
Quando pilota o kart, o jovem Dimitry Fernandes Kalinowski experimenta uma sensa��o que classifica como a melhor da vida. "Eu recebo uma inje��o muito grande de endorfina, por isso gosto muito", diz � BBC News Brasil.
Primeiro piloto com autismo registrado na Confedera��o Brasileira de Automobilismo (CBA), o jovem considera que a pista representa a liberdade. O maior sonho dele � conseguir cada vez mais destaque no esporte a motor.
Mas Dimy, como � chamado pela fam�lia, convive com a incerteza sobre o seu futuro na modalidade, que tem custos elevados. Ele, que mora em Cuiab� (MT), n�o possui nenhum tipo de ajuda externa e a sua fam�lia n�o tem recursos financeiros para auxili�-lo por muito tempo.
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Em meio �s dificuldades, o jovem tem um apoio fundamental: o da m�e, a nutricionista Branca Fernandes. "Eu sei que ele tem capacidade para ser um piloto diferente e luta para isso", diz ela.
Neste ano, Dimy participou da sua primeira competi��o. O in�cio da concretiza��o do sonho tamb�m foi um momento em que as dificuldades enfrentadas por ele ficaram mais claras. Isso porque o jovem se envolveu em um acidente na disputa, ficou machucado, quebrou o kart e n�o sabe quando voltar� a correr.
Apesar dos empecilhos, o jovem n�o cogita abandonar o automobilismo.

O in�cio do sonho das pistas
Os autom�veis encantam Dimy desde pequeno. O garoto, que nasceu e passou parte da inf�ncia em Curitiba, costumava acompanhar o automobilismo pela televis�o e dizia que se tornaria piloto.Aos quatro anos, os pais deram um carro el�trico, uma pequena r�plica da Ferrari, para ele. Pouco depois, Dimy deu a sua primeira volta de kart em uma pista de um shopping center. "Passei a correr nessa pista de kart ocasionalmente, quando algum familiar me levava", diz o jovem.
A paix�o pelo esporte a motor cresceu cada vez mais. Ele gostava de ver carros, escutar barulho de motos e acompanhar corridas. Com frequ�ncia, insistia para que familiares o levassem para correr em kart�dromos de forma amadora.
"Com oito anos, pedi ao meu pai para abandonar a escola e ser piloto, mas ele n�o aceitou", conta. Dimy diz que posteriormente pediu outras vezes para parar de estudar e se dedicar exclusivamente ao automobilismo, mas os pais n�o concordaram.
Ele afirma que se sentiu frustrado com a situa��o. "Eu n�o conseguia aceitar que teria que ser outra coisa que n�o fosse piloto. Cheguei at� a tentar suic�dio aos 11 anos. Como sobrevivi, pensei: � melhor seguir em frente", diz.
Ent�o, ele continuou participando de disputas amadoras. Segundo Branca, o filho sempre se destacava nessas competi��es e recebia elogios.
O autismo
O modo como lidava com o interesse pelo automobilismo, que fazia com que n�o desse aten��o a outros temas, fez sentido para Dimy e para a m�e dele por causa de um diagn�stico que ele recebeu aos 15 anos: Transtorno do Espectro Autista (TEA), popularmente conhecido como autismo.

O transtorno � uma desordem complexa no desenvolvimento cerebral — h� diversos estudos para apurar a origem, mas n�o h� uma conclus�o at� o momento. Entre as caracter�sticas do TEA est�o dificuldades de socializa��o e comunica��o, comportamentos repetitivos e interesses restritos.
A descoberta do autismo em sua vida fez com que Dimy passasse a interpretar o automobilismo como o seu hiperfoco, ou interesse restrito, que � a capacidade que pode ser desenvolvida por pessoas com TEA para manter a aten��o voltada para um interesse espec�fico — como idiomas, astronomia ou m�sica.
O jovem afirma que o diagn�stico representou um melhor entendimento sobre si. "Fez muita diferen�a pra mim. Eu sabia que era diferente, desde crian�a, e isso serviu para explicar o motivo", diz.
Para Branca, o diagn�stico foi a resposta sobre uma d�vida que surgiu nos primeiros anos do filho. Ela conta que sentia falta do contato visual com o garoto durante a amamenta��o. "Ele ficava muito alheio a tudo e tamb�m parecia que era surdo", diz. Ela desconfiou que pudesse ser autismo, mas os m�dicos que atenderam o garoto descartaram a possibilidade.
Na escola, Dimy tamb�m apresentava tra�os de autismo, como a dificuldade de intera��o com os colegas. Uma professora chegou a falar para a m�e que ele n�o era igual �s outras crian�as.
"Parecia que n�o existia mais ningu�m al�m dele e ele n�o interagia. O Dimy tamb�m tinha uma irritabilidade acima do comum e era muito birrento, insistia em algo mesmo que fosse invi�vel. Hoje, olhando para tr�s, vejo que esses pontos eram algumas das caracter�sticas do autismo", comenta Branca.
A m�e conta que conseguiu o diagn�stico do filho somente quando procurou um especialista no tema, ap�s ler sobre o autismo quando o filho era adolescente.
"Eu j� achava que estava errada em pensar que ele � autista, depois de tantas pessoas terem me dito que ele n�o era. Mas quando li mais detalhes sobre o autismo em uma revista, voltei a ter essa d�vida, porque aquelas caracter�sticas descritas batiam com o Dimy. Foi quando procurei um especialista no tema", detalha Branca.
O autismo � classificado em diferentes n�veis. Isso varia conforme as dificuldades do indiv�duo. O grau do transtorno � classificado em leve, moderado ou severo, e varia de acordo com o quanto a pessoa precisa de suporte.

No caso de Dimy, Branca detalha que o filho tem o n�vel moderado, por precisar de apoio frequente para atividades do cotidiano. "Eu preciso estar junto com ele em tudo o que envolve intera��o com outra pessoa", diz a m�e dele.
Um piloto com TEA
Ap�s o diagn�stico, Branca decidiu apoiar o jovem no automobilismo, ao perceber que ele n�o desistiria da ideia de se tornar piloto. "Quando ele terminou o ensino m�dio e ficou em casa, sem querer mais nada que n�o fosse ser um piloto, eu vi que n�o haveria outra op��o", explica.
Em meados de 2017, pouco mais de um ano ap�s o jovem terminar o ensino m�dio, Branca e o filho foram atr�s de um kart. O preparador t�cnico S�rgio Lima relembra do primeiro contato que teve com Dimy. "Ele apareceu na pista junto com a m�e e os dois come�aram a me fazer perguntas sobre o kart. Eu fui respondendo e ele parecia cada vez mais fascinado", conta Lima.
Depois desse contato com o preparador, Dimy ganhou o primeiro kart. Era um modelo considerado antigo, mas era o �nico que a m�e tinha condi��es para comprar.
Lima passou a acompanhar Dimy nos treinamentos. "A dedica��o, a concentra��o e o desejo de pilotar um carro de corrida que a gente enxerga nele s�o muito maiores do que nos outros", afirma o preparador t�cnico, que acredita que Dimy pode ter um futuro brilhante no automobilismo se receber incentivo para isso.
O neurocirugi�o Virg�lio Vil� Moura, que conhece e acompanha Dimy h� tr�s anos, frisa que o paciente n�o tem qualquer dificuldade com o automobilismo por ser autista. Segundo o m�dico, a atividade ajuda o jovem a progredir em rela��o � "postura social, na intera��o e na capacidade de resolu��o de problemas".
O m�dico ressalta que cada paciente com autismo deve ser analisado individualmente em cada atividade feita, para avaliar os impactos disso para o indiv�duo.

No caso de Dimy, o neurocirurgi�o refor�a que o automobilismo � o hiperfoco do jovem e destaca que a atividade traz um grande desafio para o jovem quando ele est� fora da pista e precisa interagir com outras pessoas. "Essa � uma das maiores dificuldades dos pacientes com o TEA. Ou seja, vivenciar o kart � uma terapia para o Dimy", afirma Moura.
"N�o existe tratamento medicamentoso para o autismo, por isso � necess�ria uma abordagem multiprofissional (com especialistas de diferentes �reas). Isso fica mais dif�cil � medida que o paciente se torna adulto, pois a grande dificuldade � justamente conviver e ser funcionalmente ativo na sociedade", acrescenta o neurocirurgi�o.
A intera��o � o maior empecilho para Dimy no esporte. Para isso, ele precisa do apoio intenso da m�e. "Ele n�o vai � pista de corrida sem mim. Ele n�o depende de mim para pilotar, mas preciso estar ali pra conversar com um mec�nico ou em tudo o que envolve intera��o com outra pessoa, para garantir que ele entendeu o que foi dito. De repente, uma pessoa pode falar algo brincando e ele, como autista, achar que � pra valer".
Dimy treinou poucas vezes desde que ganhou o primeiro kart, em raz�o dos custos elevados na modalidade.
Segundo Branca, os gastos mensais n�o saem por menos de R$ 2,5 mil por m�s, caso o jovem corra com frequ�ncia. "Isso inclui manuten��o, combust�vel e custo com treinador. Como eu n�o tinha condi��es para pagar sempre, o Dimy fez somente seis treinos entre 2017 e o in�cio de 2021", diz.
A filia��o na Confedera��o de Automobilismo
Neste ano, Dimy conseguiu fazer muito mais treinos do que no passado, porque a m�e dele comprou um kart mais moderno para o filho e teve recursos para pagar os custos necess�rios para o jovem correr.

Branca conta que usou parte do valor da venda da casa da fam�lia, ap�s se divorciar, para conseguir arcar com esses custos relacionados ao sonho do filho.
O novo kart, que era seminovo, passou a ser usado por Dimy em julho deste ano. No per�odo, o jovem logo iniciou treinamento intenso. Um m�s depois, em meados de agosto, ele participou de uma etapa do campeonato Campeonato Mato-grossense de kart.
O jovem conquistou o quinto lugar na competi��o, que foi realizada em um kart�dromo de V�rzea Grande, na regi�o metropolitana de Cuiab�. "Foi uma boa posi��o, porque ele competiu com outras 18 pessoas. Ele ficou na frente de gente que pilota h� anos", diz Branca.
O resultado poderia ser ainda melhor, comenta a m�e do jovem. Por�m, segundo ela, Dimy passou boa parte da prova segurando a lateral do kart ap�s o ve�culo apresentar problema no meio da disputa. "Isso fez com que o kart dele perdesse velocidade", justifica Branca.
No mesmo dia dessa primeira corrida dele, Dimy recebeu a sua carteira de filiado � Confedera��o Brasileira de Automobilismo. O jovem conta que em maio deste ano conseguiu se filiar � CBA e a carteira foi entregue posteriormente para oficializar o fato.
Ele � filiado � confedera��o na classe Piloto Portador de Necessidade Especial. Criada em 2014, essa categoria da CBA j� teve 58 filiados. Segundo a confedera��o, Dimy � o primeiro piloto apontado como autista. Para conseguir se filiar, o jovem precisou encaminhar um laudo m�dico no qual comprovou que tem condi��es de pilotar.
A CBA explica, em nota � BBC News Brasil, que para uma pessoa com necessidade especial ser aceita na confedera��o � preciso avaliar a intensidade da defici�ncia dela. "No �mbito do esporte a motor, sob a al�ada da Confedera��o Brasileira de Automobilismo, h� pilotos filiados com defici�ncia f�sica, sensorial, intelectual, visceral", diz comunicado da confedera��o.
O acidente e a luta para seguir no automobilismo
No fim de setembro, Dimy correu em mais uma etapa do Campeonato Mato-grossense de kart. Mas ele n�o concluiu a disputa, porque o autom�vel do jovem teve novos problemas, dessa vez ainda mais graves.
"O meu kart estava muito complicado para pilotar na corrida. O banco estava quebrado, mas meu mec�nico tentou arrumar. O freio tamb�m estava com problema. O bico do meu kart estava amassado, torto e arrastando no ch�o, por isso a roda levantava. Eu n�o consegui ficar com as quatro rodas no ch�o", detalha Dimy.
O jovem conta que esses problemas surgiram durante a corrida, porque at� ent�o o ve�culo parecia apto para a disputa. "Essas coisas acontecem. Fui pilotando do jeito mais ousado poss�vel, mas foi muito dif�cil e cansativo", diz Dimy.
Enquanto corria, ele perdeu o controle do ve�culo. "O kart embicou, ficou na perpendicular e fui arremessado para fora da pista", detalha Dimy.
No acidente, ele tentou se proteger e acabou fraturando a m�o esquerda. Semanas depois, Dimy precisou passar por uma cirurgia e segue em recupera��o at� o in�cio de 2022. "Nesse per�odo tenho que ficar com o bra�o engessado, n�o posso pilotar ou fazer qualquer atividade f�sica", diz o jovem.
Ele ainda n�o sabe se voltar� a correr com o kart que pilotava no acidente. "O que sei � que est� quebrado. Talvez tenha conserto, mas n�o sei detalhes porque ainda n�o vi isso", explica.
A �nica certeza que ele tem sobre o futuro � que deseja voltar a pilotar o quanto antes. Ele considera que cada per�odo longe das pistas � um tempo a menos para avan�ar no automobilismo. "� triste ter que esperar mais um pouco, porque agora era o meu come�o", lamenta.
O tempo � um fator que preocupa muito o rapaz, porque ele teme que as pessoas o considerem "muito velho" para um iniciante. Por isso, prefere n�o revelar a idade, por medo de perder patrocinadores por n�o ser mais t�o novo como os outros que est�o iniciando na atividade agora. O jovem limita-se a dizer que tem mais de 20 e menos de 25 anos.
O kart, diz Dimy, � o seu passo inicial no automobilismo, assim como foi para grandes nomes como o piloto Ayrton Senna, que se destacou na F�rmula 1.
"Se eu puder escolher, quero chegar � F�rmula Indy, mas n�o � necessariamente um objetivo, o importante � avan�ar para outra categoria", diz. "O meu objetivo principal � um dia ganhar a vida com o automobilismo, receber para correr e poder viver disso", acrescenta o jovem.
Cada pequeno avan�o de Dimy no automobilismo � uma enorme vit�ria para a m�e dele. Por diversas vezes, ela ouviu coment�rios de pessoas pr�ximas que a aconselharam a fazer o jovem desistir de ser piloto.
"Muitos duvidaram, disseram que ele deveria abandonar esse sonho, porque achavam que era ilus�o, e falavam para buscar outra �rea. Falavam: j� que ele gosta de automobilismo, por que n�o tenta engenharia mec�nica? Por que n�o trabalha como mec�nico em uma oficina?", diz Branca.
Nunca teve outra op��o para Dimy, diz a m�e. Isso � um temor para ela, que teme que o filho se sinta muito frustrado caso n�o consiga prosseguir com a carreira. "� um medo que eu tenho", diz Branca.
Ela e Dimy frisam o quanto o jovem precisa de patroc�nio: sem isso, dizem, a carreira dele acaba por falta de recursos. "J� tentei diferentes patroc�nios nos �ltimos anos, mas nunca consegui nada", lamenta o piloto.
"O meu filho � um talento que est� sendo desperdi�ado por falta de oportunidades. Isso me d�i", diz Branca.
Al�m do prazer que sente com a velocidade, Dimy destaca que se sente acolhido no automobilismo. "J� sofri muito na escola por reagir como autista. No automobilismo nunca sofri nada assim, sempre me receberam muito bem e sou muito respeitado".
E o jovem afirma que hoje n�o corre apenas por si, mas tamb�m para representar outros autistas. "A m�e de um menino de seis anos, que tamb�m tem autismo, me procurou para falar que ele conheceu a minha hist�ria (em reportagens locais), achou incr�vel e ele tamb�m quer ser piloto", conta Dimy. "Acabo me tornando exemplo tamb�m", diz o jovem.
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