
“Anjinho”, “fofinha”, “coitadinha”. Voc� provavelmente j� ouviu essas palavras quando era crian�a, acompanhadas de um tom de voz infantil. Mulheres com defici�ncia segue ouvindo isso mesmo depois que se tornam adultas. Mas essa infantiliza��o vai al�m, atravessa relacionamentos, trabalho e maternidade, tornando-se tamb�m viol�ncia sexual.
Mesmo sendo 25,8 milh�es de mulheres com defici�ncia no pa�s, ou quase 14% da popula��o (de acordo com dados do �ltimo censo do IBGE), elas ainda encaram diversos estere�tipos: se sentem inferiorizadas, preteridas, solit�rias e, principalmente, infantilizadas. T�m que provar a todo tempo seus valores e suas habilidades; deixar claros seus desejos e ang�stias; buscar por amores muitas vezes n�o correspondidos, ou carregados de preconceitos. Lutam dia a dia por um espa�o que n�o lhes � dado, e est�o cansadas.
Abuso e fetichiza��o at� dentro dos relacionamentos
H� uma estimativa de que 40% a 68% das mulheres com defici�ncia sofrer�o viol�ncia sexual antes dos 18 anos, conforme um estudo do Fundo de Popula��es da Na��es Unidas (UNFPA). Inclusive, das sete mulheres entrevistadas para essa mat�ria, seis relataram j� ter sofrido ass�dio ou abuso sexual.
As estat�sticas mostram apenas a ponta do iceberg: o estere�tipo infantil faz com que essas mulheres sejam abusadas, assim como as crian�as tamb�m s�o, al�m de serem por (muitas) vezes fetichizadas. Curiosamente, a palavra “infantil” vem do latim infantia, ou seja, “pessoa que n�o � capaz de falar”. No caso das mulheres com defici�ncia, isso perpetua o estigma da incapacidade e gera uma rela��o de domin�ncia extremamente problem�tica.
Esse tipo de "hierarquiza��o" acontece tamb�m nos relacionamentos amorosos. Entre heterossexuais, o homem �, muitas vezes, visto como “dominante”, necess�rio para cuidar dessa mulher e ajud�-la a ter poder de decis�o.
Como consequ�ncia dessa domina��o, a din�mica dessas rela��es � normalmente marcada por muita inseguran�a, solid�o e medo. “Melhor n�o desperdi�ar, � dif�cil achar parceiro”, “voc� n�o pode escolher, tem que ficar com quem te quer” - s�o frases que as mulheres ouvem constantemente.

“Meu �ltimo ex-namorado disse que queria terminar comigo porque n�o iria esperar a minha m�e morrer para ter que cuidar de mim. Foi uma das coisas mais violentas que eu j� ouvi na minha vida”, afirmou Fernanda Vicari dos Santos, 40 anos.
“As pessoas enxergam os nossos companheiros como muito benevolentes ou at� mesmo como cuidadores”, disse Fernanda. Ela � mulher preta, pobre e perif�rica e possui distrofia muscular, uma doen�a degenerativa progressiva, que a faz usar cadeira de rodas h� 10 anos.
No fundo da prateleira
“Elas s�o sempre colocadas numa posi��o de coitadas ou como exemplos de supera��o, que as mant�m � margem da sociedade”, explicou a psic�loga N�via Rocha, especialista em g�nero e com experi�ncia em atendimento � mulher com defici�ncia.
A pesquisadora Valeska Zanello usa um conceito chamado “prateleira amorosa” para explicar a tend�ncia que temos de pegar o que est� mais f�cil na prateleira – e, no caso do amor, as posi��es alcan��veis s�o de pessoas padr�es, brancas, magras, olhos claros etc. E as mulheres com defici�ncia se sentem sempre ao fundo da prateleira, em que � preciso pegar uma escada para alcan�ar.

B�rbara Manzano, 28 anos, � jornalista e possui Diplegia Esp�stica, uma defici�ncia motora leve que afeta o equil�brio, e foi causada por uma les�o neurol�gica logo ap�s seu nascimento prematuro, com seis meses e meio. Por conta disso, ela utiliza um andador, carinhosamente batizado de “Babi M�vel”. B�rbara j� sofreu viol�ncia dom�stica do pai e teve um relacionamento amoroso abusivo de quase dois anos. “Descobri que ele zombava da minha defici�ncia para os amigos”, contou.
Dentre os estere�tipos mais comuns, ela conta que j� se sentiu infantilizada e foi chamada de “anjinho”. Apesar de ser muito comunicativa e se relacionar com muitas pessoas, B�rbara confessa que sua vida amorosa sempre foi dif�cil. “Muitas mulheres com defici�ncia vivem em um isolamento social e se sentem sozinhas, como eu me sinto.”
Recentemente, B�rbara se rendeu aos aplicativos de relacionamento. Conheceu um rapaz com o qual conversou e que a elogiou muito, mas quando ela contou sobre a sua defici�ncia, a bloqueou. “Eu n�o esperava. E isso me fez questionar todas as minhas rela��es anteriores.”
Maternidade negada
No churrasco de fam�lia, quando todas as mulheres casadas s�o questionadas sobre maternidade, a mulher com defici�ncia nem sequer entra na pauta da conversa. A� entra outro estere�tipo da infantiliza��o: o de que essas mulheres n�o podem ser m�es, de que n�o s�o capazes de suportar uma gesta��o fisicamente, e nem de cuidar de uma crian�a. Ou ainda, aquele pensamento autom�tico de que a crian�a vai nascer com a mesma defici�ncia.
“Parentes muito pr�ximos falaram na minha cara que, por eu j� precisar de cuidador, seria um ‘peso’ para as pessoas ao meu redor se eu tivesse um filho e precisasse de ajuda para cuidar da crian�a tamb�m”, recordou Ana Raquel P�rico Mangili, 27 anos, servidora p�blica que tem defici�ncias m�ltiplas – Distonia Generalizada e Defici�ncia Auditiva bilateral severa.
Hoje ela n�o tem vontade de ser m�e, e considera que o ambiente em que cresceu moldou esse desejo. E n�o � para menos! Como considerar a maternidade em meio a tantos julgamentos e falta de estrutura?
At� a medicina e o sistema de sa�de t�m a sua parcela de culpa. Das 606 maternidades p�blicas do Brasil, nenhuma est� adaptada para gestantes e pu�rperas com defici�ncia visual, e menos de 8% est�o adaptadas para mulheres com defici�ncia auditiva, mostrou um estudo feito no ano passado pela Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Universidade Federal do Maranh�o.
No mercado de trabalho � dif�cil entrar e pior ainda crescer
O capacitismo e a infantiliza��o trazem a ideia de que essas mulheres s�o inaptas para liderar. A psic�loga N�via aponta que o pensamento � errado � de "se elas n�o conseguiram cuidar nem de si mesmas, logo tamb�m n�o seriam capazes de tomar decis�es ou se impor.”
� muito comum que as pessoas com defici�ncia estejam em cargos administrativos, normalmente sem perspectivas de crescimento. E a rela��o de desigualdade de g�nero se mant�m: apenas 36% dos trabalhadores com defici�ncia que possuem v�nculos formais s�o mulheres, segundo a Rela��o Anual de Informa��es Sociais de 2017, do Minist�rio do Trabalho e Emprego.

Helo�sa Rocha, 37 anos, � jornalista e trabalha h� 13 anos na R�dio Gazeta. Ela possui osteog�nese imperfeita, popularmente conhecida como “ossos de vidro”, em grau 3 - um dos mais graves. Por conta disso, utiliza cadeira de rodas. Tamb�m tem baixa estatura, escoliose, os membros superiores s�o curvos e ela teve fraturas no �tero da m�e.
Helo�sa faz quest�o de deixar bem claro os seus privil�gios como mulher branca e de boas condi��es financeiras, que teve acesso � educa��o e recursos.
A maior dificuldade dela enquanto mulher com defici�ncia foi no trabalho. “Tive que correr muito atr�s das oportunidades”, falou. Conheceu o seu atual chefe quando cursava mestrado, foi escalada para fazer uma reportagem para a r�dio e depois foi ganhando mais espa�o. Helo�sa tamb�m � modelo e usa seu perfil no Instagram para falar de moda e inclus�o.
Com a pandemia da Covid-19, o cen�rio no mercado de trabalho piorou. Em S�o Paulo, a taxa de pessoas com defici�ncia demitidas, em 2020, foi duas vezes maior do que a de pessoas sem defici�ncia, de acordo com a Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Defici�ncia.
A servidora Ana Mangili que o diga: “Minha principal forma de comunica��o � atrav�s de leitura labial. Como vou fazer leitura labial para entender os outros se todos est�o utilizando m�scaras?” Passou a depender de um acompanhante para sair de casa.