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Estado de Minas VOTO FEMININO

Feministas evang�licas se unem para combater o fundamentalismo religioso

Mulheres que romperam com o conservadorismo, mas permanecem na f�, conciliam pol�tica e feminismo


23/08/2022 14:36 - atualizado 23/08/2022 15:14

Ilustraçaõ de mulheres com megafone
(foto: AzMina)

 
Thay� Amaral, de 28 anos, foi expulsa da igreja Crist� Evang�lica do Brasil, mas n�o desistiu da vida religiosa que marcou toda sua inf�ncia e juventude. Nas reuni�es de fam�lia, sempre havia um louvor, um testemunho ou algu�m da liturgia, fazendo parte das conversas.  “Eu nasci no que a gente chama de lar crist�o.” Uma minoria em 1994. Hoje, o DataFolha registra que s�o 30% de evang�licos no Brasil, e eles s�o alvo de disputa pelos pol�ticos nas elei��es de 2022.

Ainda nos primeiros anos, Thay� estudava em uma escola no fundo da comunidade de f�, na cidade de Goi�nia, em Goi�s. Durante os cultos, o pastor sempre separava um trecho do discurso para dizer que os fi�is n�o deveriam se sentar na roda dos escarnecedores. Para os adultos, esse era o lembrete de que eles eram diferenciados e, por isso, n�o deveriam se misturar com pessoas que n�o pertenciam � comunidade. Para as crian�as, o esc�rnio estava at� mesmo nos anivers�rios infantis que tocavam a m�sica da Xuxa, febre nos anos 90. “Era a demoniza��o do que eles chamam de mundo”. 

Essa separa��o do “bem” contra “o mal” e do “n�s” contra “eles”, comum em algumas igrejas, foi usada por Jair Bolsonaro para se eleger em 2018, e segue sendo estrat�gia para insistir no cargo em 2022 com a ajuda da primeira-dama, Michele Bolsonaro. Desenhando inimigos imagin�rios, como a ideologia de g�nero, e falando que precisa proteger os valores tradicionais da fam�lia, ele mira nas mulheres evang�licas – que s�o 60% dos brasileiros que professam essa f�, de acordo com o DataFolha. A publicit�ria Thay� est� entre elas, mas est� longe de ser a eleitora que o candidato � reelei��o espera. 

A CONSTRU��O DO MOVIMENTO

Retrato de Simony dos Anjos sorrindo
Simony dos Anjos, secret�ria executiva da Rede de Mulheres Negras Evang�licas, concilia f� e feminismo (foto: Arquivo pessoal)
Foi em 2018, com a elei��o de Bolsonaro e dois anos depois da presidente Dilma Rousseff ser retirada do cargo executivo, que boa parte do movimento feminista evang�lico brasileiro come�ou a se organizar em coletivos. “Rolou uma explos�o de manifesta��es, uma resposta ao fundamentalismo”, diz a antrop�loga Simony dos Anjos, secret�ria executiva da Rede de Mulheres Negras Evang�licas. Na �poca, muito se falava sobre o impeachment ter ocorrido porque Dilma era mulher e as discuss�es sobre g�nero come�aram a ganhar o cen�rio com for�a. “A esquerda entendeu que precisava conversar com a ala evang�lica”, destacou Simony.

�s v�speras de uma nova elei��o presidencial (2022), Simony acredita que Michele Bolsonaro � a pessoa que tem conseguido se comunicar mais diretamente com a base evang�lica. “Ela [Michele] diz que ora todo dia na cadeira do marido para ele ser um homem melhor e isso � exatamente a mesma coisa que a mulher evang�lica faz pelo companheiro”, exemplifica Simony. Assim, al�m da identifica��o com a atual primeira-dama, o voto em Bolsonaro seria, tamb�m, um “gesto de f�.”, explica a antrop�loga. � como se, ao ver que a ora��o de Michele foi atendida, convertendo Bolsonaro em um homem bem-sucedido e bom, essa mulher religiosa tamb�m pudesse crer que as preces dela, em rela��o ao pr�prio companheiro, tamb�m seriam.

Olhar para as igrejas como uma realidade � parte da sociedade, segundo Simony, foi um dos erros que o movimento pol�tico de esquerda cometeu. “O evang�lico � trabalhador, ele estuda, ele precisa de UBS (unidade b�sica de sa�de). Qualquer discuss�o social e pol�tica vai ter efeitos na igreja”. Diferentemente do que por muito tempo se acreditou, os temas pol�ticos ganham os p�lpitos e pautam o comportamento das diferentes comunidades de f�. “A igreja n�o � uma bolha”. N�o � toa, Simony ressalta que a Rede de Mulheres Negras e Evang�licas nasce em 2018, mesmo ano em que Bolsonaro se elegeu.  

CAMINHOS DE DI�LOGOS

V�rias das principais bandeiras da campanha de Bolsonaro, como a flexibiliza��o do uso de armas, n�o convencem as evang�licas. “Muitas perderam seus filhos assim [assassinados]”, aponta Simony. Ent�o, � preciso dizer que quando ela vota no Bolsonaro, ela est� votando a favor das armas.” 

Quando o assunto � cuidado e prote��o � fam�lia, a Covid escancarou os problemas na gest�o da sa�de p�blica, que levaram os pobres e pretos a morrerem mais. As demandas por aten��o e sobreviv�ncia est�o represadas nessa popula��o e, por isso, a fome e o pr�prio desrespeito �s mulheres tamb�m s�o portas de entrada para conversar com a comunidade evang�lica que � diversa e n�o representa um voto �nico. 

Feministas evangélicas
Odja de Barros n�o se abst�m de pautas como aborto e viol�ncia dom�stica e leva o debate para as mulheres evang�licas (foto: Arquivo pessoal)
 
A Rede de Mulheres Negras Evang�licas se articula formando lideran�as que sejam capazes de levar o feminismo para dentro de seus territ�rios. “Eu preciso que essa mulher entenda que Deus � m�e, porque se Deus fosse pai, no contexto brasileiro, seis milh�es de pessoas n�o t�m o nome do pai na certid�o”, afirma Simony. E respeitar a f� dessas mulheres � fundamental para que o di�logo seja efetivo. “Quando essa mulher, negra, sozinha vai reconhecer o corpo baleado no IML, quem t� com ela l�? Deus.” 

DESINFORMA��O NOS GRUPOS RELIGIOSOS

Dentre as coisas que assombraram as mulheres evang�licas nas �ltimas elei��es, Simony recorda a amea�a de que a vit�ria do ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva levaria ao fechamento das igrejas, uma not�cia falsa criada por grupos bolsonaristas, repetida exaustivamente. E esse � o tipo de coisa dif�cil de desconstruir quando espalhada em massa. “N�s somos 70 mulheres negras que est�o nos seus territ�rios nas cinco regi�es do Pa�s se comunicando com as suas bases.” O movimento � potente, mas precisa de apoio. “Enquanto n�s temos um grupo de WhatsApp, o Edir Macedo tem uma TV, n�?”.

H� uma produ��o de desinforma��o em andamento para atingir especialmente mulheres evang�licas, afirma Magali Cunha, pesquisadora do Instituto de Estudos da Religi�o e editora geral do Coletivo Bereia – Informa��o e Checagem de Not�cias. As not�cias falsas, focadas nesse p�blico, tendem a se concentrar em ideologia de g�nero nas escolas, erotiza��o de crian�as e persegui��o religiosa a crist�os – a chamada “cristofobia”. Al�m disso, o j� conhecido “kit gay”.  “A ideia � impactar essa mulher que quer salvar a fam�lia”, explica Magali. 

O trabalho do Coletivo, no combate �s fake news religiosas, se intensificou no fim de agosto de 2022, na mesma intensidade que o volume desse conte�do aumentou. “A transmiss�o vem, principalmente, por parte de lideran�as evang�licas e cat�licas de grupos conservadores aliadas ao bolsonarismo.” Mas n�o � s� o compartilhamento que gera preocupa��o. “Na produ��o vemos algumas lideran�as: o deputado Marco Feliciano, a pastora e ex-ministra Damares Alves e o pastor Silas Malafaia”, conta. 

Olhar para isso � importante porque para 13,2% dos evang�licos, os pastores e irm�os representam a fonte mais confi�vel de not�cias. � o que indica um estudo publicado em 2021 sobre desinforma��o e evang�licos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da qual Magali participou. Foi a partir dessa pesquisa que o “Coletivo Bereia” nasceu. Entre os evang�licos entrevistados, 77,6% afirmaram que j� receberam not�cias falsas em grupos relacionados a sua igreja. 

Diante desse cen�rio, o grupo analisa not�cias que circulam em m�dias religiosas, assim como conte�dos voltados � religi�o, e carimba os fatos com avisos de: verdadeiro, impreciso, enganoso, inconclusivo e falso. “Projetos [jornal�sticos] de checagem existem muitos no Brasil, mas nenhum voltado para o que circula sobre religi�o em ambientes religiosos”, destaca Magali. 

IGREJA CURVADA AO BOLSONARISMO

Retrato de Agnes Alencar sorrindo
A historiadora Agnes Alencar defende uma leitura da B�blia, a partir da hist�ria das mulheres (foto: Arquivo pessoal)
A historiadora Agnes Alencar, de 34 anos, se considera feminista e evang�lica, mas rompeu com a igreja Batista depois da elei��o de Bolsonaro. “Vi todos se curvarem diante dele.” Ao n�o se encontrar mais naquele espa�o, decidiu produzir o EBDcast – Escola B�blica Dominical -, um podcast para contar hist�rias da B�blia em que mulheres s�o protagonistas. Um dos primeiros epis�dios traz a hist�ria das parteiras que aparecem em �xodo, no antigo testamento. “Elas fizeram um movimento de desobedi�ncia civil, porque o Fara� mandou matar os primog�nitos e elas n�o s� n�o mataram como inventaram desculpas”, conta Agnes. 

Para ela, as evang�licas feministas precisam ser vistas como parte importante da luta das mulheres. “Ela pode nunca ter lido Simone de Beauvoir e, ainda assim, entender que o marido dela n�o tem direito de bater nela, que o corpo � dela”, aponta Agnes, que vive a experi�ncia religiosa desde a inf�ncia. “Eu sou a quarta gera��o de evang�licos.” 

Para escrever os epis�dios do podcast, Agnes se inspira na teologia feminista, que tem a miss�o de fazer a leitura de textos sagrados, entre eles a B�blia, a partir de uma perspectiva feminista. “Quando voc� � criado na igreja, voc� aprende a ler a B�blia como seu pastor te ensina. Certamente, eles n�o t�m uma leitura neutra.”  

Se dentro do universo eclesi�stico, Agnes costumava comentar esses assuntos para uma turma de at� dez pessoas, no podcast as reprodu��es chegam a 5.000. A maior parte dos ouvintes � de mulheres. Agnes n�o foge de assuntos como homofobia, racismo e igualdade de g�nero, e o foco n�o est� em quem est� fora da igreja, mas dentro dela. “Quero que elas escutem o epis�dio e construam com a gente uma outra forma de ler a B�blia, porque isso influencia como eu vou agir politicamente no mundo”.

FEMINISTAS CRIST�S

Retrato de Thayo Amaral sorrindo
Thay� Amaral criou o grupo %u201CFeministas Crist�s%u201D para falar sobre a luta por igualdade com quem compartilha da mesma f� (foto: Arquivo pessoal)
Quando, aos 14 anos, Thay� Amaral foi estudar em uma escola do Rio de Janeiro, encontrou um mundo diferente. Descobriu que o desconforto ao escutar que uma mulher n�o podia ser pastora, tinha um nome: machismo e passou a estudar sobre a luta organizada das mulheres. De volta a Goi�nia, permaneceu como professora da Escola Dominical, mas foi repreendida pelo pastor por dizer ao seu aluno que ele podia brincar com uma bola rosa, pois todas as cores eram feitas por Deus. 

Sem pertencer a uma igreja, ela criou a comunidade “Feministas Crist�s” – hoje com 5.000 pessoas no Facebook. E o estalo pra isso veio quando se sentiu ofendida com um coment�rio sobre evang�licos dentro de um grupo de feminismo na internet. Ela conta que sentia a necessidade de afirmar, quase o tempo todo, que nem todos eram do mesmo jeito. “A gente n�o tem abertura nem na igreja nem no feminismo para conversar sobre as nossas faltas”, desabafa.  

Por muito tempo os temas mais discutidos no grupo das Feministas Crist�s eram: homossexualidade, submiss�o e sexo antes do casamento. Mas om a elei��o de Bolsonaro, a situa��o pol�tica tamb�m tomou conta do debate. Thay� acredita que � poss�vel desidratar as ideias do bolsonarismo com o mesmo instrumento que ele usou para se fortalecer entre as mulheres evang�licas: a b�blia. 

Parte da estrat�gia seria mostrar para fi�is que ainda est�o ao lado do presidente as diferen�as entre o Deus crist�o e quem afirma represent�-lo. “Jesus ficou na frente de uma mulher que ia ser apedrejada”. Ela reivindica visibilidade e o apoio de outras vertentes do feminismo para espalhar a mensagem, mas percebe que essa uni�o ainda est� longe de acontecer.  

DISPUTA POR NARRATIVAS

� preciso lembrar tamb�m que o feminismo evang�lico n�o � um grupo homog�neo. H� quem j� esteja familiarizada com a luta das mulheres h� mais tempo, assim como h� fi�is que est�o entrando em contato com o assunto pela primeira vez. No coletivo Evang�licas pela Igualdade de G�nero, “h� quem ache que aborto � pecado mas � a favor da descriminaliza��o, e tem outras que j� s�o engajadas na luta”, conta Izabel Louren�o, que faz parte da coordena��o do grupo em Minas Gerais. Elas consideram importante se abrir para as diferen�as, por isso investem na aproxima��o com essas integrantes. “A gente tem curiosidade de entender de onde vem essa mulher, sem condenar, mas trazendo fatos”, afirma Izabel.  

Retrato de Odja de Barros
Odja de Barros � doutora em teologia, pesquisadora e pastora, leva o feminismo para dentro das comunidades de f�, e se tornou refer�ncia (foto: Arquivo pessoal)
Quando o assunto � a teologia feminista dentro das igrejas evang�licas, Odja de Barros, 50 anos, � uma das maiores inspira��es para as novas gera��es. Nascida em Sergipe, aos 20 anos, ocupava um cargo de lideran�a dentro da Igreja Batista do estado, pertencente � Conven��o Batista Brasileira. Ela j� vinha estudando sobre a import�ncia do protagonismo das mulheres na estrutura religiosa, e o impacto que isso poderia ter na pr�pria comunidade a levou a assumir o lugar de pastora. 

Odja precisou ser estrat�gica para levar o feminismo ao p�lpito. “N�o trouxe primeiro com esse termo porque haveria uma rejei��o de primeira, ent�o comecei falando de g�nero.” Na �poca, a direita conservadora crist� ainda n�o tinha inundado o debate com ‘a tal ideologia de g�nero’.  “Se fosse hoje, n�o daria.”  

O primeiro passo que ela deu foi convidar um grupo de “fi�is” para fazer um estudo dos textos sagrados. O interesse foi geral. “Elas diziam que nunca tinham ouvido falar da B�blia a partir das mulheres.” Em segundo lugar, com o grupo, Odja criou uma revista, escrita pelas pr�prias participantes, e, junto com elas, deu o nome de Flor de Manac� – uma �rvore resistente, caracter�stica que Odja reconhece nas mulheres nordestinas. “Voc� v� elas dizendo: ‘ah, eu sou uma Flor de Manac�’, e ela na verdade t� dizendo ‘eu sou feminista’, do jeito dela de dizer”, indica. 

Doutora em teologia e pesquisadora na Igreja Batista do Pinheiro, em Macei�, no Estado de Alagoas, Odja n�o se abst�m de pautas como direitos reprodutivos e sexuais. Mas, quando tenta espalhar a mensagem para outras comunidades de f�, ainda enfrenta muitos obst�culos. � que isso amea�a o poder de quem est� usufruindo daquele espa�o, daqueles privil�gios, explica Odja, por isso � t�o dif�cil acessar outros lugares.  A maioria das mulheres que comp�em o seu minist�rio � branca e de classe m�dia – recorte racial que predominou na maior parte dos grupos e coletivos ouvidos pela reportagem. 
 
Reportagem original no link

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