Pessoa sendo vacinada
A enxurrada de desinforma��o que passou a circular na pandemia de covid-19 com mais for�a deixou sequelas, impactou servi�os de sa�de e se comporta como uma epidemia, avaliaram pesquisadores na Jornada Nacional de Imuniza��es, realizada em Florian�polis, pela Sociedade Brasileira de Imuniza��es (SBIm). A diretora da SBIm e integrante do grupo consultivo da Vaccine Safety Net da Organiza��o Mundial da Sa�de, Isabela Ballalai, compara a desinforma��o � uma doen�a de f�cil transmiss�o.
"A desinforma��o pode causar doen�as, pode matar, deve ser considerada uma doen�a e merece preven��o, vigil�ncia, a��es planejadas. A gente precisa acompanhar, diagnosticar. Contra um surto de sarampo, a gente n�o tem que planejar? � a mesma coisa".
Organizar essa resposta se torna ainda mais importante porque movimentos antivacinistas se tornaram mais estruturados na Am�rica Latina com a pandemia de covid-19, recebendo inclusive recursos transnacionais. No caso do Brasil, esses grupos chegaram a contar tamb�m com apoio do governo de Jair Bolsonaro, que deu voz a antivacinistas em uma audi�ncia p�blica promovida pelo Minist�rio da Sa�de sobre a vacina��o pedi�trica contra a covid-19.
Isabela Ballalai chama a aten��o para o planejamento de uma comunica��o que chegue at� as pessoas, uma vez que pacotes de internet mais baratos muitas vezes dificultam o acesso a p�ginas oficiais e fontes confi�veis de informa��o, mas garantem a comunica��o por redes sociais, local em que conte�dos virais de desinforma��o circulam fortemente.
"Os picos de desinforma��o e hesita��o se d�o quando h� a divulga��o de uma nova informa��o, uma nova pol�tica de sa�de, ou relato de poss�vel problema de sa�de", afirma.
“Esses grupos s�o muito estruturados e t�m dinheiro”, acrescenta.
Estresse vacinal
Um exemplo emblem�tico desse padr�o foi a campanha de desinforma��o contra a vacina do HPV no Acre, entre 2014 e 2019. A vacina � indicada para adolescentes de 9 a 14 anos, e � de grande import�ncia para prevenir casos de c�ncer, como o c�rvico-uterino. Epis�dios de rea��es � vacina, chamados de estresse vacinal, entretanto, levaram a uma forte campanha de desinforma��o que atribuiu falsamente � vacina o risco de causar paralisias e epilepsia.
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O psiquiatra Renato Marchetti, professor da Universidade de S�o Paulo, explica que rea��es de estresse p�s-vacina��o t�m como gatilhos dor, medo e ansiedade e podem se proliferar quando uma pessoa v� imagens ou testemunha outra pessoa sofrendo dessa rea��o. Esses sintomas afetam principalmente adolescentes do sexo feminino, s�o involunt�rios e se parecem com sintomas neurol�gicos, mas suas causas s�o psicossociais.
"Uma parte importante para o desfecho do estresse vacinal depende do conhecimento das pessoas que sofreram o problema, dos familiares, dos m�dicos e de outras pessoas da sociedade sobre o assunto. � preciso saber que existe a rea��o de estresse vacinal, que aquilo n�o � uma doen�a desconhecida, e, sim, um problema que pode acontecer tamb�m devido a outros tipos de estresse. A divulga��o cient�fica das rea��es psicog�nicas seria um ponto importante", avalia.
"A gente conviveu com muitos m�dicos que atenderam �s meninas no Acre, e a maior parte deles n�o eram pessoas mal intencionadas. Eles [m�dicos] tinham d�vidas sobre o que estava acontecendo porque essa rea��o n�o � bem conhecida nem entre os m�dicos".
Situa��es como essa s�o registradas desde a d�cada de 1990, com diferentes vacinas, e principalmente durante a imuniza��o escolar. Com a divulga��o de imagens e relatos pela imprensa ou grupos contr�rios � vacina��o, esses casos se alastram.
Foi o que ocorreu no Acre, em que imagens de adolescentes desmaiadas causaram forte temor e levaram at� mesmo profissionais de sa�de a contraindicarem a vacina��o. O desconhecimento dos profissionais da imprensa e da sa�de sobre as rea��es de estresse vacinal agravaram a situa��o. O temor e o pico de informa��o antivacina, explica Marchetti, causa um fen�meno chamado hesita��o vacinal reativa transmiss�vel, um surto de hesita��o vacinal. No caso do Acre, a cobertura da vacina HPV chegou a menos de 1%.
"Toda vez que ocorre um evento com repercuss�o, voc� tem uma infodemia, uma propaga��o aguda que responde �s mesmas modelagens matem�ticas de uma epidemia de causas biol�gicas", explica.
At� pediatras
A desinforma��o sobre as vacinas covid-19 pode ter aumentado a hesita��o vacinal (relut�ncia ou recusa) at� mesmo entre pediatras, indica um estudo ainda em andamento com quase mil m�dicos brasileiros dessa especialidade.
Por meio de entrevistas em que os profissionais declaravam concordar ou discordar de afirma��es, os pesquisadores detectaram uma forte correla��o entre a cren�a de que as vacinas contra a covid-19 ainda s�o experimentais e a desconfian�a de que as vacinas n�o s�o seguras de forma geral.
A pesquisa � resultado de uma parceria entre a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Instituto Quest�o de Ci�ncia (IQC), e busca produzir material direcionado � conscientiza��o desses profissionais, recuperando sua confian�a nas imuniza��es. Foram ouvidos 982 pediatras - 90% fizeram resid�ncia m�dica, 60% declararam que atuam nas redes p�blica e privada e 41% estavam com o calend�rio vacinal em dia.
Coordenador do trabalho e diretor de educa��o cient�fica do IQC, Luiz Gustavo de Almeida apresentou que os pediatras se posicionaram sobre as seguintes afirma��es: "as vacinas covid-19 em pediatria ainda podem ser consideradas experimentais"; "a vacina covid-19 de RNAm pode acarretar algum risco de modifica��o do DNA da crian�a"; e "a vacina��o de crian�as � fundamental, pois est� � uma doen�a importante na pediatria que pode levar a casos graves". As duas primeiras afirma��es s�o falsas e frequentemente usadas em campanhas de desinforma��o. J� a terceira � verdadeira e comprovada por estudos cient�ficos e autoridades sanit�rias de diversos pa�ses.
Al�m das frases sobre as vacinas contra a covid-19, tamb�m foram apresentadas outras como "eu tenho total confian�a de que as vacinas s�o seguras"; "a vacina tr�plice viral causa autismo"; e a "a vacina HPV administrada na adolesc�ncia pode favorecer o in�cio da vida sexual". As duas �ltimas frases s�o mentiras usadas pelo movimento antivacinista.
"A covid abalou a confian�a em todas as outras vacinas. Essa � a mensagem final que a gente tem no artigo. Por conta das vacinas da covid, alguns pediatras acabaram perdendo a confian�a nas outras vacinas, como a de HPV".
Almeida disse que a pesquisa constatou forte coes�o entre todas as respostas contr�rias � confian�a nas vacinas, mostrando que a desconfian�a propagada contra as vacinas covid-19 pode ter contaminado as cren�as sobre outros imunizantes.
Resid�ncia m�dica
O estudo tamb�m pode indicar que profissionais que fizeram resid�ncia m�dica est�o menos sujeitos a hesitar na recomenda��o de vacinas para seus pacientes. Os dados preliminares mostram que, entre o grupo minorit�rio que respondeu � entrevista demonstrando desconfiar das vacinas, a caracter�stica mais comum era a aus�ncia de resid�ncia m�dica na forma��o.
Almeida explicou que os pesquisadores ainda est�o debru�ados sobre os dados para interpret�-los, mas as respostas j� permitiram identificar dois perfis: um que concorda fortemente que as vacinas s�o confi�veis, e outro que se declara neutro em rela��o a isso ou discorda parcial ou integralmente. Esse segundo grupo somou cerca de 10% dos respondentes.
De acordo com Almeida, os pediatras est�o entre o grupo m�dico que mais confia nas vacinas. Ele afirmou que a maioria dos que responderam o question�rio � favor�vel � imuniza��o. "Teve esses 10% que t�m uma outra vis�o que n�o � a mais prevalente. E a ideia de formar esses perfis � munir [com informa��es] todos que t�m d�vidas e n�o acreditam nas vacinas".
Entre os que concordam fortemente que as vacinas s�o seguras, o perfil foi de profissionais que fizeram resid�ncia m�dica, n�o t�m mestrado nem doutorado e atuam nas redes p�blica e privada. Almeida afirma que uma hip�tese dos pesquisadores � que a viv�ncia dos servi�os de sa�de durante a resid�ncia m�dica refor�a a confian�a de que as vacinas s�o seguras e importantes para prevenir doen�as.
"Isso � algo que ainda estamos discutindo. Quem passou direto da faculdade para o atendimento talvez n�o teve esse contato principalmente com o atendimento na rede p�blica", diz. "Quem n�o fez resid�ncia pode ter visto nos jornais, mas n�o viu crian�as sofrendo em hospitais".
*O rep�rter viajou para Florian�polis a convite da Sociedade Brasileira de Imuniza��es
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