Nova biografia de Machado de Assis destaca sua negritude
‘Machado de Assis, o filho do inverno’, de C.S. Soares, que chega nesta quarta (15/10) às livrarias, faz meticulosa reconstituição da genealogia do escritor
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Machado de Assis nasceu em um ambiente marcado pela pobreza e a exclusão, sob a sombra de um Rio de Janeiro cujo contexto social era brutal: crianças nascidas na pobreza não tinham “garantia de futuro” – afinal de contas, o ano de 1839 intensificou o cerco de epidemias e as tais “febres perniciosas”, confundidas com a tifoide, matavam rapidamente.
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Machado, no entanto, sobreviveu. Viveu os primeiros anos tendo ao lado a figura das “Três Marias”, – a mãe Maria Leopoldina, a madrinha Maria José e a irmã Maria Machado de Assis –, suas primeiras e mais fundamentais referências, conforme mostra C.S. Soares no primeiro de dois volumes da biografia “Machado de Assis, o filho do inverno”. A obra marca a estreia da Ação Editora, braço do projeto carioca Ação Cidadania, fundado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Soares precisou de 15 anos de pesquisa para levar ao leitor particularidades da vida do Bruxo do Cosme Velho. Sempre sob a ótica de que o escritor era homem negro do século 19, constantemente ressalta que o biografado foi um filho da pobreza, cuja negritude foi sistematicamente apagada ao longo do tempo. “Eu me arrisco a dizer que essa biografia se distingue das outras justamente por isso”, afirma o autor.
“Nenhuma outra cogitou abordar o Machado de Assis como um autor negro efetivamente. A gente vê a Lúcia Miguel Pereira [autora de “Machado de Assis. Estudo crítico e biográfico”] se referir a ele como mulato. E só. Queria, então, tentar preencher uma lacuna, investigando como era ser um autor negro dentro de uma sociedade escravocrata”, afirma.
Perfil do Bruxo
Soares traça um perfil completo do bruxo. Discretamente vaidoso, Machado era autodidata. Aos 19 anos, já dominava o francês, idioma que aprendeu sozinho. Nasceu no solstício de inverno e, talvez por isso, adorava o frio. Na infância, aprendeu com o pai a ter medo de ser confundido com escravos.
Foi um enxadrista apaixonado. Supostamente, vendeu balas na porta do colégio de São Cristóvão quando era garoto – ainda há carência de fontes confiáveis que comprovem o fato. E teve 87 pseudônimos ao longo da vida, entre eles, os populares Sileno e Manassés, este último utilizado em textos polêmicos. A estratégia, de acordo com Soares, era desviar a atenção do leitor do corpo negro que escrevia.
Trabalhou na Tipografia Dois de Dezembro, onde entendeu que a escrita precisava “respirar” e que muita coisa poderia ser dita pelo silêncio. Migrou para os jornais em 1854, quando publicou o poema dedicado “À Ilma. Sra. D. P. J. A”, no Periódico dos Pobres – depois, descobriu-se que a destinatária do soneto era Dona Petronilha Júlia de Almeida e Silva, que, posteriormente, serviria de inspiração para Capitu, em “Dom Casmurro”.
Colaborou com os jornais Marmota Fluminense, O Espelho, Correio Mercantil, Diário do Rio de Janeiro, O Futuro e Jornal das Famílias, quase sempre publicando artigos, poesias, contos e críticas de teatro. Somente no Diário do Rio de Janeiro assumiu as funções de redator, revisor e editor. Reza a lenda que chegou a trabalhar como aprendiz de Manuel Antônio de Almeida (autor de “Memórias de um sargento de milícias”) na Tipografia Nacional, mas trata-se de boato.
Soneto para Carolina
“Machado escreveu de tudo, passeou por diversos gêneros literários. E, mesmo na poesia, onde as pessoas dizem que ele não foi tão bom, escreveu aquele soneto lindíssimo: ‘À Carolina’, considerado um dos maiores da língua portuguesa”, destaca Soares.
O primeiro volume da biografia avança pela infância e juventude de Machado, terminando na publicação de “Memórias póstumas de Brás Cubas” no formato de livro, em 1881. Conforme escreve Pascoal Soto no prefácio, “Machado de Assis, o filho do inverno” requer uma “leitura arqueológica, paciente e rigorosa”. São 648 páginas, afinal; e, ainda que exagere no lirismo ao longo da narrativa, Soares tem como maior mérito puxar a genealogia do bruxo tanto pela parte de pai quanto de mãe.
O leitor descobre que existem dois padres na árvore genealógica de Machado. É neste ponto que a biografia demanda leitura arqueológica: Padre Antônio de Azevedo, que oficialmente foi padrinho do pai de Machado, é apontado como avô paterno do escritor; e Padre José Pires dos Santos e Souza é considerado pai da avó paterna de Machado.
Há também a reconstituição do caminho que a mãe de Machado fez na infância, com os pais dela, dos Açores, em Portugal, para o Brasil. “A linhagem materna de Machado é de herança açoriana. Os antepassados maternos cruzaram o Atlântico em direção ao Brasil, motivados por fatores como a busca por paz, futuro, esperança e o impulso que os fez abandonar as ilhas”, comenta Soares.
O lançamento do próximo volume está previsto para setembro de 2026. A narrativa terá como ponto de partida a publicação de “Memórias póstumas de Brás Cubas”, seguindo até a morte de Machado, em 1908. “Ele, no entanto, morreu muito antes. Em 1904, já estava morto, porque foi quando a esposa Carolina morreu e ele entregou os pontos. Começou a ficar bem soturno, falando para todos que estava apenas esperando seu momento chegar”, afirma o biógrafo.
“MACHADO DE ASSIS, O FILHO DO INVERNO”
• De C.S. Soares
• Ação Editora
• 348 páginas
• R$ 129,90