examinado em aldeia ind�gena

Sonia Mey-Schmidt/OPAS/OMS

Casos graves requerem tratamentos mais complexos

Casos como o citado acima n�o s�o considerados comuns porque s�o necess�rios muitos anos de falta de assist�ncia m�dica adequada para que cheguem a um estado t�o grave.

Nas comunidades yanomami, no entanto, profissionais com quem a reportagem conversou afirmam que s�o muitos os quadros preocupantes.

"Amputa��es por tung�ase s�o consideradas muito raras, e o fato de isso estar acontecendo � um sinal do qu�o longe o problema foi. Quadros t�o graves certamente contam com infec��es secund�rias", aponta Paulo Machado, coordenador do Departamento de doen�as infecto parasit�rias da SBD.

Machado aponta que, constatada a presen�a de outras infec��es, o uso de antibi�tico, medicamento que n�o esteve amplamente dispon�vel nas comunidades yanomami nos �ltimos anos, � necess�rio.

"�s vezes � usada tamb�m a ivermectina [droga usada no tratamento de v�rios tipos de infesta��es por parasitas], mas nem sempre � suficiente", complementa Igor Queiroz.

Por serem infestados continuamente, podendo chegar a ter centenas de tungas no corpo, os moradores dessas �reas muitas n�o se beneficiam do m�todo tradicional de retirada do parasita por uma pequena incis�o cir�rgica.


Pé de yanomami com feridas causadas pela tungíase e prováveis infecções secundárias

P� de yanomami com feridas causadas pela tung�ase e prov�veis infec��es secund�rias

Grad Brasil

"No contexto urbano, o m�dico remove e pronto, o problema acaba. Como o territ�rio yanomami � muito grande e nas �reas de garimpo n�o t�m postos de sa�de fixos, os ind�genas ficavam desassistidos", afirma Carla Rodrigues, m�dica do grupo de sa�de ind�gena da SBFC.

"Ali, as crian�as, por estarem t�o debilitadas e desnutridas, t�m les�es que crescem tanto que formam grandes tumores. H�, inclusive, casos de les�es enormes na regi�o perianal, que impedem essas pessoas de sentar. � necess�ria uma cirurgia mais complexa, mas isso muitas vezes n�o � feito. � o bicho de p� que causa a morte."

A m�dica conta que, durante seu per�odo atendendo as comunidades, buscou mitigar o problema com uma solu��o chamada Nyda, � base de dimeticona.

"A aplica��o deve ser feita tr�s vezes a cada 10 a 15 minutos. A pulga fica sem oxig�nio e morre. O produto funciona, mas n�o est� amplamente dispon�vel."

O medicamento n�o est� dispon�vel no Sistema �nico de Sa�de (SUS) e entra no pa�s por meio de doa��es de institui��es como a Opas.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64455894