NOSSAS DESIGUALDADES

Quem vive neste lugar de Minas fica até três semanas sem água

O EM foi até Cristália, no Norte de Minas, para mostrar como a falta de abastecimento afeta a rotina de famílias em vulnerabilidade, especialmente na zona rural

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Cristália – A  cadeirante Leila Ludmila tem uma doença rara e enfrenta a dificuldade de acesso à água potável diariamente. A família dela precisa buscar o líquido fundamental para a vida do ser humano a uma distância de quatro quilômetros. O sacrifício é encarado porque o córrego que passa perto da casa é impróprio para o consumo.  Maria Aparecida conta que, antigamente, havia fartura em uma área de nascente, cortada por um riacho, no fundo de sua moradia. Mas, com o passar do tempo, o terreno secou completamente, e hoje também padece da escassez hídrica. Já o lavrador Nilson da Silva reclama que no período chuvoso precisa limpar a fossa séptica do quintal de sua casa, diante da falta de rede de esgoto, enquanto a mulher dele, Viviane Sena, sofre com a falta de água para lavar roupa.

Os personagens citados acima, moradores da zona rural de Cristália, no Norte de Minas, são protagonistas de uma das maiores desigualdades brasileiras: a dificuldade de acesso ao saneamento básico pelas populações dos municípios mais pobres. Dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa), gerido pelo Ministério das Cidades, mostram que o município tem cerca de metade de sua população com abastecimento de água (51,3%), porém esse dado é zerado para o recorte rural – na área urbana é de 96,7%, um retrato evidente da assimetria social no alcance ao direito. A mesma fonte aponta para 184 prefeituras onde o abastecimento é inferior a 50% da população (se não conseguir visualizar o mapa abaixo, clique aqui).

Made with Flourish

Cristália, com 5,12 mil habitantes, registra um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,583, na posição 810 entre as 853 cidades mineiras, segundo o Programa das Nações Unidas o Desenvolvimento Humano (PNUD/2010). A realidade demonstra que a meta para garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos, um dos 17 Objetivos Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) da Agenda 2030 das Organizações Nações Unidas (ONU), ainda é um grande desafio profundo para o Brasil.

A dificuldade de saneamento básico é um peso a mais para a agrônoma Leila Ludmila Mendes, de 32 anos, e para a sogra dela, Maria Aparecida Alves Martins, de 53. Leila perdeu os movimentos das pernas e enfrenta outros sintomas há 14 anos, desde que foi diagnosticada com neuromielite óptica grave, uma doença rara autoimune, que não tem cura. Maria Aparecida Alves Martins, também há 14 anos, trata de um câncer de mama e está com metástases nos pulmões e no cérebro. Uma vez por semana, acorda durante a madrugada, por volta das 3h, e se desloca por 163 quilômetros de ambulância para ser submetida a tratamento com quimioterapia em Montes Claros.

Ao lado do sítio, onde a agrônoma reside com a sogra e mais quatro pessoas da família, passa o Córrego Boa Sorte. Porém, a água do manancial é imprópria para o consumo – tem excesso de ferro (ferruginosa), é ácida e apresenta cheiro ruim. Por essa razão, a família precisa apanhar água potável na sede urbana de Cristália, a quatro quilômetros do sítio.

Leila relata que os moradores vão até a cidade para buscar água potável três vezes por semana, em média, fazendo transporte com carro próprio. A tarefa é cumprida pelo marido dela, Willian Gomes Martins; e pelo sogro, Milton Gomes Rodrigues. Os dois armazenam o líquido dentro de casa em garrafas pet.

A mulher reclama que a falta de água potável perto de casa complica mais ainda a vida dela e a da sogra, devido aos problemas de saúde que enfrentam. “Como temos pouca mobilidade, a gente depende muito de outras pessoas para ir atrás da água”, afirma. Mesmo cadeirante, Leila trabalha no plantio de manga da família. Fez uma inovação, usando um quadriciclo adaptado para pessoas com deficiência para os deslocamentos dentro da área de cultivo.

Além da dificuldade de acesso à água para o consumo humano, a família de Leila e Maria Aparecida recorre a fossas sépticas diante da falta de rede de esgoto. Os dados do Sinisa mostram que somente 28% da população de Cristália têm os rejeitos tratados – percentual que é nulo na zona rural e atinge cerca de metade da área urbana.

A agrônoma disse esperar que um dia a realidade possa mudar por conta dos investimentos do poder público em saneamento na área rural. “Quem enfrenta algum tipo de doença necessita de um cuidado, de uma água melhor e de rede de esgoto, para ter uma saúde melhor. A gente precisa de mais higiene e mais limpeza”, desabafa.

Quilombo

Na comunidade quilombola do Bateeiro, na zona rural de Cristália, cerca de 120 famílias de sitiantes e donos de chácaras são abastecidas pela água de um poço tubular, aberto pela prefeitura. O problema é que o volume da vazão do poço não é suficiente para atender todas as demandas, o que sacrifica aqueles localizados em pontos mais distantes e elevados.

Às vezes, eles enfrentam a falta de água para necessidades básicas, como lavar roupas. É o caso da moradora Viviane Gonçalves Sena, de 33. “Para lavar roupa, eu preciso ir na casa da minha mãe (também moradora da localidade), que usa água de cisterna”, diz. Ela é mãe de três filhas, sendo uma delas a pequena Esmeralda Bianca, de quatro meses, cujos cuidados exigem maior consumo do líquido.

O lavrador Nilson Pereira da Silva, marido de Viviane, alega que, diante da ausência de rede de esgoto, recorre a fossa séptica aberta no quintal da casa. O problema é que todo ano, quando cai chuva com maior intensidade, a fossa enche e ele precisa limpar o reservatório, retirando os resíduos que são transportados e despejados em um local na natureza (sem receber nenhum tipo de tratamento), longe de casa, por causa do mau-cheiro.

A família de Junior Rocha de Arruda mora em um ponto mais alto da região do Bateeiro, onde o acesso à água é ainda mais difícil. Ele conta que sua família já ficou até três semanas sem receber o recurso hídrico na torneira, tendo que recorrer ao caminhão-pipa da prefeitura para ser abastecida.

Tempos idos

Para retratar a realidade e as desigualdades no saneamento básico, o ESTADO DE MINAS percorreu diversas localidades da zona rural de Cristália, alcançando áreas de difícil acesso, devido à condição  geográfica do município, situado numa região de relevo acidentado, na Serra Geral (Cordilheira do Espinhaço). Uma das personagens visitadas pela reportagem foi  a aposentada Maria Aparecida Dias, de 75 anos, que mora na comunidade de Bateeiro 2,  numa casa, onde  só é possível chegar  depois de percorrer, a pé ou a cavalo,   cerca de   200 metros (onde carro não passa)  de uma trilha entre a residência e uma estrada vicinal. A  mulher relata que, no passado, tinha água com fartura em um pequeno rio e em um “brejo” (área de nascentes) no fundo da casa dela.

Numa prova real dos impactos das mudanças climáticas, o que era abundância virou escassez. O riacho e o brejo vizinhos da residência da idosa secaram completamente.

“A nossa dificuldade para conseguir água é muito grande mesmo. Antigamente, aqui tinha muita água, uma riqueza. A água era corrente, muito boa mesmo. (Aqui) tinha até peixe. A gente plantava arroz (no terreno do brejo). Agora, acabou tudo”, afirma a mulher.

Maria Aparecida conta que um filho dela abriu uma cisterna no local para garantir o seu abastecimento. “Ele pensou que conseguiria água boa. Mas, a água da cisterna é suja e tem um cheiro ruim. Não dá pra gente beber não”, lamenta.

A aposentada recebe em casa a água captada em uma nascente em uma área de serra nas proximidades do seu terreno. Mas, como a vazão é muito pequena, tenta economizar ao máximo e reza para a fonte não secar durante a estiagem, que tem o seu período crucial entre os meses de agosto e outubro, antes da chegada da nova temporada de chuvas na região.

Associação de olho


O presidente da Associação Comunitária dos Moradores e Pequenos Agricultores Familiares Quilombolas do Baixo Bateeiro e Contendas, José Gomes Pereira, o “Seo” Zezinho, afirma que, como efeito da histórica estiagem que castiga a região, muitos córregos e rios do município secaram nos últimos anos. “Com isso, muitas famílias estão sofrendo com a falta d’água para beber e para as necessidades de suas casas”, afirma o líder comunitário. Para piorar, mananciais que ainda correm na região tem a água imprópria para o consumo, exemplos dos córregos Boa Sorte, Contendas, José Ferreira e do Duro.
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Zezinho também lembra que, com a ausência de rede de esgoto, outro problema enfrentado pelos moradores da zona rural, as fossas sépticas, além de gerar problemas de saúde, acarretam danos para o meio ambiente. “Muitas fossas estão perto dos rios, para onde vão os resíduos”, diz.

O saneamento básico impulsiona o êxodo rural na região. “Muitas pessoas acabam indo para a cidade porque lá, mesmo tendo outras dificuldades, ao menos há acesso à água de qualidade para beber”, afirma Seo Zezinho. “Os governantes precisam olhar mais as comunidades rurais", conclui ele.

Outro lado

O prefeito de Cristália, Jairo de Matos Borges (Progressistas), reclama que os pequenos municípios sofrem com a falta de recursos para investimentos em redes de água e esgoto nas comunidades rurais. “Tratando de uma situação tão complexa, que é saneamento básico, a gente sabe que não se consegue resolver o problema da noite para o dia. Mas, eu acho que se tivesse um aporte (financeiro), um investimento maior por parte dos nossos governos, tanto estadual como federal, eu creio sim que a gente tinha condições de amenizar os problemas e (diminuir) o sofrimento dessa parte da população”, diz ele.

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Por outro lado, Jairo informou que está na expectativa de melhorar abastecimento de água e esgoto sanitário das comunidades rurais do município por meio do Programa Água dos Vales, parceria público-privada (PPP) da Copasa, que visa ampliar o acesso ao saneamento básico nos vales do Jequitinhonha e Mucuri e em parte do Norte de Minas. A companhia pública atende a área urbana de Cristália.

Ele afirma que a prefeitura está atenta em relação ao abastecimento hídrico e, durante o período crítico da seca, atende cerca de 23 comunidades rurais do município por meio de caminhão-pipa.

Quanto à reclamação dos moradores da região de Bateeiro, Jairo Borges alega que existem sitiantes da comunidade que usam água do poço tubular para outros fins, além do consumo humano, como a irrigação de plantações. Por isso, em determinados períodos, a vazão do poço torna-se insuficiente para o atendimento de todos os habitantes da localidade.

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