Domingos foi um minerador com o corpo fechado. Funcionário da mina Morro Velho, em Nova Lima, numa época em que os desabamentos vitimavam muitos dos que ali trabalhavam, carregava no forro do chapéu uma oração de São Jorge. Obra do filho, Fortunato, devoto do santo guerreiro.
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Domingos se safou de boas, quebrou um só dente quando o elevador da mina despencou com ele e vários colegas dentro. A despeito disso, os anos embaixo da terra cobraram seu preço: morreu cedo, aos 61 anos, do acúmulo do pó das pedras no pulmão.
A artista Luana Vitra não teve tempo de conhecer seu bisavô. Mas a história de Domingos ela conhece bem – é contada desde a infância por seu pai, o marceneiro Jorge (que nome outro Fortunato poderia ter dado ao filho?). “A princípio, eu estava mais interessada em pensar o corpo, porque comecei minha relação nas artes com a dança. Mas, quando comecei as aulas de escultura, foi natural a aproximação com o ferro, por causa de Minas Gerais, e a madeira, pelo meu pai. A paisagem começou a ser uma parte importante para eu pensar o trabalho”, afirma a artista.
Aos 30 anos, Luana Vitra é um dos jovens nomes da arte em alta no cenário da produção contemporânea. Até 28 deste mês, o Sculpture Center, em Nova York, apresenta em sua principal sala a exposição “Amuletos”. A artista considera essa mostra, inclusive pelo peso da instituição, a mais importante de sua carreira. “A artista brasileira que escuta os minerais” foi o título da reportagem com a qual o “New York Times” destacou a obra da mineira – o jornalista Siddhartha Mitter veio a Belo Horizonte conhecer o trabalho de Luana Vitra.
Desejo de mudar
“Algumas coisas são muito voltadas pelo desejo de mudar a forma de olhar o mineral”, afirma Luana a respeito do trabalho em cartaz em Nova York. O material utilizado para a instalação – como o minério de ferro de Brumadinho e a selenita e cianita de Corinto – foi levado de Minas Gerais para os Estados Unidos.
“Na exposição, estou pensando o amuleto a partir da gestualidade e da materialidade. Os nós são um tipo de gesto que estão nos amuletos; penas remetem à repetição. Também observo os fluxos da Terra, como terremotos e vulcões. [O conceito do trabalho] É muito mais científico e filosófico do que religioso. É pensar o espírito como algo a ser estudado e respeitado. E também como a gente altera o tipo de relação com os minerais a partir da maneira que começa a percebê-los”, explica Luana.
Nascida em Contagem, há pelo menos cinco anos Luana não tem moradia fixa. Vive onde trabalha, em muitas das residências artísticas de que vem participando no Brasil e no mundo – “Amuletos”, por exemplo, foi concebida na África do Sul. Tem que encontrar tempo para achar um ateliê em Salvador – decidiu se mudar, em breve, para a capital baiana.
Mas o trabalho vem antes. No primeiro semestre, ela participou da Bienal de Sharjah, nos Emirados Árabes, e fez uma individual no Kunstinstituut Melly, em Roterdã, na Holanda. Em 30 de agosto, abre nova individual, agora na Mitre Galeria, que a representa desde o início da carreira – a individual será na unidade paulista da galeria, inaugurada em fevereiro.
Luana Vitra abrirá exposição em São Paulo, em agosto
Em setembro, Luana viaja para o Sudeste Asiático. Participa da Bienal da Tailândia, que começa em novembro, em Phuket. “A região onde a Bienal vai acontecer foi bastante rica em estanho, que tem importância para a história do lugar. Então meu trabalho vai estar relacionado com esse metal”, ela conta.
Graduada em 2018 na Escola Guignard UEMG, Luana rapidamente ganhou espaços importantes no meio da arte. Ela conta que, no começo, não mostrava seu trabalho. “Quis amadurecer antes de compartilhar. Tinha colocado um limite. Para me formar, eu tinha que ter uma individual pronta. Quando fechei um grupo de trabalhos, vi que estava na hora.” Em 2019, realizou duas exposições em Belo Horizonte: “Corpo rasgado em estado de céu aberto”, na Galeria Periscópio (atual Mitre), e “Carregar o poema nas costas”, no Centro Cultural Sesiminas.
Um divisor de águas ocorreu na Frestas – Trienal de Artes, em Sorocaba, em 2021. “Foi quando fiz minha primeira instalação e provei que dou conta da linguagem. Isso começou a abrir caminhos, pois a linguagem de uma instalação é muito complexa.”
Em 2023, vieram dois outros marcos: a participação na Bienal de São Paulo, com a instalação “Pulmão da mina”, e a obra “Giro”, comissionado por Inhotim. “Eu me dedico muito a tudo, então sinto que uma coisa é resultado de outra”, comenta Luana.