Angelina Jolie ganhou as manchetes em 2013 ao anunciar que havia retirado as mamas por causa do risco elevado de c�ncer de mama
Evelin Scarelli tinha apenas 23 anos quando recebeu uma not�cia inesperada: ela estava com c�ncer de mama.
"Eu n�o tinha nenhum sintoma, nada que levantasse suspeita. Um dia, ao acaso, fui me espregui�ar e, ao esbarrar a m�o no seio, senti algo anormal ali", lembra ela.
"Um deles confessou que demorou a me contar o resultado porque decidiu enviar a l�mina da bi�psia para outros laborat�rios, para ter absoluta certeza que se tratava mesmo de um carcinoma invasivo."
Cerca de dois anos ap�s o diagn�stico, per�odo em que Scarelli foi submetida a cirurgias e dezenas de sess�es de quimioterapia e radioterapia, uma nova not�cia a surpreendeu: a m�e dela tamb�m estava com c�ncer de mama.
O novo caso da doen�a na fam�lia — somado ao fato de o av� materno dela ter falecido em decorr�ncia de um c�ncer de p�ncreas — foi suficiente para que os m�dicos sugerissem que m�e, e depois filha, fizessem um teste gen�tico � procura de muta��es relacionadas a um risco elevado de desenvolvimento de tumores.
Ap�s a an�lise do DNA, a suspeita se confirmou: ambas possu�am altera��es no gene BRCA2, que aumenta a probabilidade de desenvolver c�lulas cancerosas na mama (e em algumas outras partes do corpo).
� �poca, os testes gen�ticos no c�ncer de mama haviam ganhado destaque no mundo todo depois que a atriz americana Angelina Jolie — cuja m�e morreu de c�ncer — divulgou em maio de 2013 que retirou as mamas ap�s descobrir uma muta��o gen�tica no gene BRCA1. Dois anos depois, a artista tamb�m passou por um procedimento para remover os ov�rios.
"Hoje, tenho 35 anos e sou m�e do Bento, de 2. Mas n�o foi nem um pouco f�cil chegar at� aqui", diz Scarelli.
Nesses mais de dez anos desde o diagn�stico, ela enfrentou (e continua a enfrentar) uma s�rie de dilemas — e precisou aprender a tomar decis�es compartilhadas com a equipe m�dica sobre o tratamento do c�ncer, o acompanhamento de sa�de e at� sobre o rumo da vida pessoal e familiar.
Evelin (� direita) com a m�e: o teste gen�tico de ambas detectou a presen�a de muta��es no gene BRCA2
Arquivo pessoalFazer o teste — e divulgar os resultados
"Quando descobri que era uma paciente com muta��o, a orienta��o que recebi era de n�o contar para ningu�m, porque a sociedade n�o estava preparada para nos ouvir" , lembra Scarelli.
"Por esse motivo, fiquei durante muitos anos dentro do arm�rio, lidando com o fato de eu estar num limbo: eu n�o tenho mais o c�ncer, mas tamb�m n�o posso receber alta m�dica por causa da muta��o que carrego."
Mas, de uns tempos para c�, ela diz que se sente mais estimulada — e menos preocupada — em falar abertamente sobre a muta��o que carrega no DNA.
"Mas eu entendo que muitas mulheres ainda n�o podem fazer isso, por quest�es como a rela��o no trabalho ou mesmo os custos do plano de sa�de", pondera ela.
A privacidade sobre este assunto � algo importante para Joana Guimar�es*, que pediu para n�o ter o nome identificado nesta reportagem. Ela n�o tem — e nunca teve — c�ncer de mama, mas carrega uma muta��o no BRCA2.
Ela fez essa descoberta depois que uma prima foi diagnosticada com o tumor e teve uma recidiva da doen�a h� tr�s anos.
"Havia um longo hist�rico de c�ncer de mama na fam�lia. Minha av� teve a doen�a bem jovem, aos 40 e poucos anos, assim como algumas primas da minha m�e", detalha ela.
A m�e de Guimar�es realizou o teste e descobriu a muta��o. Com isso, havia uma chance de 50% da pr�xima gera��o — no caso, Joana e a irm� — tamb�m portar o BRCA2 mutado.
Nesses casos, quando uma determinada muta��o � encontrada no genoma de uma paciente, o protocolo � realizar o teste em familiares de primeiro grau, como m�es, irm�s ou filhas. Se o resultado � positivo, a testagem � expandida para mais parentes, como as primas, e assim por diante.
No caso de Guimar�es, o teste revelou que ela havia herdado a muta��o. J� a irm� dela, n�o.
"Eu decidi fazer o teste porque a partir dele posso tomar atitudes que diminuem meu risco de ter um c�ncer", explica ela.
Mas, afinal, quando um teste gen�tico que investiga as muta��es relacionadas ao c�ncer de mama � realmente indicado e pode fazer a diferen�a?
O m�dico Rodrigo Guindalini, da Oncologia D'Or, explica que, de cada 10 casos de tumores que acometem o tecido mam�rio, um est� relacionado a fatores gen�ticos e heredit�rios.
At� o momento, a ci�ncia j� descreveu quase 15 genes que est�o associados � predisposi��o para o c�ncer de mama — desses, os BRCA1 e BRCA2 s�o os mais frequentes. A presen�a de algumas dessas muta��es chegam a aumentar o risco de desenvolver um tumor ao longo da vida em mais de 80%.
Isso significa que, segundo as diretrizes atuais, n�o � toda mulher — e nem sequer toda paciente com c�ncer de mama — que tem uma indica��o para realizar os testes gen�ticos.
"Para indicar esse exame, n�s levamos em conta alguns crit�rios, como o hist�rico daquela fam�lia, a idade no momento do diagn�stico e at� algumas caracter�sticas do tumor", detalha Guindalini, que tamb�m � consultor cient�fico do Instituto Oncoguia, uma ONG voltada a pacientes com c�ncer e familiares.
Por ora, os testes gen�ticos contra o c�ncer de mama n�o s�o oferecidos na rede p�blica brasileira. E, mesmo nos conv�nios de sa�de, eles s� est�o cobertos para pacientes com menos de 35 anos, em que � poss�vel demonstrar claramente uma suspeita de que a doen�a tem algum tra�o heredit�rio (como mais casos entre familiares pr�ximos).
A boa not�cia � que o custo desses exames caiu consideravelmente nos �ltimos anos. H� cerca de uma d�cada, fazer o teste para avaliar a presen�a de uma �nica muta��o sa�a por cerca de R$ 10 mil. Hoje em dia, � poss�vel realizar um painel gen�tico — que avalia diversos genes de uma vez s� — por algo em torno de R$ 2 mil.
Tanto m�dicos quanto pacientes ouvidos pela BBC News Brasil defendem a necessidade de ampliar esses crit�rios de testagem e disponibilizar esse recurso no Sistema �nico de Sa�de — at� porque essa informa��o pode fazer toda a diferen�a no tratamento e no acompanhamento das mulheres que carregam as tais muta��es, como voc� entende a seguir.
Evelin optou por fazer a retirada das mamas para evitar um novo c�ncer no futuro
Arquivo pessoalAtitudes preventivas
O avan�o da Medicina permite que casos de c�ncer de mama sejam tratados com cirurgias minimamente invasivas, que retiram apenas a les�o e uma pequena margem de seguran�a. Al�m disso, as sess�es complementares de qu�mio, r�dio ou hormonioterapia ficam cada vez personalizadas, de acordo com a necessidade de cada paciente.
S� que isso n�o basta para aquelas que carregam muta��es gen�ticas no BRCA.
"Essas mulheres t�m uma chance muito grande de desenvolver um segundo c�ncer ao longo da vida", lembra Guindalini.
"A probabilidade de isso ocorrer com portadoras de muta��es no BRCA1 � da ordem de 50% ao longo dos pr�ximos 20 a 25 anos", calcula ele.
Nesses casos, os m�dicos podem propor um acompanhamento mais pr�ximo, com exames de check-up a cada 6 meses, ou uma eventual retirada do tecido mam�rio — que pode ser substitu�do por pr�teses, se a mulher desejar.
"Al�m disso, recentemente foram desenvolvidos medicamentos que atuam justamente nesse defeito de repara��o de DNA relacionado ao BRCA", acrescenta o m�dico Jo�o Henrique Penna Reis, presidente do Departamento de Oncogen�tica da Sociedade Brasileira de Mastologia.
"Conhecidos como inibidores de parp, eles se aproveitam de um ponto fraco do tumor relacionado �s muta��es gen�ticas para aumentar a efic�cia do tratamento", complementa ele.
Ou seja, a realiza��o de testes gen�ticos durante o tratamento de alguns tipos de c�ncer de mama tem o potencial de modificar os rem�dios que ser�o utilizados — ou antecipar interven��es para impedir que tumor reapare�a (ou ao menos seja detectado num est�gio bem inicial).
Mas e para as mulheres que sequer desenvolveram um primeiro epis�dio da doen�a? O que muda na vida delas saber que carregam a muta��o X, Y ou Z no DNA?
Como o risco delas terem o c�ncer � superior � m�dia da popula��o, os profissionais da sa�de podem propor tr�s caminhos. O primeiro � realizar um acompanhamento mais constante, a cada seis meses, com o aux�lio da mamografia, do ultrassom e da resson�ncia magn�tica. O objetivo aqui � flagrar um eventual tumor logo no in�cio, quando as chances de cura chegam a 90%.
A segunda op��o � partir para cirurgia profil�tica de retirada das mamas — a exemplo do que fez Angelina Jolie h� uma d�cada.
Para fechar, Penna Reis explica que uma terceira alternativa � realizar um tratamento medicamentoso preventivo, que diminui a probabilidade das c�lulas cancerosas proliferarem.
"� importante dizer que a cirurgia n�o � obrigat�ria e a decis�o do caminho que ser� adotado passa muito pela prefer�ncia da mulher", destaca Guindalini.
"Tamb�m precisamos ter em mente que algumas pacientes s�o muito impactadas com a imagem corporal relacionada � poss�vel retirada das mamas", complementa Penna Reis.
A quest�o � um pouco mais complexa em rela��o aos ov�rios. O problema � que algumas dessas muta��es tamb�m aumentam significativamente o risco de c�ncer nas gl�ndulas reprodutivas femininas.
Infelizmente, n�o existem exames de rastreamento capazes de flagrar precocemente a doen�a nessa regi�o do corpo — e 70% das pacientes s� descobrem o tumor quando ele j� est� numa fase avan�ada.
Quando certas muta��es gen�ticas s�o encontradas, a paciente e os profissionais de sa�de podem conversar e planejar o melhor momento para fazer a retirada dos ov�rios. A pr�pria Jolie, ali�s, passou pelo procedimento em 2015.
"Ou seja, a informa��o de um teste gen�tico permite transformar a paciente na protagonista de sua pr�pria hist�ria", comemora Guindalini.
"Hoje em dia, � poss�vel planejar cirurgias profil�ticas nas mamas e nos ov�rios, se necess�rio, de modo que a mulher n�o desenvolva nenhum desses tumores."
"Isso representa uma vit�ria. No momento em que voc� realiza essas cirurgias, o risco de c�ncer nessas partes do corpo, que antes estavam vulner�veis, se reduz em 90 ou 95%", calcula ele.
Em mulheres portadoras de determinadas muta��es, o acompanhamento da sa�de das mamas precisa ser muito mais frequente
Getty ImagesCulpas, medos e press�es
Mas � claro que a descoberta de uma muta��o gen�tica relacionada ao c�ncer n�o demanda apenas decis�es pr�ticas e cuidados com a sa�de.
A not�cia traz impactos emocionais — especialmente quando a informa��o � recebida sem o suporte de algu�m que realmente entende do assunto.
Scarelli conta que, logo ap�s saber que portava uma muta��o no gene BRCA2, o m�dico que a acompanhava perguntou se ela pensava em se casar.
"Eu tinha um namorado � �poca e respondi que, sim, gostaria de ter um casamento. N�o sabia ao certo se seria com aquela pessoa, mas o sonho existia", diz ela.
"E a orienta��o que o m�dico me deu foi: 'Ent�o avisa o seu namorado ou seu noivo sobre a muta��o porque, se voc� omitir essa informa��o, ele pode anular o casamento sob o argumento de que voc� est� manchando a heran�a gen�tica dele'."
"Foi dessa forma nada confort�vel, com frases como 'manchar heran�a gen�tica' dos outros, que fiquei sabendo da muta��o. Sa� da consulta me sentindo a pior pessoa do mundo. O impacto foi pior do que quando descobri anos antes que tinha um c�ncer", desabafa Scarelli.
Felizmente, ela teve a oportunidade de conversar com outros profissionais que, nas palavras dela, a fizeram se sentir mais acolhida.
Atualmente, Scarelli trabalha no Instituto Oncoguia e coordena um grupo no Facebook que re�ne mulheres que descobriram alguma muta��o gen�tica relacionada ao c�ncer. A ideia � manter um espa�o virtual para que elas possam conversar e compartilhar informa��es ou d�vidas.
"As pacientes mutadas precisam considerar prazos, tempos e riscos para todas as decis�es da vida. E uma frase mal colocada pode gerar ainda mais cobran�as", destaca ela.
Na outra ponta do consult�rio, Guindalini v� diariamente como o resultado do teste gen�tico pode representar uma fonte de ang�stia e medo se � informado sem os devidos cuidados.
"Algumas mulheres que carregam altera��es gen�ticas se sentem culpadas por acharem que transferiram o problema para as filhas. Esse � mais um peso nas costas delas", observa o m�dico.
"Com a ajuda de psic�logos, tentamos mostrar que essas muta��es n�o foram adquiridas ao longo da vida e n�o est�o relacionadas a nada que elas fizeram ou deixaram de fazer. As mulheres simplesmente herdaram essas muta��es, que s�o transmitidas ao longo de muitas gera��es", esclarece ele.
Na medida do poss�vel, o oncologista tenta chamar a aten��o para o lado positivo desta not�cia.
"Temos que mostrar o outro lado da moeda e transformar o medo em atitudes. A descoberta de uma muta��o representa um legado altamente valioso na preven��o do c�ncer para si mesma e para a fam�lia. E isso vale mais do que ouro", destaca ele.
Quando teve o filho Bento, Evelin enfrentou muitos questionamentos relacionados � amamenta��o
Arquivo pessoalSonhos e projetos, frustra��es e cobran�as
A descoberta das muta��es gen�ticas relacionadas ao c�ncer de mama ainda possuem uma terceira grande repercuss�o, mais especificamente nas escolhas de vida da mulher.
Um exemplo: h� o desejo de ter filhos? Se sim, existe o interesse ou a disponibilidade financeira em realizar fertiliza��o in vitro, fazer a an�lise gen�tica dos embri�es e selecionar aqueles que n�o portam as muta��es no DNA? E mais: como fica a amamenta��o?
Scarelli passou por todos esses dilemas logo depois de se casar.
"Meu oncologista me dizia que eu precisava retirar as mamas, mas poderia me arrepender disso porque n�o teria a possibilidade de amamentar meu filho no futuro", exemplifica ela.
Scarelli optou por fazer a cirurgia preventiva das mamas. Algum tempo depois, ela engravidou e teve o menino Bento, que hoje est� com dois anos.
"Eu decidi que preferia estar viva hoje com meu filho, o alimentando por uma mamadeira, do que correr um risco alto de desenvolver um novo c�ncer."
A decis�o, claro, acarretou novas cobran�as.
"Eu cheguei a me arrepender de ter retirado as mamas no dia que o Bento nasceu. Porque eu ouvia das enfermeiras: 'Ah, o beb� est� chorando, d� pra m�e que ela vai oferecer o que ela tem mais de especial'."
"Eu olhava para meu peito e n�o havia nada ali. Eu n�o tinha o que h� de mais especial."
Os questionamentos continuaram a acontecer nos meses seguintes.
"Eu me lembro de estar com o Bento no parquinho e, ao tirar uma mamadeira para alimentar meu filho, outras m�es me questionavam por que eu n�o amamentava."
Guimar�es tamb�m se v� num momento de tomar decis�es importantes. "Eu tenho 34 anos e ainda estou um pouquinho reticente em fazer a cirurgia preventiva nas mamas, porque isso limitaria a minha possibilidade de amamentar."
"Mas tamb�m n�o sei se quero ter filhos, ent�o estou planejando fazer a cirurgia no ano que vem."
Para Scarelli, as mudan�as proporcionadas pelos testes gen�ticos na preven��o ou no diagn�stico do c�ncer colocam cada vez mais as pacientes no centro dos cuidados.
"A sociedade est� acostumada a deixar 100% das decis�es nas m�os dos m�dicos", constata ela.
"A descoberta de muta��es gen�ticas modifica isso. Elas nos trazem um senso de amadurecimento, da necessidade de fazer escolhas, de criar responsabilidade."
"Hoje eu decido junto com meu oncologista qual ser� o pr�ximo passo da minha vida", conclui ela.
*O nome da entrevistada foi alterado a pedido para preservar a identidade dela.

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