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Estado de Minas IDENTIDADE DE UM G�NIO

Conhe�a o verdadeiro Machado de Assis: negro e cr�tico da escravid�o

Professor da UFMG lan�a livro em que desconstr�i o escritor branco e elitista e revela o afrodescendente que denunciou racismo em suas obras


26/06/2020 04:00 - atualizado 26/06/2020 07:48

Rio de Janeiro, 1838. A capital do Brasil tem 300 mil habitantes, grande parte escrava, est� iluminada por lampi�es a azeite de peixe, tem transporte prec�rio por tra��o animal e ambiente insalubre pelas ruas estreitas. As belezas naturais est�o sufocadas pela falta de higiene.

Apenas quatro canais levam esgotos para o mar e os mangues. N�o existem fossas sanit�rias. Dejetos domiciliares, incluindo fezes, s�o levados para as praias em carro�as ou em ton�is carregados na cabe�a por escravos (os chamados tigres, de quem todos fogem apavorados por causa do cheiro nauseante e do receio de um trope�o ou esbarr�o que pode respingar fezes nos pedestres e nas ruas).

Doen�as epid�micas matam muita gente. Os morros abrigam estabelecimentos militares, ordens religiosas e os ricos, com suas ch�caras e casar�es (os pobres ser�o expulsos para l� apenas a partir da virada do s�culo 19 para o 20). O Morro do Livramento abriga uma grande fam�lia rica de origem portuguesa, com muitos agregados e escravos. Um dia, chega ali o pintor de paredes e dourador Francisco Jos� de Assis, “pardo forro”, de 32 anos, para prestar servi�o.

Logo conhece e se apaixona pela imigrante a�oriana Maria Leopoldina Machado da C�mara, de 26, que veio menina com a fam�lia para o Brasil, costura, borda e faz outros trabalhos como agregada no casar�o. Eles  se casam em 19 de agosto e, 10 meses depois, em 21 de junho de 1839, nasce Joaquim Maria Machado de Assis, que recebe o nome em homenagem aos padrinhos. O garoto ter� inf�ncia pobre e dif�cil, porque a m�e morrer� de tuberculose quando ele tiver 9 anos, e tamb�m sofrer� crises de epilepsia.

Sua educa��o ser� deficiente, mas compensada pelo autoditatismo de um jovem obstinado pelas letras. Essa narrativa resumida em outras palavras � do bi�grafo R. Magalh�es J�nior.

Rio de Janeiro, 1908. Em meio ao alargamento das avenidas e �s medidas de saneamento para combater epidemias, o consagrado escritor Machado de Assis, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras – que revolucionou a literatura brasileira com realismo e forte cr�tica social em obras fundamentais como Dom Casmurro, Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas e Quincas Borba –, acaba de falecer, aos 69 anos, em 29 de setembro.

Apesar da vitalidade de sua obra para escancarar a escravid�o e o racismo e das fei��es afrodescendentes delineadas por sua m�scara mortu�ria, em seu atestado de �bito vai constar que ele era branco. Assim, come�a a constru��o de uma farsa. Branco, elitista, um “europeu heleno”. E mais ainda: na vis�o de seus cr�ticos, indiferente � escravid�o em sua vida e em sua obra.

Durante um s�culo, esse ser� o perfil de Machado de Assis imposto por uma elite branca � cultura brasileira. Afinal, como o maior escritor brasileiro poderia ser afrodescendente num pa�s com racismo estrutural?, indaga o professor Eduardo de Assis Duarte, do Programa de P�s-gradua��o em Letras: Estudos Liter�rios, da UFMG.

Para afastar de vez essa fal�cia biogr�fica e resgatar o Machado verdadeiro, Assis Duarte acaba de lan�ar a terceira edi��o, revista e ampliada, do livro Machado de Assis afrodescendente. Durante cinco anos, ele se debru�ou sobre a obra do escritor carioca para escrever uma antologia completa sobre a afrodescend�ncia machadiana, reunindo cr�nicas, contos, cr�ticas de teatro publicadas em jornais, poemas e trechos de romances sobre o tema. Comp�em a obra tamb�m detalhadas an�lises cr�ticas dos textos de Machado relativos � quest�o �tnica.

O resultado � uma obra brilhante, perene e singular, digna de consulta para o meio acad�mico e essencial tamb�m para o leitor comum sobre a extensa e profunda cr�tica de Machado � elite branca, � escravid�o e a outras injusti�as do seu tempo. Com an�lises concisas e exemplos contundentes, o professor Assis Duarte desconstr�i o perfil branco e europeu de Machado e, mais ainda, o propalado absente�smo em rela��o � escravid�o, ao racismo e ao sistema produtivo reinante.

“Indagar a respeito da por��o afrodescendente de Machado de Assis at� recentemente soava estranho para muitos de seus leitores. N�o s� as literaturas lus�fonas do s�culo 19 foram, desde sempre, consideradas espa�o esteticamente branco, onde pontificam her�is constru�dos a partir de uma perspectiva europeia, portadora quase sempre de uma axiologia crist�, mas, tamb�m a pr�pria tradi��o liter�ria que vige no Brasil nos remete � Europa e n�o � �frica”, diz o professor na obra.

BARBA E BIGODE

Os disparates para camuflar a real identidade de Machado de Assis s�o impressionantes. “Afirmou-se inclusive, que o uso de barba e bigode, quase obrigat�rio entre os homens do seu tempo, teria como objetivo o disfarce dos tra�os negroides. Isso sem falar dos pol�micos retoques para clarear a pele nos est�dios dos fot�grafos da �poca”, lembra Assis Duarte.

“Tais lugares-comuns, somados � aus�ncia de um her�i negro em seus romances, fundamentam em grande medida a tese do propalado absente�smo machadiano quanto � escravid�o e �s rela��es inter�tnicas existentes no Brasil do s�culo 19”, avalia o autor.

Ao longo do s�culo 20, foram cometidos muitos equ�vocos sobre a descend�ncia e a obra de Machado, lembra o professor, principalmente devido ao estilo dissimulado em tratar temas como a escravid�o em sua obra. “De fato, nada mais adverso � escrita de autor-caramujo, especialista em disfarces de toda ordem, do que o projeto de uma literatura mission�ria e panflet�ria”, ressalta.

Afrodescendente em pleno per�odo escravista, escrevendo em jornais lidos pela elite, trabalhando em empregos p�blicos e vivendo de aluguel, era natural que Machado n�o tivesse uma atua��o militante e panflet�ria, ressalta Assis Duarte. Caso contr�rio, certamente, seria perseguido. A op��o, ent�o, veio na fina ironia e na dissimula��o como “autor-caramujo” em suas obras para denunciar a escravid�o.

O livro de Assis Duarte destaca, ent�o, trechos representativos do tema em Ressurrei��o (1872), Helena (1876), Iai� Garcia (1878), Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas (1881), Casa velha (1886), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esa� e Jac� (1901) e Memorial de Aires (1908) e ainda de cr�nicas, contos e poemas de todas as fases da vida de Machado.

Essa edi��o ampliada inclui, inclusive, o conto A mulher p�lida, a curiosa hist�ria de um rapaz que procura a mulher mais p�lida do mundo para se casar, uma s�tira � eterna obsess�o brasileira pela branquitude europeia.

“O tom do discurso machadiano � corrosivo. Engendra contranarrativa ao pensamento hegem�nico da �poca – cuja ideia mestra entronizava o ‘escravismo benigno’ praticado nos tr�picos pelo colonizador � miscigena��o. Tal ideologia se aprimora ao longo do s�culo 20 e prima por construir uma leitura do nosso passado hist�rico em que o tempo do cativeiro surge emoldurado pelo mito da democracia racial – a substituir a brutalidade pela toler�ncia e o rebaixamento do outro pela mesti�agem”, aponta Assis Duarte.

Outro exemplo da postura contr�ria de Machado ao sistema ent�o vigente � o racismo brutal apresentado no conto Pai contra m�e, que mostra como um capit�o do mato (ca�ador de escravos foragidos), obrigado a entregar o filho rec�m-nascido para ado��o por n�o ter como sustent�-lo, captura uma escrava fugitiva e fica indiferente quando ela aborta na sua frente.

Sua rea��o �: “Nem todas as crian�as vingam”. Se isso n�o for den�ncia contra a escravid�o, o que ser�? Essa era a forma de Machado, sem ser militante, denunciar as atrocidades escravistas do seu tempo.

TRECHO DE MEM�RIAS P�STUMAS DE BR�S CUBAS

“Prud�ncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as m�os no ch�o, recebia um cordel nos queixos, � guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na m�o, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – ai, nhonh�! 

– ao que eu retorquia: – Cala a boca, besta! (…) Tais eram as reflex�es que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na pra�a. O outro n�o se atrevia a fugir; gemia somente estas �nicas palavras: –  N�o, perd�o, meu senhor; meu senhor, perd�o!  Mas o primeiro n�o fazia caso, e, a cada s�plica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perd�o, b�bado!

– Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Pare, olhei... Justos c�us! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prud�ncio, o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se e pediu-me b�n��o, perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

– � sim, nhonh�.

– Fez-te alguma coisa?

– � um vadio, um b�bado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda enquanto eu ia l� na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Est� bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois n�o, nhonh�. Nhonh� manda, n�o pede. Entra pra casa, b�bado!”

MACHADO DE ASSIS AFRODESCENDENTE
De Eduardo de Assis Duarte
Editora Mal�
352 p�ginas
R$ 68


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