
Quando jovem, o comerciante aposentado �lvaro Pereira via todos os jogos do S�o Paulo, seu time do cora��o, no est�dio. Depois de casado, passou a ir �s arquibancadas com menos frequ�ncia, a cada tr�s ou quatro meses, assistindo �s demais partidas religiosamente pela televis�o.
Aos 87 anos, ap�s fechar durante a pandemia sua loja de pe�as de autom�veis na Rua do Gas�metro — local onde trabalhou por 65 anos — e ainda com algumas sequelas da covid que pegou em 2020, a televis�o � agora sua �nica op��o para seguir acompanhando o tricolor paulista.
Mas, recentemente, assistir a jogos de futebol pela TV tornou-se uma tarefa complicada."Pela manh�, vejo na Folha de S. Paulo onde vai passar o jogo. Se � num SBT, Globo ou ESPN da vida, n�o preciso da ajuda de ningu�m. Mas se �, por exemplo, nesse Star+ [ele aponta no jornal o nome do servi�o de streaming da Disney], eu n�o sei nem o que � isso", diz Pereira.
Quando em d�vida, o aposentado recorre ao filho para descobrir como ver algum jogo.
"Nesses canais que eu n�o sei te explicar, meu filho deixa no computador certinho, minha mulher liga e eu assisto na tela do computador mesmo. O problema n�o � nem o trabalho a mais, � n�o saber o que fazer, porque eu n�o entendo nada. � n�o saber executar o trabalho", lamenta.
Pereira j� chegou a perder jogos por essa dificuldade de lidar com a multiplica��o das plataformas de transmiss�o. "Meu filho estava viajando, eu n�o assisti ao jogo. E nem ouvi, de bronca", lembra, acrescentando que o problema n�o acontece s� com ele, mas com outros amigos idosos.
"S�o tantas op��es, voc� s� vai gastar mais e, uma pessoa como eu, n�o sei nem como fazer", diz Pereira. "Com 87 anos, estava mal-acostumado, apertava l� na Globo e estava resolvido. � triste, eu gostaria de estar por dentro de tudo, com a facilidade que eu tinha nos velhos tempos, mas eu n�o tenho essa facilidade mais."
A multiplica��o dos canais de transmiss�o
O problema enfrentado por Pereira e outros idosos n�o � s� deles. Torcedores de todas as idades t�m reclamado nas redes sociais da dificuldade que tem sido acompanhar os times de futebol brasileiros pela televis�o com a multiplica��o dos canais de transmiss�o e a entrada dos servi�os de streaming por assinatura neste mercado.
Streaming � a tecnologia de transmiss�o de �udio ou v�deo em tempo real pela internet, para aparelhos como smart TV, smartphone, tablet, computador ou notebook.
Atualmente, al�m da Globo, tamb�m transmitem jogos dos times brasileiros Record, SBT, Band, SporTV, ESPN, Premiere, Conmebol TV, TNT Sports, Fox Sports, YouTube, Globoplay, HBO Max, Star+, DAZN, Amazon Prime, Paramount+, al�m de servi�os de streaming pr�prios dos clubes, como FlaTV+ e Furac�o Play, do Flamengo e Athletico Paranaense, respectivamente.
"� uma palha�ada, um absurdo. Para quem quer ver todos os jogos do seu time de cora��o, agora temos que pagar TV a cabo + Premiere + Streaming. Daqui a pouco eles v�o colocar um streaming pago dentro do pr�prio streaming. Isso num pa�s em que mais da metade da popula��o vive em situa��o ca�tica de inseguran�a alimentar. � vergonhoso, � uma esculhamba��o", reclamou o torcedor Carlos Eduardo, no f�rum de discuss�o do site Meu Tim�o, especializado no alvinegro.
Um caso recente que gerou grande descontentamento entre torcedores foi o da transmiss�o do jogo entre Athletico Paranaense e Santos pelo Campeonato Brasileiro, no �ltimo dia 4 de junho, apenas no canal do comentarista esportivo Casimiro no Twitch, servi�o de streaming de v�deo da Amazon.
O Santos tem uma das torcidas com maior propor��o de idosos do Brasil, segundo pesquisa Sport Track divulgada em junho. E a transmiss�o da partida apenas por uma plataforma pouco conhecida e paga foi muito criticada, por dificultar o acesso ao jogo para os santistas mais velhos.
Galerinha, o ponto da cr�tica aqui N�O � o valor de um sub na Twitch, t�? Sabemos que � barato. O ponto �: pessoas mais velhas sequer sabe da exist�ncia da Twitch, o acesso pra eles � MUITO mais dif�cil, com ou sem tutorial.
O mundo n�o se resume ao Twitter e aos jovens.
Da primazia da Globo � Lei do Mandante
Por tr�s dessa "bagun�a" no mercado brasileiro do marketing esportivo est�o tr�s mudan�as principais, segundo especialistas.
A primeira delas � uma mudan�a na estrat�gia comercial da Globo, que at� anos atr�s detinha a primazia da transmiss�o de jogos no Brasil. A segunda, � a entrada de grandes empresas internacionais de streaming, como HBO, Disney e Amazon, na disputa pelos direitos de transmiss�o.
E a terceira foi a san��o, em setembro de 2021, pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) da Lei do Mandante (Lei 14.205/21), que permite com que o clube mandante — equipe que joga em casa, isto �, no seu pr�prio est�dio —, negocie de forma independente seus direitos de transmiss�o.
A nova legisla��o alterou o artigo 42-A da Lei Pel�, de 1998. A regra anterior previa que o direito de transmiss�o pertencia aos dois clubes, fazendo com que as partidas fossem transmitidas apenas se os times fechassem acordo com uma mesma empresa.
"No Brasil, por circunst�ncias econ�micas e pol�ticas, a Globo sempre teve uma primazia muito grande na TV aberta", afirma Bruno Maia, especialista em marketing esportivo e presidente da startup Feel The Match.
"Isso constru�a uma situa��o de uma for�a econ�mica que levava a uma sensa��o de monop�lio, ainda que sempre houvesse negocia��es que permitiam a presen�a de outros grupos econ�micos. Mas, por a Globo ser muito maior que a concorr�ncia, isso levava a uma concentra��o."

Para o jornalista esportivo Juca Kfouri, a primazia da Globo na transmiss�o de jogos durante d�cadas tamb�m se deve � capacidade t�cnica da emissora, que com sua rede de afiliadas locais � capaz de transmitir com qualidade jogos realizados em qualquer lugar do pa�s.
"Por outro lado, havia uma certa promiscuidade entre a dire��o de esportes da Globo e a CBF [Confedera��o Brasileira de Futebol] de Ricardo Teixeira. Rela��es pouco transparentes e bastante nebulosas, que terminaram por ser denunciadas quando se deu o 'Fifagate'", lembra Kfouri.
Ele se refere � opera��o deflagrada em 2015 pelo FBI, unidade de pol�cia do Departamento de Justi�a dos Estados Unidos, que resultou na pris�o de sete dirigentes de futebol em Zurique, na Su��a — entre eles o brasileiro Jos� Maria Marin, ex-presidente da CBF —, al�m do indiciamento de 34 r�us, entre empresas e pessoas, e a devolu��o de milh�es de d�lares.
Nas investiga��es, dirigentes relataram que a emissora brasileira teria pagado valores milion�rios em propina para assegurar exclusividade na transmiss�o de jogos.
� �poca, a Globo disse em nota oficial desconhecer tal pagamento, acrescentando que "caso tal pagamento tenha ocorrido, foi, evidentemente, contr�rio aos interesses da empresa. O Grupo Globo reafirma que n�o tolera nem paga propina", conforme reportagens de 2017, quando do julgamento de Marin.
O que mudou com a Lei do Mandante
Maia, da Feel The Match, explica que a lei anterior, que estabelecia que os dois times deveriam autorizar em acordo uma transmiss�o, tamb�m favorecia a primazia da Globo.
"Isso fez com que, durante muitos anos, se desse muito poder aos clubes menores na negocia��o com a Globo. A emissora tinha mais facilidade de fechar com eles e, a partir do momento em que um acordo era fechado com um time pequeno, o Flamengo, o Vasco e demais times grandes s� tinham a op��o de negociar com a Globo, porque ela j� tinha comprado os direitos do clube menor", lembra o especialista em marketing esportivo.
"Naturalmente, os clubes diziam que isso levava a uma desvaloriza��o da negocia��o, j� que o poder de barganha dessas grandes marcas era muito maior. Havia ent�o um desagrado geral e bastante justo", avalia Maia.
Sancionada por Bolsonaro, a Lei do Mandante atendia ent�o ao pleito dos clubes e contrariava o interesse da Globo, ao estabelecer que, a partir daquela data, bastaria ter acordo com o time detentor do mando de campo para fazer a transmiss�o.
"Como se isso, por si s�, fosse melhorar o mercado imediatamente, o que n�o � fato", diz o especialista. "A lei vem sem nenhum preparo, o mercado n�o � consultado. Ela � colocada de forma politiqueira e a�odada e cria uma desorganiza��o tremenda no ordenamento jur�dico dos direitos de transmiss�o no pa�s", opina.
Segundo Maia, a aprova��o da lei acelerou a perda de receitas pelos clubes.
Ele cita o exemplo do Campeonato Carioca, que passou de um contrato de R$ 120 milh�es pagos pela Globo at� 2020, com cada clube grande recebendo cerca de R$ 18 milh�es; para um contrato de R$ 11 milh�es com a Record em 2021, com R$ 3 milh�es destinados aos clubes mais receitas de pay-per-view, segundo o UOL.
A experi�ncia do Flamengo de transmitir seus jogos por um canal de streaming pr�prio, a FlaTV+, tamb�m foi conturbada, com falhas na transmiss�o, quedas de sinal e dificuldades de acesso para os torcedores, que expressam seu descontentamento nas redes.
N�o gosto de criticar, mas o FlaTV+ t� um lixo...
Deslogando toda hora e desde os 35min n�o volta de jeito nenhum! Uma completa vergonha.
'Tend�ncia mundial'
Juca Kfouri avalia, por�m, que o fim do predom�nio de uma �nica emissora sobre a transmiss�o de jogos no pa�s � algo positivo. E que esta � uma tend�ncia mundial, e n�o apenas do Brasil.
"Monop�lio nunca � uma situa��o ideal; permitia � Globo ter um predom�nio em rela��o aos rumos do futebol brasileiro. � positivo aumentar o card�pio, permitir que mais gente entre na luta pela transmiss�o de futebol. Ou estamos num sistema capitalista ou n�o, como estamos, a regra do jogo � essa", diz o jornalista esportivo.
Segundo Kfouri, o modelo tamb�m � positivo para os clubes, que podem ter uma melhor gest�o de recursos, passando a ganhar de mais empresas pela transmiss�o de jogos e podendo negociar melhor o pre�o da transmiss�o, j� que h� competi��o entre os agentes.
"Essa � uma tend�ncia mundial, cada vez menos vai ter futebol na TV aberta e cada vez mais ser� preciso pagar para ver os jogos. Isso tem rela��o inclusive com a redu��o da capacidade dos est�dios", afirma o jornalista.
"Cada vez mais os est�dios se transformaram em est�dios e � mais f�cil voc� lotar um est�dio para 40 mil pessoas, do que para 90, 100, 120 mil, como era a capacidade dos grandes est�dios brasileiros, que ficavam em boa parte esvaziados, o que era ruim para a transmiss�o. Ent�o hoje temos est�dios menores, com menor capacidade de atender a quem queira ver o jogo ao vivo e com maior n�mero de pessoas que veem o jogo por outros meios, na tela."

Muitos torcedores avaliam que a diminui��o da capacidade dos est�dios, encarecimento dos ingressos e transfer�ncia da transmiss�o da TV aberta para os streamings pagos est� elitizando o futebol brasileiro e gradativamente excluindo os mais pobres do esporte preferido do pa�s.
Outro fator que dificulta o acesso aos conte�dos por streaming no Brasil � a desigualdade no acesso � internet. Conforme a pesquisa TIC Domic�lios 2021, enquanto 100% dos domic�lios da classe A t�m acesso � internet, apenas 61% dos lares das classes D e E disp�em do servi�o.
Al�m disso, 64% da popula��o s� tem acesso � internet pelo celular e a velocidade da internet m�vel brasileira, de 33,92 Mbps (Megabits por segundo) para download, est� bastante abaixo da m�dia mundial de 63,15 Mbps, segundo levantamento da empresa Ookla divulgado em outubro do ano passado, o que tamb�m dificulta a reprodu��o de conte�dos de �udio e v�deo em tempo real.
Bruno Maia, por sua vez, avalia que um caminho poss�vel para a racionaliza��o do mercado brasileiro seria a organiza��o dos times em uma liga, a exemplo dos pa�ses europeus, onde as negocia��es de direitos de transmiss�o s�o coletivas e coordenadas por essas entidades privadas.
Desde mar�o, h� um debate nesse sentido capitaneado pela gestora de recursos XP Investimentos, a consultoria Alvarez & Marsal e o grupo espanhol LaLiga. Mas a forma��o da Liga do Brasil (Libra) est� emperrada por falta de consenso entre os clubes. Os insatisfeitos avaliam que o modelo de neg�cios proposto privilegia os grandes clubes, como Flamengo e Corinthians.
Para o especialista em marketing esportivo, al�m da constru��o de consenso entre os clubes, a redu��o no n�mero de servi�os de transmiss�o tamb�m deve ser um caminho natural.
"O caminho de ter menos players � natural na disputa por distribui��o de conte�do. Isso vale para o cinema, para o jornalismo, para o esporte. Hoje temos muitas plataformas, daqui a cinco, seis anos, devemos ter menos, porque uma vai comprando a outra. Esses neg�cios ir�o acontecer, ent�o tem essa curva de tempo que temos que esperar", afirma Maia.
"� como um funil, l� na frente vai estar tudo mais alinhado e com um produto melhor. Mas estamos no meio desse caminho, ent�o � preciso um pouco de paci�ncia", avalia.
Economia da longevidade
E como ficam os mais velhos nesse mundo de tecnologia em r�pida transforma��o, com avan�o dos servi�os de streaming, card�pios de restaurantes em QR Code, servi�os p�blicos e privados digitais, entre outras novidades que surgem a cada dia?
Layla Vallias, cofundadora da consultoria especializada em consumidores idosos Hype60+, observa que essa � a primeira gera��o de consumidores maduros que est� envelhecendo numa sociedade dominada pelas tecnologias digitais.

"Isso mudou tudo, mudou o envelhecimento, por isso tamb�m envelhecer hoje � completamente diferente do que era antes", diz a especialista em economia da longevidade.
Para Vallias, isso traz efeitos positivos e negativos. Mas, na sua vis�o, as vantagens superam as desvantagens, principalmente pela "janela para o mundo" que as tecnologias hoje representam.
"Os idosos naturalmente ficam mais em casa quando param de trabalhar e se t�m algum tipo de restri��o motora. Assim, a tecnologia possibilita uma janela para o exterior, a pessoa se mant�m ativa mentalmente, participando do mundo", diz a consultora.
Ela observa que a pandemia acelerou o processo de inclus�o digital dos mais velhos, que mesmo antes do isolamento imposto pela crise sanit�ria j� tinham em sua maioria smartphones, utilizando o WhatsApp e redes sociais para se manter em contato com amigos e familiares.
Uma pesquisa realizada pela Hype60+ mostra que 43% dos brasileiros acima dos 50 anos fazem compras online, 70% acessam a internet todos os dias e 95% usam o WhatsApp.
"Os mais velhos se viram, est�o na internet, est�o comprando, consumindo, se relacionando com amigos e com a fam�lia, fazendo cursos online. Tudo isso j� est� acontecendo. Mas falta eles serem considerados na hora do desenvolvimento dos produtos. As empresas precisam pensar que do outro lado da tela pode ter uma pessoa mais velha e n�o s� focar no jovem", diz Vallias, quanto � necessidade de os servi�os digitais serem adaptados a essa fatia crescente dos consumidores.
"A empresa que quiser se manter ou se tornar relevante precisa atender a esse p�blico porque, num futuro muito pr�ximo, todos os neg�cios v�o ser neg�cios da 'economia prateada', porque o Brasil est� envelhecendo num ritmo muito acelerado. E s�o as pessoas mais velhas que t�m dinheiro, muitos domic�lios s�o hoje sustentados por elas e as marcas que n�o levam isso em considera��o v�o perder neg�cio", conclui.
�lvaro Pereira, o comerciante aposentado que tem penado para acompanhar seu time do cora��o, lamenta a sensa��o de isolamento provocada por suas dificuldades com as novas tecnologias.
Mesmo tendo mais entusiasmo pelo S�o Paulo do que pela atual sele��o brasileira, para ele a Copa do Mundo em novembro ser� um al�vio, j� que o torneio poder� ser assistido pela televis�o, sem a necessidade de lidar com os servi�os de streaming por assinatura.
"Al�m da fam�lia e das amizades, que diminu�ram muito, futebol � o que me sobrou."
- O texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62101014
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