Comprimido branco

A dipirona est� no mercado h� um s�culo

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Uma das solu��es para aliviar febre e dor, a dipirona sempre figura na lista dos rem�dios mais vendidos no Brasil.

Mais de 215 milh�es de doses deste medicamento foram comercializadas no pa�s apenas em 2022, segundo a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa).

Em outras partes do mundo, por�m, a realidade � completamente distinta: em lugares como os Estados Unidos e uma parcela da Uni�o Europeia, esse f�rmaco est� proibido h� d�cadas.

Por tr�s do veto da dipirona nesses locais, est� uma grande controv�rsia sobre um poss�vel efeito colateral grave da medica��o: a agranulocitose, uma altera��o no sangue grave e potencialmente fatal marcada pela queda na quantidade de alguns tipos de c�lulas de defesa.

Mas o que h� de evid�ncia cient�fica por tr�s dessa alega��o? E em que casos esse rem�dio realmente faz a diferen�a?

Para entender essa hist�ria, � preciso conhecer o mecanismo de a��o desse rem�dio.

Funcionamento misterioso

A dipirona foi criada em 1920 pela farmac�utica alem� Hoechst AG. Dois anos depois, ela j� estava dispon�vel nas drogarias, inclusive no Brasil.

Ela ficou conhecida pelo nome comercial Novalgina, que hoje pertence ao laborat�rio franc�s Sanofi.

Outros rem�dios populares que trazem dipirona s�o o Dorflex (tamb�m da Sanofi) e a Neosaldina (da Hypera Pharma).

Todos eles est�o dispon�veis nas farm�cias e n�o precisam de receita m�dica para serem comprados pelos consumidores.

“Mas � importante sempre conversar com o farmac�utico para entender se aquela op��o � mesmo a melhor para o seu caso espec�fico”, pondera a farmac�utica Danyelle Marini, diretora do Conselho Regional de Farm�cia do Estado de S�o Paulo (CRF-SP).

E, apesar dos 100 anos de hist�ria, a forma como esse f�rmaco funciona para baixar a febre e aliviar a dor ainda est� cercada de mist�rios.

A farmac�utica bioqu�mica Laura Marise, doutora em Bioci�ncias e Biotecnologia, explica que a principal suspeita � que a dipirona atue contra uma mol�cula inflamat�ria conhecida como COX.

“A hip�tese � que ela iniba a COX, inclusive um dos tipos dessa mol�cula que � exclusivo do sistema nervoso central, o que aliviaria a inflama��o por tr�s da febre e da dor”, diz ela.

A proibi��o

A dipirona estava amplamente dispon�vel em boa parte do mundo at� meados dos anos 1960 e 1970, quando come�aram a surgir os primeiros estudos que criaram o alerta sobre o risco de agranulocitose.

Um trabalho publicado em 1964 calculou que essa altera��o sangu�nea grave acontecia em um indiv�duo para cada 127 que consumiam a aminopirina — uma subst�ncia cuja estrutura � bem parecida � da dipirona.

“Tendo como base essa semelhan�a qu�mica, os autores n�o fizeram distin��o entre as duas mol�culas e assumiram que os dados obtidos para a aminopirina seriam tamb�m aplic�veis � dipirona”, aponta um artigo da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade de S�o Paulo, publicado em 2021.

A partir dessa e de outras evid�ncias, a Food and Drug Administration (FDA), a ag�ncia regulat�ria dos Estados Unidos, decidiu que a dipirona deveria ser retirada do mercado americano em 1977.

Pouco depois, outros pa�ses tomaram a mesma resolu��o, como foi o caso da Austr�lia, do Jap�o, do Reino Unido e de partes da Uni�o Europeia.

“E a proibi��o dela aconteceu justamente nos pa�ses que mais fazem pesquisas de efic�cia e seguran�a sobre medicamentos”, destaca Marise.

Segundo ela, isso diminuiu o interesse em fazer testes e investiga��es sobre a dipirona — o que fez o f�rmaco se tornar praticamente desconhecido nesses lugares desde ent�o.


Células sanguíneas

A agranulocitose � o principal evento adverso grave observado em alguns estudos com a dipirona

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A partir dos anos 1980, come�aram a surgir novas evid�ncias sobre a seguran�a da medica��o — que jogaram mais controv�rsia na discuss�o.

O Estudo Boston, por exemplo, foi realizado em oito pa�ses (Israel, Alemanha, It�lia, Hungria, Espanha, Bulg�ria e Su�cia) e envolveu dados de 22,2 milh�es de pessoas.

Os resultados encontraram uma incid�ncia de 1,1 caso de agranulocitose para cada 1 milh�o de indiv�duos que usaram a dipirona — o que � considerada uma frequ�ncia bem baixa.

Em Israel, uma investiga��o realizada com 390 mil indiv�duos hospitalizados calculou um risco de 0,0007% de desenvolver essa altera��o no sangue e de 0,0002% de morrer por causa desse evento adverso.

J� na Su�cia, que voltou atr�s e liberou a dipirona brevemente nos anos 1990, foram detectados 14 epis�dios de agranulocitose possivelmente relacionados ao tratamento, com 1 caso para cada 1.439 indiv�duos que tomaram esse f�rmaco.

Essa frequ�ncia mais alta, ali�s, fez com que o pa�s n�rdico proibisse a comercializa��o do f�rmaco novamente em 1999.

Mas o que justifica essa disparidade de resultados? Embora n�o exista uma explica��o clara, Marini aponta tr�s fatores que ajudam a entender o cen�rio.

“Primeiro, h� uma muta��o gen�tica que parece facilitar o aparecimento da agranulocitose em alguns indiv�duos que usam dipirona. E sabe-se que essa muta��o � mais comum em popula��es dos Estados Unidos e de partes da Europa”, diz ela.

“Em segundo e terceiro lugares, dosagens mais altas e uso por tempo prolongado tamb�m influenciam nesse risco”, completa.

E no Brasil?

A dipirona foi alvo de uma grande pesquisa realizada na Am�rica Latina que ficou conhecida como Latin Study.

Entre janeiro de 2002 e dezembro de 2005, cientistas de Brasil, Argentina e M�xico se debru�aram sobre dados de 548 milh�es de pessoas.

Nesse universo, foram identificados 52 casos de agranulocitose — o que representa uma taxa de 0,38 caso por milh�o de habitantes/ano.

O trabalho latino ainda mostrou que esses epis�dios de altera��o sangu�nea grave s�o relativamente mais comuns em mulheres, crian�as e idosos.

Pouco antes disso, em 2001, a Anvisa realizou um evento chamado “Painel Internacional de Avalia��o de Seguran�a da Dipirona”, em que foram convidados especialistas brasileiros e estrangeiros.

“O objetivo deste painel foi a promo��o de amplo esclarecimento sobre os aspectos de seguran�a da dipirona”, contextualiza a ag�ncia, em nota enviada � BBC News Brasil.

“Conforme o relat�rio final, as conclus�es do referido painel foram que h� consenso de que a efic�cia da dipirona como analg�sico e antit�rmico � inquestion�vel e que os riscos atribu�dos � sua utiliza��o em nossa popula��o s�o baixos e similares, ou menores, que o de outros analg�sicos/antit�rmicos dispon�veis no mercado”, complementa o texto.

A Anvisa refor�a que, desde a realiza��o do painel h� 22 anos, “n�o foram identificados novos riscos ou emitidos novos alertas de seguran�a relacionados � dipirona” — e, portanto, n�o h� qualquer discuss�o sobre uma eventual proibi��o de venda dela no Brasil.

Al�m do pa�s, a dipirona tamb�m est� dispon�vel em �ndia, Alemanha, Espanha, R�ssia, Israel, Argentina e M�xico, entre outros.

A BBC News Brasil tamb�m procurou as farmac�uticas respons�veis pelas vers�es comerciais mais populares da dipirona no pa�s.

A Sanofi, que fabrica Novalgina e Dorflex, disse que “cumpre rigorosamente toda a legisla��o brasileira vigente, em especial a legisla��o sanit�ria e as regulamenta��es da Anvisa em vigor”.

“Reiteramos que a dipirona est� no mercado mundial h� mais de 100 anos e � utilizada por milh�es de pacientes em todo o mundo”, diz o laborat�rio, que tamb�m classifica como “inquestion�vel” a efic�cia da medica��o.

A Hypera Pharma, que faz a Neosaldina, informou que "a dipirona � um princ�pio ativo liberado pela Anvisa para comercializa��o no Brasil" e todos os produtos da farmac�utica que cont�m a mol�cula "contam com registro aprovado na ag�ncia, com comprova��o de seguran�a e efic�cia".

J� a Associa��o Brasileira da Ind�stria de Produtos para o Autocuidado em Sa�de (Acessa) afirmou que, “quando usada de acordo com as indica��es m�dicas e seguindo as doses recomendadas, [a dipirona] � considerada segura para a maioria das pessoas”.

“As instru��es presentes nos r�tulos dos MIPs devem ser seguidas com rigor, as doses devem ser respeitadas, evitando-se a automedica��o excessiva”, conclui a entidade.


Mulher e homem com dor

Rem�dios para tratar febre e dor menos graves s�o vendidos sem prescri��o nas farm�cias

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Efic�cia e modos de uso

Al�m das quest�es envolvendo a seguran�a, a dipirona foi objeto de uma s�rie de estudos que testaram se ela realmente funciona na pr�tica.

Segundo Marise, que tamb�m � fundadora do canal de divulga��o cient�fica Nunca Vi 1 Cientista, as evid�ncias sobre a efic�cia dela s�o um pouco mais conclusivas quando comparadas a de outros f�rmacos comumente usados contra dor e febre.

“Ela tem um efeito bem intenso, a ponto de conseguir competir com os opioides em certos casos ou at� mesmo ser usado para aliviar a dor em ambiente hospitalar”, diz ela.

“Mas � claro que n�o temos tantos estudos para a dipirona como para outras drogas mais modernas, at� pela proibi��o de uso dela nos Estados Unidos e partes da Europa”, complementa.

O Instituto Cochrane, que realiza revis�es de publica��es cient�ficas para definir o n�vel de evid�ncia sobre diversos procedimentos, calcula que uma �nica dose de dipirona � capaz de aliviar a dor moderada ou severa ap�s cirurgias em 7 a cada 10 pacientes.

O n�mero � maior do que o observado com placebo, uma subst�ncia sem efeito terap�utico, que resultou em melhoras nos sintomas para 3 em cada 10 indiv�duos.

A Cochrane tamb�m observa uma efic�cia da medica��o contra a dor de c�licas renais.

J� para a dor no geral, o efeito da dipirona foi observado em 5 a cada 10 usu�rios. O �ndice ficou ligeiramente mais baixo em rela��o a outras op��es farmac�uticas, como combina��es de ibuprofeno e paracetamol (70%).

“O uso de uma ou outra op��o que atua contra dor e febre, como dipirona, paracetamol, ibuprofeno, entre outros, depende muito de caracter�sticas individuais e costumes familiares”, observa Marise.

Mas � claro que, assim como ocorre com qualquer op��o terap�utica, � preciso ler atentamente as informa��es disponibilizadas pelo fabricante, respeitar o limite de consumo di�rio e conhecer os poss�veis efeitos colaterais.

Segundo a bula da dipirona registrada no Brasil, adultos e adolescentes acima de 15 anos podem tomar de 1 a 2 comprimidos de 500 miligramas at� quatro vezes ao dia.

Para esse p�blico, o limite de consumo di�rio � de 4 gramas (ou 4 mil miligramas)

O rem�dio n�o � indicado para crian�as com menos de 3 meses de idade ou que t�m menos de 5 quilos.

A dipirona em comprimidos n�o deve ser utilizada por menores de 15 anos — e recomenda-se sempre a supervis�o de um m�dico nesses casos. � poss�vel encontr�-la na forma de xarope, gotas e suposit�rios, al�m das vers�es injet�veis e intravenosas dispon�veis em ambiente hospitalar.

Para n�o ultrapassar os limites de seguran�a, � importante ler atentamente o r�tulo e a bula, pois algumas op��es farmac�uticas trazem dipirona na f�rmula junto de outros princ�pios ativos — e um descuido pode fazer algu�m exagerar na dose segura sem querer.

O uso da dipirona tamb�m deve ser mais cuidadoso em pacientes com problemas nos rins ou no f�gado, para evitar crises agudas nestes �rg�os vitais.

Exagerar no consumo de dipirona pode provocar enjoo, v�mito, dor abdominal, disfun��o renal e hep�tica, tontura, sonol�ncia, coma, convuls�es, queda de press�o arterial, arritmias card�acas e mudan�a na colora��o da urina.

Entre os efeitos colaterais menos graves que a agranulocitose (que � considerada muito rara na popula��o brasileira), algumas pessoas podem sofrer quadros al�rgicos ou hipotens�o (queda da press�o arterial) ap�s tomarem a dipirona.

Nesses casos, a recomenda��o � n�o usar o f�rmaco — e procurar um profissional da sa�de se o inc�modo n�o passar ou piorar.

“� importante refor�ar que a dipirona � uma droga segura mas, assim como qualquer medicamento, n�o � isenta de riscos”, lembra Marini.

“Ela � indicada para tratar quadros agudos de dor e febre, e n�o deve ser usada de forma cont�nua, por semanas, meses ou anos, como � comum vermos algumas pessoas fazerem”, conclui a farmac�utica.