Danos causados por enchente em Honório Bicalho, um distrito da cidade mineira de Nova Lima que foi atingida por fortes chuvas em 2022

Danos causados por enchente em Hon�rio Bicalho, um distrito da cidade de Nova Lima, em Minas Gerais, que foi atingido por fortes chuvas no ano passado

Pedro Vilela/Getty Images

"Eu fiquei espantada como psiquiatra", diz Debora Tseng Chou. "Os entrevistados citam p�nico, dificuldade para dormir e a sensa��o de que estamos atrasados para resolver um problema urgente."

S�o crian�as e adolescentes brasileiros que relataram � pesquisadora suas preocupa��es com as mudan�as clim�ticas — que se desenha como a maior crise desta e das pr�ximas d�cadas.

"A gente n�o espera deles pessimismo em rela��o ao futuro. Principalmente numa fase em que a vida � encarada com a perspectiva de que pode ser melhor", diz ela.

Chou e seu colega de pesquisa Emilio Abelama Neto ouviram 50 jovens entre 6 e 18 anos nas cidades de S�o Paulo, Itaparica (BA) e Salvador como parte de um estudo internacional liderado por Laelia Benoit, da Universidade de Yale, nos EUA, sobre emo��es relacionadas ao estado do planeta.

Parte desses sentimentos se enquadra no que vem sendo chamado de "ecoansiedade": uma palavra que, em ingl�s, j� foi incorporada pelo dicion�rio de Oxford e � definida pela Associa��o Americana de Psicologia (APA, na sigla em ingl�s) como "medo cr�nico da cat�strofe ambiental".

"A express�o 'ecoansiedade' come�a a aparecer na literatura, ainda em livros de ecopsicologia, na d�cada de 1990. Mas s� agora a gente est� vendo esse tema ganhar proje��o", diz Marco Aur�lio Biblio.

Ele � presidente da Sociedade Internacional de Ecopsicologia, um campo nascido formalmente em 1989 nos EUA e que considera o cuidado com o meio ambiente como condi��o fundamental para o equil�brio ps�quico de um indiv�duo.

� importante dizer que ecoansiedade "n�o � uma patologia, n�o � uma doen�a mental", como explica a psicoterapeuta brit�nica Caroline Hickman, uma das maiores especialistas no tema.

"A ansiedade tradicional gerada, por exemplo, pelo medo de andar de avi�o � algo mais particular de um indiv�duo. E a raiz do problema pode ser dif�cil de identificar", diz ela � BBC News Brasil.

A ang�stia ligada � crise clim�tica, por sua vez, possui uma causa bem definida e � caracterizada por um sentimento coletivo, afirma a psicoterapeuta.

"A sensa��o de impot�ncia e frustra��o surge com a a��o insuficiente dos poderes e a falta de consci�ncia em outros setores da popula��o."

Do ponto de vista do profissional, Biblio defende que o tratamento para esse tipo de transtorno n�o deve ser o mesmo da ansiedade tradicional.

"A ecoansiedade tem que ser acolhida como uma possibilidade real e para todos. Ent�o � mais inteligente numa situa��o dessas que o apoio terap�utico seja dado, junto � medica��o quando necess�rio, confirmando o valor da fantasia ps�quica do paciente, considerando como um dado real", diz ele.

"� importante tamb�m que a pessoa que est� sofrendo assuma o seu lugar dentro desse momento de grave crise. O profissional d� a confirma��o do que o paciente est� sentindo e o ajuda a encontrar uma maneira de se posicionar no mundo de maneira a aliviar o risco que a pessoa sente".


Fogo em Machadinho do Oeste (RO), dentro da Floresta Amazônica

Fogo em Machadinho do Oeste, em Rond�nia, dentro da Floresta Amaz�nica

Ricardo Moraes/Reuters

Ele lembra que "o risco de emerg�ncias ecol�gicas j� vem sendo apontado h� um bom tempo. N�o � uma novidade. Mas continuamos a viver como se nada estivesse acontecendo. Dentro da ecopsicologia, come�ou a surgir a ideia de que vivemos uma esp�cie de nega��o coletiva".

"Ou seja, na nossa organiza��o das informa��es, n�s retiramos de circula��o aquelas que geram ang�stia. E aquilo que n�o se transforma em percep��o se torna tens�o. Assim, o n�vel de ansiedade aumenta."

Uma entrevistada do estudo internacional relatou, segundo a pesquisadora Chou, que os jovens procuram evitar o tema nos bate-papos informais.

"Uma menina me disse: 'A gente n�o conversa muito sobre isso, porque a gente tem 12, 13 anos. A gente quer conversar sobre outras coisas, fazer piada. Apesar de saber que essas coisas [as mudan�as clim�ticas] s�o importantes, a gente acaba tentando n�o pensar'."

No entanto, n�s recebemos de forma cada vez mais frequente evid�ncias concretas das mudan�as clim�ticas.

No Brasil, os exemplos mais vis�veis s�o as enchentes de 2022 em Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Petr�polis (RJ) e, mais recentemente, em S�o Sebasti�o (SP) e no Maranh�o.

Eventos extremos se tornaram mais frequentes, e a grande maioria deles tem rela��o com o aumento da temperatura do planeta. O �ltimo relat�rio da ONU fala em "momento-chave" e "que esta � a d�cada da a��o, se n�s quisermos mudar esse quadro".

Hickman defende que a ang�stia tem um papel importante agora: um chamado para reconhecer os desafios e encarar a crise de frente.

"� uma resposta mentalmente saud�vel ao que est� acontecendo hoje no mundo."

Uma crise de 'ecoansiedade' uma d�cada atr�s


Chuva forte na cidade de Santos (SP), em 2020

Chuva forte causou alagamentos na cidade de Santos, em S�o Paulo, em 2020

Felipe Beltrame/NurPhoto via Getty Images

A ecoansiedade, de fato, est� relacionada ao grau de consci�ncia e n�vel de informa��o sobre a crise clim�tica. Antes dos jovens, os cientistas foram os primeiros a sofrer com essa tens�o.

O climatologista Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Cear� (UECE) e que mant�m no YouTube o canal "O que voc� faria se soubesse o que eu sei?", conta que h� quase 10 anos entrou em uma fase de depress�o profunda com elementos de ecoansiedade.

"Foi por ser pouco ouvido [como cientista] e por quest�es pessoais que se entrecruzaram. Em 2014, eu fui convidado para um simp�sio no Rio e perdi o voo por conta do que estava passando. Pelo carinho de colegas, eu fui convencido a entrar no avi�o no dia seguinte", relembra Costa.

Durante o evento, ele viveu um momento cat�rtico. Uma pessoa da plateia perguntou "como ele conseguia colocar a cabe�a no travesseiro, como conseguia seguir adiante?".

"Eu tirei da mala a caixa de rem�dios [ansiol�ticos] e disse: 'S� consigo jogando dopado'. Mas o fato de eu ter entrado fundo nisso anos atr�s me possibilitou construir minhas defesas mais cedo."

Chou observa que, entre seus 50 entrevistados, a inquieta��o tinha rela��o n�o apenas com a familiaridade desses jovens com o tema, mas tamb�m com o engajamento buscado por suas escolas e fam�lias.

Esse elementos s�o, quase sempre, reflexo do recorte socioecon�mico — crian�as e adolescentes de contextos com mais estrutura e poder aquisitivo possuem mais informa��es sobre as mudan�as clim�ticas.

Camadas sociais com menos recursos apresentam uma no��o mais microecol�gica (limpar a praia, reciclar o lixo) do que clim�tica.

Mas a psiquiatra conta que a resposta de alguns contra os gatilhos do tema foi "buscar o engajamento em algumas atividades, tanto na escola quanto por meio das suas fam�lias, para converter essa ansiedade em a��o e milit�ncia".

Um pedido de desculpa �s novas gera��es


Garoto participa de protesto em Cardiff, no País de Gales, em novembro do ano passado

Um menino participando de protesto ambiental em Cardiff, no Pa�s de Gales, em novembro do ano passado

Getty Images

O problema tamb�m est� se refletindo na rela��o entre os jovens e os pais, diz Caroline Hickman. Um conflito geracional sobre as responsabilidades pelas mudan�as clim�ticas vem ganhando corpo.

"Eu j� vi filhos que se recusam a falar com os pais porque est�o t�o magoados, com tanta raiva. Ou que falam: 'Por que voc�s me tiveram sabendo que era esse o mundo em que eu ia nascer?'. Isso vem acontecendo. E vai crescer ainda mais".

Ela diz que h� outro caminho, apontado pelos trabalhos que realiza com pais e filhos juntos: "Se eles trabalham em conjunto para encontrar solu��es nem tudo est� perdido. N�s podemos encontrar solu��es intergeracionais".

"Mas s� vamos alcan�ar isso se pedirmos desculpa para as gera��es mais jovens. Precisamos reconhecer que n�s ferramos com as coisas", afirma a psicoterapeuta, de 61 anos.

"Por isso, a psicologia � importante. Para as gera��es mais velhas encararem o luto, a culpa e a vergonha que devem sentir."

"Porque as gera��es mais novas v�o olhar para n�s e perguntar: 'O que voc�s fizeram? S� porque voc�s n�o v�o lidar com esse problema, voc�s acharam que dava para esperar e deixaram para l�. Agora a escala das mudan�as est� r�pida demais'."

Hickman defende a normaliza��o do tema, mesmo com crian�as pequenas.

"Crian�as de tr�s anos conseguem entender em algum grau os desafios das mudan�as clim�ticas, mesmo que n�o entendam exatamente o todo. Adultos podem falar que nem sempre as decis�es certas s�o tomadas, mas que n�s podemos fazer ajustes para corrigir o rumo. E as crian�as da fam�lia podem fazer parte nisso, conversando sobre as escolhas do dia a dia da fam�lia".

O climatologista Alexandre Costa, que tem tr�s filhas, afirma:

"Hoje eu vou defender o que puder desse colapso. N�s precisamos do completo oposto do conformismo, do 'tanto faz'."

Como indaga um verso premonit�rio da banda alem� Atari Teenage Riot, escrito mais de uma d�cada atr�s: "ser� necess�ria outra crise para fazer uma outra gera��o entrar em a��o?".