Uma viagem de mais de 90 quilômetros, atravessando estradas sinuosas, é o que separa um morador de Santo Antônio do Rio Abaixo de um atendimento médico especializado ou de urgência. Com pouco mais de 1,8 mil habitantes, o pequeno município da Região Central de Minas Gerais está entre os que têm uma proporção de médicos abaixo do ideal recomendado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que indica 3,5 médicos por mil habitantes.  

A cidade integra o contingente de 44% de municípios mineiros que convivem com um índice inferior a um médico por mil habitantes, conforme dados segmentados pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas, com base em números do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). O estado só tem 69 municípios dentro da meta da OCDE, ou seja, 8% das prefeituras.

Até a última atualização do SUS, feita em abril, Santo Antônio do Rio Abaixo aparecia como se não tivesse nenhum médico registrado. Por lá, no entanto, como constatou a reportagem em visita à cidade, há duas médicas atendendo na unidade básica de saúde.

Essa falha no cadastro mostra que parte da desigualdade da saúde no Brasil também passa pela falta de monitoramento de políticas públicas, muitas vezes baseadas em dados mantidos pelo poder público. 

Mesmo com essas duas médicas, Santo Antônio do Rio Abaixo ainda fica aquém da meta da OCDE, com uma taxa de 1,1 médico por habitantes. Essas profissionais ainda precisam se desdobrar entre consultas agendadas, como é parte do Programa de Saúde da Família (PSF), que atua na esfera da saúde preventiva, fora as demandas de urgência e emergência.

Por ser a única porta de entrada do município, a atenção primária carrega nas costas o papel de pronto-socorro, mesmo sem estrutura para isso, já que o hospital mais próximo dali fica em Itabira, a quase duas horas de viagem pela BR-381, a “rodovia da morte”. 

“A gente também não pode abandonar a comunidade, já que é a única unidade de portas abertas. Atendemos tanto as consultas programadas, agendadas, como a demanda espontânea, aquele paciente que chega passando mal e só tem aqui para ser atendido. A gente oferece um suporte de primeiro atendimento de urgência até o nosso limite”, diz a enfermeira coordenadora do PSF, Josiane Fernanda de Souza, em entrevista ao EM.

Esteja o paciente com uma virose ou um câncer, o acesso ao sistema de saúde começa ali, na unidade básica. Pela estruturação do SUS, esse primeiro atendimento deveria ser garantido por ao menos três especialidades médicas: clínico geral, pediatra e ginecologista, com posterior encaminhamento para especialistas.

Em média, o posto de saúde de Santo Antônio do Rio Abaixo atende entre 15 e 20 pacientes por dia, fora a demanda espontânea, que inclui desde quedas e febres altas até casos que deveriam ser atendidos em ambiente hospitalar.

A peregrinação por atendimento especializado é parte da rotina dos moradores. José Aparecido de Oliveira, de 57 anos, conhece bem o caminho. Diagnosticado com artrose nos pés e nos joelhos em 2019, uma sequela do trabalho braçal que exerceu por anos, precisou fazer várias viagens até Itabira para conseguir sua primeira cirurgia, feita no pé esquerdo. Agora, precisa de uma nova operação, desta vez prevista para ser marcada em Belo Horizonte, mas que segue sem data e hospital definidos.

 “O pé ainda tá torto. O médico falou que vou ter que mexer de novo, arrumar o joelho e depois a coluna. O ruim é esperar marcar, né? Mas, resolvendo, tá bom demais”, afirma.

Alta demanda

Encaminhar pacientes em situação de urgência tem se tornado um desafio constante para cidades pequenas como Santo Antônio do Rio Abaixo. A estrutura limitada das unidades de referência não suporta a demanda em períodos de alta, como a recente explosão de casos de doenças respiratórias. Com os leitos de Itabira superlotados, o posto de saúde não tinha para onde enviar seus doentes. 

“Tivemos um paciente que ficou entubado aqui. Ele ficou quase 24 horas aguardando a transferência, porque não tinha vaga. A gente estabiliza, mas não conseguimos manter ele aqui por muito tempo, precisa encaminhar para a Itabira e tem situações que é negado. Também por falta de espaço lá”, diz a enfermeira coordenadora da unidade, Josiane Fernanda de Souza.

A demanda cotidiana na unidade é intensa, impulsionada, em parte, por uma cultura de cuidado mais próxima das unidades de saúde.

“Em grandes centros urbanos, se você tem uma dor de cabeça, você vai na farmácia e compra uma dipirona, mas na cidade do interior não. Eu vou no posto e vou consultar. Então, tem essa questão cultural também, eles procuram mais. Tem ainda o paciente que não tem nada de físico, nada de doença, mas tem um lado emocional. Ele vem à unidade para conversar. Isso tudo aumenta muito a nossa demanda. Se você for avaliar um médico para mim antes, ele daria conta, mas a nossa demanda é alta. E a gente sente que vem crescendo cada vez mais essa demanda espontânea”, conta Josiane.

Com os gargalos no sistema e a sobrecarga dos hospitais de referência, municípios menores se veem obrigados a assumir um papel para o qual, muitas vezes, não estão estruturados. 

“A gente tem que se equipar e preparar, porque está cada vez mais difícil encaminhar. A gente não pode encaminhar sem contato. Mesmo sendo porta, referência, hoje tem que fazer contato, e se não tem a vaga não dá para mandar. E aí o que eu faço com meu paciente que está aqui? Eu tenho que dar suporte para ele”, afirma Athaise Julia de Oliveira, secretária municipal de saúde de Santo Antônio do Rio Abaixo, ao citar uma ambulância equipada com unidade móvel para casos de emergência.

Parte da solução, para a enfermeira coordenadora da unidade básica, passa pela reorganização da rede ainda dentro do próprio município, com a presença de pelo menos outros dois médicos exclusivos para os atendimentos mais críticos. 

“Não só médicos, a gente precisa de mais espaço. Nosso prédio hoje não comporta. É tudo muito bem estruturado, mobiliário, mas o espaço físico é bem pequeno”, aponta. Ela também destaca a necessidade urgente de ampliação dos leitos em Itabira, cidade-polo que, sobrecarregada, tenta dar conta da demanda de mais de 20 municípios da região. Sem essa retaguarda fortalecida, a engrenagem do atendimento segue travando onde deveria fluir.

Mesmo com o reforço de dois médicos, como defende a coordenadora do PSF, o município seguiria abaixo da recomendação da OCDE, que indica 3,5 médicos por mil habitantes. Ainda assim, dobraria a taxa atual, que hoje é de apenas 1,1.

O DataSUS mostra a gravidade da desigualdade no estado: 14 cidades mineiras estão listadas como não tendo sequer um médico registrado. Outras 28 contam com apenas um profissional disponível para toda a população.

Sindicalista analisa

Para o secretário-geral do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG), Marconi Soares de Moura, não existe um padrão único de quantitativo ideal, mas ele reforça que a ausência total de equipe médica é “inadmissível”. 

Ele pondera que indicadores internacionais, como os da OCDE, devem ser interpretados com cautela, já que desconsideram diferenças regionais, estruturais e sociais dentro de um mesmo estado e até mesmo município. 

“A mesma média usada em uma região mais desenvolvida do estado, não pode ser usada em áreas de maior vulnerabilidade social. Mesmo dentro de uma região metropolitana, você vai ter áreas mais ou menos vulneráveis do ponto de vista social, econômico e de saúde”, aponta.

Além da quantidade, o perfil do profissional também importa. “Não adianta ter um monte de médicos, todos eles serem cardiologistas, e não ter ginecologista”, exemplifica. 

Outro aspecto apontado por ele é a necessidade de entender por que tantos municípios não conseguem atrair profissionais. Muitas vezes, a explicação está na própria fragilidade da estrutura local.

“Se o município tem limitações estruturais, impossíveis, não tem condição de pagar um profissional, não tem condição de manter uma estrutura mínima para atendimento. Cabe pensar por que esse município é responsável por gerir isso então. A nossa municipalização é muito irresponsável. Você emancipa municípios com 3.500 habitantes, e ele mal consegue manter a sua máquina funcionando, que dirá prover saúde, educação e segurança”, afirma.

Sem recursos

A escassez de médicos e estrutura está diretamente ligada à dependência de dinheiro do caixa municipal. Sem orçamento suficiente, muitas vezes o atendimento de saúde só é mantido com ajuda pontual de emendas parlamentares ou repasses da Câmara Municipal. “A gente tem uma grande dificuldade, que a maior parte é recurso próprio. Tentamos várias vezes pelo Mais Médicos para a gente conseguir algum aqui na região para dar esse suporte. Não conseguimos”, diz Athaise Julia de Oliveira, secretária municipal de saúde de Santo Antônio do Rio Abaixo. 

A solução encontrada foi contratar plantonistas extras para garantir cobertura mínima por 24 horas e evitar a sobrecarga da equipe regular em situações de maior demanda, como festas e eventos em que a população flutuante cresce.

Na ausência de uma rede robusta própria, a cidade também se apoia no Consórcio Intermunicipal de Saúde do Centro Leste (Ciscel-MG), que se tornou referência regional na realização de consultas, exames e cirurgias. 

“A gente conta também com esse apoio porque, realmente, só pelo SUS não dá. A população não fica desassistida”, diz Athaise. Enquanto os casos direcionados a Itabira costumam ser resolvidos com mais agilidade, os encaminhamentos para Belo Horizonte, diz a chefe da pasta, enfrentam a longa fila da regulação estadual. “Quando a gente precisa encaminhar para BH, aí demora um pouco mais, porque é referência para o estado todo, é muita gente”.

Cidade vizinha

A poucos quilômetros dali, Itambé do Mato Dentro, cidade ligada a Santo Antônio do Rio Abaixo por uma estrada de terra, investiu na construção de um centro de especialidades com o objetivo de aproximar os serviços da população. 

“Antes a gente não conseguia trazer quase nenhum especialista para cá, primeiramente porque a gente não tinha estrutura”, lembra a secretária municipal de saúde Alexsandra Maria Chaves. Desde que o espaço foi inaugurado, já foram realizados cerca de 13 mil atendimentos em um ano, todos casos que antes exigiam deslocamento para outros municípios.

Itambé do Mato Dentro, assim como sua cidade vizinha, também consta no sistema do SUS como não tendo nenhum médico, apesar de ter três profissionais contratados no posto de saúde local – outro exemplo da fragilidade dos dados disponíveis para monitoramento do governo federal.

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Especialidades como neurologia ainda seguem indisponíveis no município, mas a meta, segundo a secretária de saúde, é ampliar cada vez mais os atendimentos locais para reduzir o número de pacientes que precisam viajar. 

“Muitas pessoas não vão ter condições de viajar, não vão ter dinheiro para fazer um lanche na outra cidade. Então, estamos em busca de cada vez mais para a gente ajudar tanto a nossa saúde aqui quanto a de vários outros municípios perto”, diz Alexsandra.

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