Bocaiúva – A perda de água é um dos problemas enfrentados nos sistemas de abastecimento, que, além dos prejuízos financeiros para os operadores do serviço, prejudica o meio ambiente e deixa de atender a população, especialmente a mais vulnerável. Dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa), gerido pelo Ministério das Cidades, mostram que 50 prefeituras mineiras (se não visualizar a tabela abaixo, clique aqui) desperdiçam ao menos a metade da água produzida já na distribuição, com o caso mais alarmante concentrado em Paiva (Mata), onde 89% do líquido “vai para o ralo” antes de chegar ao consumidor.

O impacto do desperdício é maior em áreas que convivem com a escassez hídrica. É o caso de Bocaiúva, no Norte de Minas, terra natal do sociólogo Herberth de Souza (1925/1997), o Betinho, que se notabilizou pela campanha contra a fome. De acordo com o Sinisa, a perda de água na distribuição é de 53,4% no município, onde o saneamento básico é administrado pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE).

A “perda” propriamente dita é atribuída ao volume que, por alguma razão, é retirado da rede de abastecimento, sem passar pelos hidrômetros dos consumidores. As causas do desperdício vão desde a depreciação e falta de conservação de tubulações antigas até captação de água clandestina por usuários, sem passar pelos medidores, os chamados “gatos”.

Em Bocaiúva (de 40 mil habitantes), são 15 mil ligações de água e esgoto. Um dos motivos do índice elevado de perda no sistema de abastecimento hídrico da cidade é que a tubulação é antiga, instalada há cerca de 50 anos. Parte dela, foi feita com fibrocimento (amianto) e sempre apresenta rompimento, gerando constantes vazamentos. Há locais na cidade em que o índice de perda na rede de água chega a 75%.

De acordo com o engenheiro civil Rafael Silva Rodrigues, responsável pela operação do abastecimento, ainda existem consumidores no município que recebem a água em casa sem nenhum medidor. Por isso, não há pagamento pelo serviço nem controle, o que já existia antes da criação da autarquia. São os chamados imóveis “pena d’água”.

O SAAE já cadastrou 482 imóveis na cidade na condição de “pena d’água”, visando à instalação dos hidrômetros. Uma situação curiosa é que Bocaiúva sedia uma fábrica de hidrômetros, a Saga, criada há 18 anos e que divulga em seu site que já fabricou e vendeu mais de 4 milhões de medidores para 3 mil clientes em todo Brasil.

Em muitos imóveis da cidade os hidrômetros foram instalados há mais de 30 anos. Devido à depreciação pela ação do tempo, alguns registram um volume inferior à real quantidade de água tratada que chega aos imóveis atendidos. Trata-se da chamada “ submedição”. “Existem medidores antigos com ineficiência de quase 80%”, diz o engenheiro do SAAE de Bocaiúva, ressaltando a necessidade de substituição dos equipamentos. Fora isso, ainda existem as fraudes, com as ligações clandestinas.

Fonte da água

Atualmente, segundo o SAAE, 60% da água que abastece Bocaiúva é retirada de poços tubulares e outros 40% vêm da Barragem do Ribeirão Onça, inaugurada em 1988, na gestão do falecido prefeito Wan-dik Dumont. A represa fica situada a 40 quilômetros de distância da cidade, em um ponto mais alto, o que permite que a água seja conduzida até a área urbana por gravidade.

Quando a barragem do Ribeirão do Onça foi construída, também se instalou uma tubulação no sistema para levar água do reservatório ao então distrito de Guaraciama, que foi emancipado em janeiro de 1997. Mesmo independente, Guaraciama continuou recebendo água “enviada” por Bocaiúva – e o volume destinado ao antigo distrito entra na conta das perdas do SAAE. Nessa prefeitura “mais nova”, o índice de desperdícios do Sinisa é de 21%.

Outro lado

O prefeito de Bocaiúva, Roberto Jairo Torres (Avante), o Robertão; e o presidente do SAAE, Helder Goudinho, afirmam adotar diversas medidas que visam reduzir as perdas no sistema de abastecimento de água da cidade. Entre as providências em andamento estão o uso de software para controle geral dos volumes de água captada e tratada e a quantidade que chega aos consumidores; a substituição das antigas tubulações e dos medidores; e a instalação de novos hidrômetros.

Além disso, citam o combate direto às ligações clandestinas, sendo que as pessoas que cometerem as fraudes, além do pagamento de multas, podem responder a ações judiciais.

Planejamento

Rogério Siqueira, vice-presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), afirma que os desafios são grandes para o setor superar o desperdício de água sistêmico. “Fui gestor do SAAE de Ponte Nova (Mata). Eu peguei o órgão em 2013 perdendo 55% da água. Em um ano e meio, eu saí de lá com um resultado de 25% de desperdício (hoje, o índice da cidade é de 16%, segundo o Sinisa). A experiência que tenho indica para um planejamento em gestão com foco naquilo que precisa ser feito”, diz.

Apesar das melhorias, Rogério afirma que o saneamento básico precisa ser encarado com maior seriedade no Brasil. “Imagine se uma empresa privada perde 25% do produto dela? Seria um absurdo. Quando falamos de água, isso não é absurdo, porque há um abandono histórico e uma má intenção da própria sociedade. Temos duas realidades muito distintas nessas fraudes: as pessoas que desviam por necessidade e as indústrias que roubam o poder público”, afirma o gestor da Abes.

Segundo o especialista, a receita para resolver o problema do Brasil passa pelas diretrizes apontadas no Marco Civil do Saneamento, que estabelece o ano de 2033 como meta para universalizar o acesso à água e ao esgoto tratado no País. “A principal evolução necessária é em pessoal. Não temos técnicos, profissionais para atuar em todas as cidades. Por isso, temos que racionalizar esse pessoal. Consórcios intermunicipais, os chamados blocos de saneamento, podem fazer a diferença nesse sentido”, explica.

A união entre cidades em blocos maiores pode facilitar, até mesmo, a concessão desse serviço à iniciativa privada. Em Minas, hoje, seis municípios são atendidos exclusivamente por empresas sem ligação com o poder público. Nelas, a perda de água na distribuição é de 31,2%, enquanto nas autarquias esse dado sobe para 32,9%.

A principal diferença na prestação do serviço fica por conta do atendimento da população: a iniciativa privada leva água tratada para 90% dos seus habitantes sob contrato, enquanto as autarquias atendem 83,2% e a Copasa 62,1%.

“Ao mesmo tempo, isso não quer dizer que sou favorável à privatização da Copasa. Na verdade, não sou contra nem a favor. O que defendo é a prestação do serviço com qualidade. A Copasa é uma empresa pública pertencente a todos os mineiros, construída a duras penas pela sociedade ao longo dos anos. É preciso muito debate sobre isso”, afirma Rogério Siqueira.

“Não fazemos essa distinção na Abes, porque temos empresas privadas bem e mal operadas, o mesmo vale para as públicas. A Copasa, na minha visão, é uma empresa referência. Pode melhorar? Claro. Mas, todo o sistema pode sempre prestar um melhor serviço aqui ou ali”, completa.

Em nota à reportagem, a Copasa contestou os números do Sinisa. Segundo a empresa, nos 637 municípios atendidos por ela, o índice é de 99% de atendimento da população. 

Investimento

A Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) anunciou, na semana passada, que investirá R$ 3,7 bilhões no combate às perdas de água em Belo Horizonte e Região Metropolitana (RMBH). O Sinisa aponta que oito municípios da Grande BH desperdiçam mais do metade da água produzida, sendo eles: Esmeraldas (50,7%), São José da Lapa (51,5%), São Joaquim de Bicas (52%), Betim (54,4%), Santa Luzia (56,8%), Ribeirão das Neves (57,7%), Vespasiano (58,9%) e Sabará (63%).

"São ações para redução de vazamentos, fraudes nas ligações (gatos) e defasagem de hidrômetros. O plano ambicioso prevê a aplicação de R$ 3,7 bilhões até 2033, para reduzir o índice e melhorar a gestão dos recursos hídricos na região", informou a companhia.

Procurada pela reportagem, a Copasa informou que adota novas tecnologias, com uso de imagens de satélites e da inteligência artificial, no combate e redução de perdas na distribuição de água. As inovações são usadas em Montes Claros (414,3 mil habitantes), onde foi implementado o “Plano de Combate à Perda de Água” em 2020. De acordo com a companhia, após um período de rodízio decorrido da crise hídrica, o percentual de perdas de água na cidade, que era de 54% em 2020, atualmente, caiu para 37%.

A engenheira de sistemas da Copasa, Alessandra Porto, responsável pela gestão de perdas da gerência regional da Copasa em Montes Claros, destaca que a diminuição de perdas de água na cidade contribui com o enfrentamento da seca histórica que castiga a região.

"A redução das perdas traz muitos benefícios para a população. Um exemplo que a gente pode citar é a maior disponibilidade da água, especialmente nos períodos de seca e de alta demanda. E também a garantia de um abastecimento contínuo e confiável. Além disso, a redução dos gastos da companhia com produção e distribuição da água, eles podem refletir nas tarifas mais justas para os consumidores finais", afirma Alessandra.

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A companhia de saneamento também informa que “incorporou algoritmos de inteligência artificial para identificar padrões anômalos de consumo e pressão, permitindo a detecção precoce de vazamentos invisíveis. “O monitoramento em tempo real de Distritos de Medição e Controle (DMCs) possibilita intervenções rápidas e precisas, o que reduz significativamente o desperdício”, esclarece.

Sobre o uso de imagens de satélites, a Copasa esclareceu que a tecnologia “permite uma análise ampla e não invasiva, otimizando os recursos e direcionando equipes para os pontos críticos com maior assertividade”. Além disso, a companhia informa que, entre outras medidas, realiza a substituição de redes antigas por novas tubulações em Polietileno de Alta Densidade (PEA), “material que oferece maior resistência a vazamentos, durabilidade e flexibilidade”.


Perdas de água na América Latina

1.Costa Rica      51,87%
2.Uruguai          50,16%
3.Peru               40,77%
4.Equador          39,94%
5.Panamá          39,93%
6.Argentina        39,74%
7.Brasil              37,78%
8.Chile               31,36%
9.Bolivia             27,8%

Fonte: Sistema Nacional de Informações de Saneamento (Sinis/2022)

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