#Praentender Os desafios de Pia Sundhage na Sele��o e a desigualdade no futebol feminino do Brasil
Treinadora sueca estreia com a miss�o de renovar o grupo, descobrir talentos e, principalmente, ajudar em uma mudan�a estrutural no futebol feminino do pa�s
postado em 29/08/2019 06:00 / atualizado em 29/08/2019 21:57
A estreia da sueca Pia Sundhage no comando da Sele��o Brasileira, nesta quinta-feira, �s 21h30, em amistoso contra a Argentina, no Pacaembu, pode significar o in�cio de uma nova fase para o futebol feminino do Brasil. Pelo menos essa � a esperan�a de quem acompanha o trabalho da treinadora, bicampe� ol�mpica com os Estados Unidos (Pequim'2008 e Londres'2012) e medalha prata nos Jogos do Rio'2016 com a Su�cia. Mas, para que Pia seja essa mola propulsora que o futebol feminino do Brasil precisa, ser�o necess�rias muitas mudan�as, sobretudo estruturais. O cen�rio que ela encontra no pa�s � de algum amadorismo, pouco investimento e ainda muito preconceito.
Pia, de 59 anos, faz sua primeira partida como treinadora do time do Brasil em amistoso contra a Argentina, no Pacaembu (foto: DANIEL MIHAILESCU/AFP)
Para a ex-capit� da Sele��o Aline Pellegrino – integrou o time prata em Atenas'2004, campe�o pan-americano e vice do Mundial em 2007 –, que desde 2016 coordena o Departamento de Futebol Feminino da Federa��o Paulista de Futebol, a palavra-chave para o sucesso de Pia ser� tempo. “� preciso ter paci�ncia. Dar cr�dito a ela. Ser� um trabalho de reestrutura��o. A Pia fala em no m�nimo dois anos para essa transforma��o come�ar a ser vista. E acho que � por a�”, destaca a ex-zagueira.
Apesar de conhecer bem os problemas que assolam a modalidade, Aline se diz otimista: “Poder�amos estar mais evolu�dos, mas a Pia n�o come�a um trabalho do zero. Existe um caminho, temos talentos, precisamos � trabalh�-los melhor. Aproveitar muito tudo isso o que ela viveu, tudo o que sabe. Temos de sugar o m�ximo poss�vel”.
Coordenadora do futebol feminino do Atl�tico h� oito meses, Nina Abreu, que por 25 anos foi assessora na Federa��o Mineira de Futebol, coloca o dedo na ferida. “O futebol que a Pia encontra ainda � um futebol desestruturado, e eu estou falando de estrutura f�sica num primeiro momento”, ressalta.
(foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A. Press)
"O futebol que a Pia encontra ainda � um futebol desestruturado, e eu estou falando de estrutura f�sica num primeiro momento"
Nina Abreu, coordenadora do futebol feminino do Atl�tico
Ela acredita que a sueca chega ao Brasil em um momento crucial, e a presen�a da treinadora pode ser determinante para que o projeto comece a decolar: “Em 25 anos de federa��o, observei o futebol feminino sobreviver. � uma fatia da sociedade que n�o tem como ser ignorada mais. De forma muito providencial, a Fifa obrigou a Conmebol, que obrigou a CBF, que obrigou as federa��es, que obrigaram os times a abra�ar essa camada e ajudar a dar espa�o para esses talentos. A gente tem uma grande refer�ncia, que � a Marta, mas pode ter certeza de que h� v�rias outras Martas por a� esperando uma chance, se soubermos lapid�-las e se elas tiverem a perseveran�a que a Marta teve”.
Embora ainda n�o tenha completado um m�s de trabalho, Pia j� come�ou a fazer mudan�as sens�veis. Uma delas � a aproxima��o com os clubes, como conta B�rbara Fonseca, que h� seis anos trabalha com gest�o no futebol feminino e desde fevereiro coordena a modalidade no Cruzeiro – inclusive j� colheu os primeiros frutos, com o time celeste sendo vice-campe�o brasileiro A-2 e garantido na Primeira Divis�o Nacional do ano que vem.
“Em seis anos de futebol feminino, nunca vi o Vad�o (ex-t�cnico da Sele��o feminina). Em duas semanas no cargo, a Pia j� foi ao encontro dos clubes. Ela esteve no primeiro jogo da final da A-2, no Pacaembu, e n�o ficou no camarote n�o. Ao lado da Bia Vaz, que � a assistente dela, desceu para o vesti�rio, do Cruzeiro e do S�o Paulo. Perguntou sobre o trabalho, as jogadoras. Tamb�m j� foi ver o Flamengo, o Corinthians... Isso mostra que ela est� preocupada em conhecer as equipes, em entender o que est� sendo feito. Ent�o, acho que come�a bem”, declara B�rbara.
Diferen�as
� fato que Pia vai encontrar um panorama muito heterog�neo no Brasil. De um lado, as equipes paulistas, em um est�gio mais avan�ado por estarem em um estado onde o futebol feminino vem sendo trabalhado h� mais tempo e tamb�m por integrarem um mercado onde circula mais dinheiro – e, consequentemente, h� mais investimento.
A realidade na maior parte do pa�s, no entanto, � outra. At� os clubes “de camisa”, que foram obrigados a incorporar o futebol feminino sob pena de puni��o inclusive em �mbito internacional, encontram dificuldade para tocar seus projetos. Al�m disso, as mulheres n�o disp�em da mesma estrutura oferecida aos homens – por vezes, nem treinam no mesmo CT. Em Minas Gerais, o time feminino do Am�rica trabalha no Balei�o, Regi�o Leste de BH; o do Atl�tico treina no campo sint�tico da Cidade do Galo (que conta com sete campos de grama); e o do Cruzeiro, apesar das Tocas da Raposa I e II, usa as instala��es na Puc do Cora��o Eucar�stico.
Para quem trabalha na �rea, no entanto, cada pequeno avan�o � um grande passo. “Na �ltima semana de julho, viemos para a Cidade do Galo. Antes, trein�vamos em um campo alugado, de grama sint�tica. Aos poucos, o Atl�tico est� entendendo a modalidade, com a estrutura do masculino contemplando o feminino. Hoje, elas contam com refeit�rio, audit�rio, e tivemos dois projetos aprovados na lei de incentivo fiscal do estado, que foi uma batalha do jur�dico do clube. Teremos empresas patrocinando o time, com o nome na camisa”, conta Nina.
B�rbara tamb�m procura olhar o cen�rio por um vi�s positivo. “Tenho uma vis�o muito realista, precisamos entender a complexidade que envolve o futebol feminino. Primeiramente, h� uma quest�o cultural. O futebol ainda � todo idealizado para atender ao masculino. A nossa palavra de ordem � conquistar: a diretoria, o torcedor, e com isso vai vir o patrocinador, etc.”, comenta.
Ela ressalta a necessidade de escolher as lutas na busca pelo crescimento: “Nunca serei uma gestora de chegar e bater o p� na porta. S�o degraus que vamos subindo. E a gente n�o pode errar, porque oambiente � machista. Estamos em um processo de evolu��o. Ainda � desconfort�vel para algumas pessoas entenderem o futebol feminino como poss�vel. � um absurdo dizer isso, mas � a realidade. As pessoas t�m um olhar preconceituoso. O cen�rio � esse, n�o fico com discurso vitimista. Busco alternativas para quebrarmos os paradigmas”. E � essa quebra de paradigmas que Pia tamb�m deve significar para o futebol brasileiro.
Na hist�ria
Quem conhece a CBF de perto tamb�m j� vislumbra a atua��o da treinadora em quest�es cruciais internas. Na primeira convoca��o da Sele��o Brasileira, estiveram presentes as comiss�es t�cnicas da equipe principal, do Sub-17 e do Sub-20 femininos. Pela primeira vez na hist�ria, as mulheres foram maioria nesse contexto.
Como treinadora do time Sub-17 do Brasil foi escolhida a ex-lateral Simone Jatob� (que tem a licen�a A da Uefa), recomendada por Pia. Simone, por sua vez, indicou outras ex-jogadoras: Maravilha, como preparadora de goleiras – � a primeira vez que uma mulher exerce essa fun��o em uma Sele��o Brasileira –, e Lindsay Camila como auxiliar.
A presen�a feminina cada vez maior � importante para abrir caminhos e estimular outras mulheres a seguir no futebol, campo ainda restrito para elas. E h� exemplos em Minas para ajudar a comprovar tal tese. Como Thays Guimar�es, de 31 anos, auxiliar t�cnica do Atl�tico e futura treinadora da equipe.
Ela come�ou como jogadora, em Ponte Nova, onde nasceu, e desde cedo sabia a profiss�o que queria trilhar. “Sempre quis ser treinadora de futebol, masculino ou feminino.” Para tanto, fez faculdade de educa��o f�sica e depois o Curso de Especializa��o em Futebol da Universidade de Vi�osa. Na sala de aula, entre 50 alunos, eram apenas duas mulheres, recorda-se.
Thays Guimar�es decidiu cedo que seria t�cnica e se preparou para lutar contra o preconceito (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press)
“Sempre faltou oportunidade. Quando a gente come�a, imagina que a porta n�o vai abrir, principalmente em clubes profissionais. Come�ou a mudar agora. As pessoas passam a ver que n�o � quest�o de g�nero. Futebol � 11 contra 11. Muda biologicamente, pela quest�o da for�a, da velocidade, que a mulher tem menos, mas o jogo � o mesmo”, diz.
E n�o � apenas dentro das quatro linhas que as mulheres encontram obst�culos. Fl�via Magalh�es, de 43, m�dica do Am�rica e das Sele��es Brasileiras de base, sentiu isso na pele. Ela come�ou a jogar ainda crian�a, integrou o time do Atl�tico e s� n�o se dedicou � vida de jogadora porque a m�e a proibiu, “para n�o ficar com a perna roxa”.
Sair do futebol, entretanto, estava fora de quest�o. Ela se formou em nutri��o, e depois em medicina, fazendo resid�ncia em medicina esportiva. Sua primeira experi�ncia foi no Mamor�, em 2001. Em 2006, ingressou no Atl�tico, como estagi�ria. Foi contratada em 2009 e ficou no clube oito anos, atendendo � base e ao feminino. Neste ano, foi contratada pelo Am�rica, onde tamb�m atua no profissional masculino. “� um reconhecimento ao meu trabalho, � minha luta no futebol, que vem de muitos anos.”
M�dica do Am�rica e das Sele��es de base, Fl�via Magalh�es precisou de muita persist�ncia para seguir na carreira (foto: Ed�sio Ferreira/EM/D.A Press)
A oportunidade na Sele��o Brasileira veio em 2014. Desde ent�o, � convocada para acompanhar o Sub-17 e tamb�m j� trabalhou ao lado de Marta e companhia, na profissional. No curr�culo de Fl�via ainda est� passagem pela Confedera��o Brasileira de Desportos Aqu�ticos.
A trajet�ria �, indubitavelmente, vitoriosa, mas n�o t�m sido poucos os percal�os. E ela acredita que, se n�o fosse por ser mulher, teria alcan�ado mais: “� um cen�rio que vivencio h� 16, 17 anos, e chega um m�dico que, por ser homem, ocupa um espa�o que eu deveria ocupar por m�ritos. Passo coisas que s�o formas de preconceito e que tento absorver e falar para mim mesma que preciso ter resili�ncia. Muita gente diz que j� teria desistido. Se fosse homem, eu teria progredido muito mais, at� mesmo no Atl�tico”.
N�o bastassem as dificuldades naturais da carreira, Fl�via precisa se desdobrar como m�e de dois garotos, Carlos Eduardo, de 4 anos, e Lu�s Felipe, de 2. Isso nunca a impediu, contudo, de desempenhar bem seu papel: “Na primeira convoca��o para a Sele��o, eu amamentava o primeiro filho. Tirava o leite materno e doava na cidade em que est�vamos. No Sul-Americano de 2016, na Venezuela, estava gr�vida do segundo, e fiquei ansiosa para saber se seria chamada. E fui, de barrig�o de seis meses e tudo”.
A jornada n�o � f�cil, e isso acaba influenciando na oferta de mulheres para trabalhar no futebol. Diante dos obst�culos, h� quem mude o rumo da carreira no meio do caminho. Em alguns cargos, como o de gest�o, a representatividade ainda � m�nima. B�rbara Fonseca diz que o Cruzeiro est� aberto para a presen�a feminina, por�m, � necess�rio qualifica��o maior �s candidatas.
Enquanto isso...
...Nova reuni�o do Mineiro feminino
A Federa��o Mineira de Futebol (que n�o tem um departamento de futebol feminino) ainda n�o bateu o martelo com os clubes a respeito do Campeonato Mineiro, marcado para come�ar em 15 de setembro. O ponto de disc�rdia tem sido a taxa de arbitragem, que a entidade absorveu em edi��es anteriores e agora cobra o pagamento pelas equipes. Num momento em que o futebol feminino mais precisa de apoio para deslanchar, era esperada outra postura da FMF, que isenta da taxa de arbitragem alguns organizadores de torneio de futebol amador que re�ne times de BH e regi�o metropolitana. Nesta quinta-feira, a federa��o vai convocar os clubes para nova reuni�o, na segunda-feira, para tratar o assunto.