'Envelhecer não é para gente fresca', destaca Alexandre Kalache
Especialista alerta para o idadismo, defende mudanças na formação médica e aponta os desafios da longevidade em um país marcado por desigualdades
compartilhe
Siga noPrestes a completar 80 anos, o médico gerontólogo Alexandre Kalache é um dos maiores especialistas do mundo em envelhecimento populacional e políticas de longevidade. Ao longo de 50 anos de carreira, foi pioneiro no conceito de Envelhecimento Ativo, quando esteve à frente do Departamento de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, na Suíça, entre 1995 e 2008, e segue como uma das vozes mais influentes na defesa de direitos e cuidados voltados à velhice.
Entre os temas centrais de sua trajetória está o combate ao idadismo, termo que define a prática de discriminar, classificar ou estereotipar pessoas com base na idade, prejudicando sua autoestima, sua saúde física e mental, além de restringir sua participação social e profissional. Para Kalache, enfrentar o idadismo é essencial para que se possa falar em longevidade com dignidade.
Em 2022, o total de pessoas com 65 anos ou mais no país chegou a 10,9% da população, o equivalente a cerca de 22 milhões de indivíduos. O número representa um aumento de 57,4% em relação a 2010, quando esse grupo correspondia a 7,4% dos brasileiros. Os dados do Censo Demográfico 2022 também mostram que, enquanto a população idosa cresce, a de até 14 anos caiu de 24,1% para 19,8%.
Em entrevista durante a segunda edição do Afya Summit, em São Paulo, o especialista comentou sobre os desafios do envelhecimento acelerado da população brasileira, o papel da educação médica, o uso da tecnologia na saúde, os mitos sobre envelhecer e a importância dos “quatro capitais da longevidade”.
Leia Mais
Como a medicina deve se adaptar à era da longevidade para além do foco em doenças, pensando também em qualidade de vida e prevenção?
Educação é a chave. Estamos vivendo uma revolução da longevidade, mas não passamos por uma revolução da educação. Dou um exemplo: apenas 10% das escolas médicas no Brasil oferecem uma disciplina chamada geriatria. Como é que você vai fazer a cabeça do futuro profissional da saúde, se ele não aprende o mínimo em relação ao envelhecimento?
Não se trata apenas de formar mais geriatras, embora haja um déficit enorme. A Sociedade Brasileira de Geriatria estima que precisamos de cerca de 30 mil, mas temos pouco mais de 2.500. Mesmo que conseguíssemos formar 5 mil em dez anos, o déficit aumentaria de 28 mil para 37 mil. É enxugar gelo.
Por isso, é essencial que todos os profissionais da saúde aprendam sobre envelhecimento, já que tudo muda: anatomia, fisiologia, farmacologia, interação entre medicamentos, apresentação das doenças. A formação médica, porém, ainda é centrada em curar, não em cuidar.
A profissão, no caso a medicina, ainda é dominada por homens. No entanto, 55% dos estudantes de medicina são do sexo feminino. A minha esperança é essa, porque as mulheres têm muito mais propensão a cuidar do que nós, homens, que julgamos o verbo cuidar assim: Tu cuidas, ele cuida, ela cuida, vós cuidais. Eu não tenho nada a ver com isso, eu quero ser cuidado.
Nesse sentido, a gente vai dar um salto de 33 milhões de sexagenários, hoje, para, em 2050, passarmos para 68 milhões que representarão 31% da população. Então, é reformularmos a educação, fazendo com que a gente possa aprender a aprender sempre.
Falando desse déficit de profissionais voltados para a população idosa, como integrar a tecnologia nesse cenário?
Não sou contra a tecnologia, mas ela não é um milagre. Sem vontade política e sem uma sociedade civil organizada, ela não resolve problemas como a desigualdade. Pode até ajudar, mas sozinha só torna a mesmice mais sofisticada.
Essa tecnologia pode te dar ferramentas importantes, mas é preciso colocá-las e traduzi-las em políticas que possam ter um impacto na vida. Saúde é criada no contexto do dia a dia, onde você mora, onde você vive, como você trabalha, como você se locomove, como você se diverte, como você anda. Aí a saúde é gerada.
Não é através da tecnologia. E, para isso, é preciso que você tenha esse propósito de corrigir as desigualdades do Brasil, ou nós vamos ficar como uma bolha de suecos que vivem nos melhores bairros residenciais de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de seja onde. E uma imensa maioria que a gente viu na pandemia, que não está vivendo, está sobrevivendo.
Quais são os maiores mitos em torno do envelhecimento que ainda precisam ser superados na sociedade brasileira?
O principal mito vem do idadismo. Vivemos em um país hedonista, em que beleza é sinônimo de juventude. Admirar alguém com mais de 50, 60 ou 80 anos ainda é raro. Esse mito da juventude eterna que, na verdade, sempre acompanhou todas as civilizações tiveram de uma forma ou de outra a busca da fonte eterna da juventude. Este é o mito.
Nós vamos envelhecer e eu quero ter o orgulho de poder envelhecer e me descrever como eu me descrevo: eu sou um velho. Pode me chamar de velho. Eu sou careca, tenho barba branca, uso óculos, tenho rugas que mostram os sabores e dissabores que eu vivi pela vida e tenho orgulho dela.
Mas é importante lembrar: envelhecer bem é o privilégio de uma minoria de um país cercado de desigualdade. O envelhecer bem é você ter autonomia, independência, mas, sobretudo, ter um propósito de vida e um capital social, você poder estar cercado de pessoas que te protejam e que você se sinta seguro, que você possa crescer, se desenvolver, envelhecer num contexto onde você seja amparado.
Envelhecer não é para gente fresca, não. Envelhecer tem perdas. Você perde status e, às vezes, saúde. Você perde entes queridos. Eu sou um médico. A maioria dos meus colegas de turno já morreu. Essas perdas fazem parte. E aí vem aquele samba bem paulista: "Levanta sacode a poeira, dá a volta por cima". Envelhecer é isso. Não espere que você seja o jovem que já foi. E, com os perrengues da vida, “você sacudir a poeira e dá a volta por cima” ou encontra um caminho pelo lado.
Isso se chama resiliência. Você tem que ter reservas para ser resiliente e poder encontrar o caminho pelo lado ou você vai ficar no canto se lamuriando. E aí tem um detalhe: adulto ranzinza é chato, mas velho ranzinza ganha de tudo.
Poderia explicar o conceito dos “quatro capitais da longevidade”?
Quando fui diretor do Departamento de Envelhecimento da OMS, eu recebi uma herança, era um departamento chamado Saúde do Idoso. A primeira coisa que eu fiz foi mudar isso. Vamos falar de um departamento de envelhecimento de saúde. Porque aí todo mundo percebe que tá envelhecendo.
Se você fala da saúde do idoso, você o bota naquele canto e ninguém vai prestar atenção. Se você fala do envelhecimento, tá dando recado que você é o jovem de hoje que aspira envelhecer com os quatro pilares do envelhecimento ativo.
Saúde vem em primeiro lugar. Mas saúde, como eu disse, é criada no contexto do dia a dia, onde você mora, onde você trabalha, se diverte, quando você se diverte, quando você ama. Este capital da saúde é fundamental. Quando não dá certo, você precisa de profissionais bem qualificados para poder lidar com seus problemas.
O segundo pilar é fundamental, você precisa aprender a aprender. A revolução da tecnologia não dá sopa. Se você não aprender, não fizer esse esforço, você vai ser passado para trás. Mas não é individual. Você tem que ter um empregador público ou privado que invista capital humano que você representa. E, num país envelhecido, que envelhece rapidamente, o capital humano é um capital velho, de gente velha, que é o único grupo da população que, desde o ano 2000, continua a crescer. Todos os outros estão regredindo.
Nós somos preciosos. Olhe bem para mim, eu sou precioso, mas você também, porque você aspira a ser a idosa de amanhã. Nós não estamos em guerra intergeracional. A minha aspiração e o propósito de vida é fazer com que o seu envelhecimento seja mais fácil. O terceiro é você ter os direitos. É o pilar dos direitos da participação onde você está inserido na sociedade plenamente. Para isso, você tem que combater o idadismo.
E o último pilar é essa proteção de segurança. De você ter um teto em cima da cabeça e um dinheiro no bolso. E para isso você tem que ser gregário. Eu até digo, seja mais positivo, mais leve, seja mais risível, não seja amargo e junte a tudo isso a um propósito de vida. Você pode ter saúde, conhecimento, dinheiro no bolso e saber do seu direito, mas se te falta um propósito, para que você vai sair da rua? Se você não está 'acrescentando' em nada?
Como convencer um idoso a ir ao médico sem brigas? Muitas vezes, por trás da teimosia está o medo de um diagnóstico.
As mulheres têm uma vida mais agregada, elas conversam mais com os amigos, têm uma familiaridade com os serviços de saúde, porque a maioria teve filhos. Ela começa já menstruando e tem que fazer revisões, checkup, pré-natal, leva para fazer o acompanhamento, tomar vacina. E isso é positivo.
E, elas conversam, as mulheres conversam com o bebê. Homem não. A mim, quando menino, me deram uma pistola para atirar e uma bola para chutar e disseram: “menino não chora”. 60 anos depois, o menino não diz que está com dor no peito porque é sinal de fraqueza. Mas para minha irmã era uma boneca para cuidar.
A cultura do cuidado, ela tem uma dimensão de gênero que é fundamental. E a gente vai ter que prestar atenção nisso. E também melhorar essa questão da solidão do homem. Dos cuidados, mas também de se abrir para o cuidado emocional também. 'Aí, nós somos os machões. Não pode falar de dor, não pode falar de dor'. Se tiver a sorte de ter uma mulher do lado, é ela que vai marcar consulta e vai dizer: "Não, senhor, você tá com essa tossezinha há três semanas, eu quero saber o que é. Já marquei e vou te levar. Puxa tua orelha e leva.
É preciso mudar a cultura e abraçar a ideia de que a vida é mais parecida com uma maratona do que com uma corrida curta. Na maratona, você não sabe o que vai encontrar no caminho: perdas, barreiras, imprevistos. Por isso, deve criar reservas, ser resiliente e fortalecer seu capital social para não cair nos horrores do envelhecimento, como a solidão.
Quando eu nasci, a expectativa de vida era 45 anos; hoje, nós estamos próximos a 78. Eu escapei, eu sou um sortudo, mas a maioria dos meus familiares já morreu. É outra história, a gente tem que revisitar o passado para poder exercer o presente e para ter um futuro.
O futuro do século 21 é o envelhecimento rápido, inexorável, com imensas desigualdades. Eu estou envelhecendo bem, tenho saúde, conhecimento. Ninguém vai me passar para trás, por enquanto.
As instituições de longa permanência ainda carregam um estigma no Brasil, muitas vezes associadas ao abandono. Como o senhor avalia o papel dessas instituições na era da longevidade?
O copo está meio cheio e meio vazio. O estigma ainda existe, mas vem diminuindo. Há 10 ou 15 anos era muito mais difícil para uma família admitir colocar um idoso em uma instituição.
O problema é que a estrutura familiar mudou: famílias menores, urbanização, mulheres no mercado de trabalho. E qual é o espaço que essa pessoa idosa, dependente, vai encontrar? Acaba abandonado dentro de casa. Mas a família fala: "não, eu não vou botar minha mãe no asilo de jeito nenhum". Gente, para muitas pessoas idosas, o melhor lugar é estar protegido.
Agora, a gente tem que melhorar a qualidade dessas LPI's, porque as ruas são fábricas de lucro. Os donos de algumas LPI's privadas não estão interessados em nada mais do que ganhar dinheiro. Essa briga só vai ser vencida na hora que a classe média perceber que para muitos a solução é a institucionalização.
Hoje quem pode pagar para uma instituição tem grana, mas isso reflete o machismo daqueles que são responsáveis pela política no geral. São homens. Homem no Brasil é horrível, porque o velho é sempre o outro, não tem nada a ver comigo. Por que que eu vou sofrer?
A profissão médica está se feminizando muito rapidamente. A maioria dos estudantes de medicina são de sexo feminino. A minha esperança é que vocês mulheres deem uma sova nesses homens poderosos.
Eu sou membro da Academia Nacional de Medicina (ANM) - instituição que tem quase 200 anos e há um ano e meio uma primeira mulher (Eliete Bouskela) foi eleita presidente. Mas, no entanto, 95% dos membros da Academia Nacional de Medicina são velhos como eu, mas isso vai mudar. Na hora que as mulheres atingirem uma certa idade como médicas, você inevitavelmente vai ter a pressão na forma de pensar.