
Das 1023 propostas legislativas relacionadas aos direitos das mulheres apresentadas por parlamentares do Senado e da C�mara Federal entre 2019 e 2022, 514 s�o sobre viol�ncia de g�nero – que inclui viol�ncia contra a mulher, sexual, pol�tica e feminic�dio. E 22% dessas propostas foram consideradas desfavor�veis por organiza��es que atuam no combate � viol�ncia contra a mulher.
Entre as solu��es mais propostas, se destacam aquelas que buscam punir os agressores ou armar as v�timas para que se protejam. Os n�meros s�o resultados da nova edi��o do ranking Elas no Congresso, projeto da Revista AzMina – e mais 19 institui��es parceiras – que classifica parlamentares e partidos brasileiros de acordo com sua atua��o frente aos direitos das mulheres.
Apesar da centralidade da pauta, muitas solu��es sugeridas nos Projetos de Lei da �ltima legislatura tratam o tema com pouca profundidade ou desconsideram a complexidade de normas que j� existem, como a Lei Maria da Penha (LMP). Um quarto delas (104) t�m abordagens punitivistas. Assim como no ranking publicado em 2020, esta parcela das propostas demonstra o pouco conhecimento dos parlamentares sobre os problemas reais que as brasileiras enfrentam.
FEMINISMO E DIREITOS HUMANOS SEM INTERMEDI�RIOS
Dos mais de mil PLs analisados, 198 tentam alterar ou propor desdobramentos a partir da pr�pria Lei Maria da Penha, cujo texto � considerado refer�ncia internacional, como a gente j� mostrou aqui. O levantamento mostra que 37,15% dos projetos tentam reescrever um conjunto de normas que, na verdade, deveria estar recebendo outro tipo de aten��o: a de garantir que a LMP n�o fique s� no papel.
Quem acompanha as mulheres v�timas de viol�ncia no Brasil defende que a lacuna n�o est� na legisla��o, mas na efetiva��o dela. “H� poucos servi�os e equipamentos p�blicos destinados � mulher em situa��o de viol�ncia. Como exemplo, podemos citar a Casa da Mulher Brasileira, que existe em pouqu�ssimas capitais, e vem perdendo recursos ao longo dos anos”, relata a mestra em Direito Vanessa Foga�a Prateano, que pesquisa criminologia feminista.
Um aspecto que n�o � o foco da Lei Maria da Penha, mas muitos parlamentares insistem em tensionar, � a puni��o aos agressores – o que vale tamb�m para outros projetos de lei analisados. Neste per�odo, 20,2% dos PLs sobre o tema propuseram cadeia, multas e outros tipos de san��es como solu��es para promover a seguran�a das mulheres.
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“Algumas dessas medidas s�o fruto do populismo penal, outras s�o paliativas que minoram o problema. Obviamente, nenhuma delas consegue prevenir e erradicar essa epidemia de viol�ncia. Apenas atitudes que ataquem a raiz do problema v�o de fato evitar novos casos. Investimento em servi�os e equipamentos de acolhimento � mulher, com pol�ticas p�blicas que permitam a ela conquistar autonomia, al�m de educa��o de g�nero, � que poder�o mudar esse cen�rio, e n�o apenas remedi�-lo”, explica Prateano.
Segundo a pesquisadora, al�m de serem pouco efetivas de fato na preven��o de viol�ncia, as tentativas de mudar a LMP t�m outro efeito: criam a impress�o de que ela � uma norma ruim, o que n�o � verdade. “Que mensagem que passamos a uma mulher em situa��o de viol�ncia quando a lei � constantemente modificada? De inseguran�a jur�dica, de que um dia a lei pode proteg�-la e no dia seguinte, j� n�o proteger mais. Na verdade, o que deixa as mulheres brasileiras em situa��o de vulnerabilidade � n�o coloc�-la em pr�tica”.

L�MINAS E ARMAS DE FOGOS PARA AS V�TIMAS
Com informa��es controversas e pouco amparo do Estado, as mulheres que precisam de prote��o ficam ainda mais vulner�veis. Apesar de algumas das propostas pedirem a revoga��o ou impedimento ao porte de armas para pessoas com hist�rico ou den�ncia de viol�ncia contra a mulher, outras v�o no caminho contr�rio: prop�em que as pr�prias v�timas tenham acesso a l�minas e armas de fogo.
Ao avaliar uma dessas proposi��es – que disp�e sobre o porte de armas de mulheres que est�o sob medida protetiva – o Coletivo Mana a Mana refor�a que isso n�o vai necessariamente ajudar a preservar seus direitos. “Estudos mostram que a presen�a de armas de fogo, independente de a quem perten�am, colocam a mulher em perigo”.
A l�gica que prop�e armar a popula��o para aumentar a seguran�a n�o � aplicada somente no combate � viol�ncia contra a mulher. O atual governo brasileiro, com o respaldo de parte do Congresso, incentiva o armamento da popula��o tanto no discurso, quanto por meio de medidas institucionais. Nos �ltimos quatro anos, foram dezenas de altera��es propostas � Lei do Desarmamento e projetos de lei como o pol�mico PL 3.723/2019, na tentativa de modificar as regras para registro e porte de armas de fogo e facilitar o acesso a colecionadores, atiradores esportivos e ca�adores (CACs). N�o � toa, o n�mero de armas registradas no pa�s no per�odo triplicou.
Por outro lado, a pr�pria popula��o discorda de recorrer �s armas para combater a viol�ncia. Pesquisa recente mostra que mesmo entre os homens, essa solu��o � rejeitada por 63%, enquanto, entre as mulheres, 82% recusam a ideia de que armar os cidad�os seja positiva para o Brasil.

Uma explica��o para a for�a dos discursos armamentista e punitivista na �ltima legislatura � o aumento do n�mero de deputados militares ou de origem militar – atualmente, s�o pelo menos dois senadores e 20 deputados com prefixo de major, delegado, capit�o, coronel, sargento ou general. “A vis�o dessas pessoas sobre o combate � viol�ncia � muito espec�fica, e muitas mulheres eleitas tamb�m v�m desses nichos”, lembra a doutora em Ci�ncia Pol�tica e docente do mestrado profissional em Poder Legislativo do Centro de Forma��o, Treinamento e Aperfei�oamento da C�mara dos Deputados (CEFOR), Cristiane Brum Bernardes.
O grande volume de propostas voltadas para o combate � viol�ncia tamb�m tem uma justificativa estrat�gica. Esse � um dos poucos pontos de converg�ncia entre parlamentares de diferentes espectros pol�ticos, al�m de ter boa repercuss�o entre os eleitores. “Essa � uma preocupa��o generalizada. Perpassa as diferen�as de partidos, � um tema sobre o qual h� algum consenso. Ainda que nem sempre concordem com as san��es, concordam que � necess�rio um ambiente mais saud�vel para que as mulheres possam atuar politicamente”, detalha a professora.
“SOBROU” AT� PARA OS M�DICOS
Por outro lado, a palavra “consenso” nem passa perto das delibera��es do Congresso Nacional quando o assunto � aborto. Em uma legislatura extremamente preocupada com os �teros alheios, foram 191 projetos distribu�dos entre as tem�ticas de maternidade, licen�a-maternidade, direitos sexuais e reprodutivos e, especificamente, aborto. Somente sobre este �ltimo, foram 55 PLs.
A segmenta��o de abordagens reflete a pol�mica em torno do tema no Brasil. Foram 20 projetos somente com o objetivo de sustar portarias e resolu��es de �rg�os como o Minist�rio da Sa�de. Outras 17 tentaram estabelecer ou aumentar a pena para as mulheres e seus parceiros, estupradores e, at� mesmo, para terceiros que contribuam com a interrup��o de uma gesta��o indesejada, atingindo diretamente os profissionais de sa�de.

Al�m de incorrer em mais punitivismo, estes projetos promovem retrocesso na discuss�o sobre a descriminaliza��o do aborto e afetam at� mesmo as mulheres autorizada a abortar legalmente.
Hoje, o aborto volunt�rio � proibido no Brasil, exceto em tr�s situa��es: gesta��o fruto de estupro, risco de morte para a m�e e anencefalia do feto. Mas na pr�tica, h� muitos obst�culos invis�veis, mas s�lidos, � sua realiza��o. Quem explica � a a m�dica ginecologista e obstetra Rosaura de Oliveira Rodrigues, presidenta do Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres de Santa Catarina (CEDIM/SC) e integrante da Rede Feminista dos Direitos Sexuais e Reprodutivos. “Quase n�o h� acesso, n�o h� informa��es dispon�veis, Muitas s�o impedidas de terem seu direito garantido, mesmo quando h� o respaldo da lei. Com a legisla��o que temos, somada � desinforma��o, � desmotiva��o, e � inseguran�a que temos tamb�m pelo lado dos profissionais, conseguir encontrar um lugar com estrutura, tecnologia e disposi��o da equipe para realizar o procedimento � muito dif�cil”.
Propor cada vez mais resolu��es, portarias e projetos de lei que dificultem a interrup��o da gravidez de forma legal � uma estrat�gia dos grupos conservadores anti-aborto, que usam o ativismo legislativo para intimidar as pessoas envolvidas, n�o apenas as mulheres e meninas afetadas. “Tenho desconhecimento de que algum m�dico ou enfermeiro que tenha sido preso por realizar um aborto legal, mas nem todo mundo sente confian�a nisso. Projetos de lei que punem profissionais da sa�de s�o uma forma de intimida��o de trabalhadores que, pela desinforma��o e falta de interesse do Estado em forma��o de qualidade, muitas vezes sequer conhecem as situa��es onde a pr�tica � permitida. A mensagem que passa para os m�dicos, enfermeiros e demais trabalhadores da sa�de � “estamos de olho”, alerta a m�dica.
Al�m de aumentar a puni��o, os 40 projetos considerados desfavor�veis entre as PLs sobre aborto tamb�m tentam retirar as exce��es j� previstas na lei ou trabalham justamente para reduzir o acesso � informa��o. � o caso da PL 2893/2019, proposta por Chris Tonietto (PSL/RJ) e Filipe Barros (PSL/PR), que pede a revoga��o do artigo 128 do C�digo Penal para retirar as autoriza��es legais de aborto em em caso de gesta��o fruto de estupro ou em caso de risco de vida da gestante. O projeto segue aguardando o parecer do relator na Comiss�o de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER).
Caso fosse aprovada, essa norma poderia ter sido aplicada, por exemplo, ao caso das duas meninas que tiveram suas gesta��es interrompidas legalmente – e com repercuss�o nacional – nos �ltimos dois anos, em Recife e em Santa Catarina. Ambas n�o teriam direito ao aborto legal e teriam que manter a gesta��o de seus abusadores ou, caso tivessem abortado, poderiam ser punidas com um a tr�s anos de deten��o.
BAIXA REPRESENTATIVIDADE
Um em cada quatro projetos apresentados nesta legislatura foram avaliados pelas institui��es parceiras d’AzMina como desfavor�veis aos direitos das mulheres. Esse dado n�o surpreende, j� que tanto C�mara e quanto Senado s�o, hoje, compostas majoritariamente por homens. Muitos deles, conservadores convictos. Dos 513 deputados que assumiram o mandato em 2019, 436 eram homens e 77 mulheres. No Senado, das 81 cadeiras, apenas 15 s�o atualmente ocupadas por mulheres.
O n�mero baixo – e, portanto, com pouca diversidade – ajuda a entender a raz�o pela qual alguns temas sejam tratados com perspectivas limitadas. “As mulheres s�o s� 15% do Congresso, enquanto representam cerca de 52% da popula��o. S�o mulheres com diferentes trajet�rias, valores, vis�es de mundo, extra��es sociais, diferen�as de ra�a, idade e escolariza��o. Toda essa diversidade n�o pode ser expressa num n�mero t�o pequeno de deputadas e senadoras”, refor�a Cristiane Bernardes. Neste sentido, aborto e feminic�dio, seguidos por microcefalia, projetos relacionados a orienta��o sexual ou identidade de g�nero e o tamb�m j� citado viol�ncia sexual s�o os campe�es em n�mero de propostas desfavor�veis.
Em uma legislatura na qual deputadas e aliados progressistas se concentraram em impedir retrocessos, fez-se muito pouco para promover avan�os em �reas importantes como a Educa��o, a Sa�de e a Moradia, por exemplo. Em quatro anos, apenas 33 PLs t�m a Educa��o como tema, enquanto 35 s�o voltados � �rea da sa�de e somente 6 tratam de habita��o.

Outro tema negligenciado � a discuss�o racial, reflexo da aus�ncia de representatividade de pessoas negras e ind�genas nas bancadas, especialmente mulheres. Somente oito PLs – em quatro anos – tratam especificamente sobre quest�es raciais. Em plena pandemia, onde a Ci�ncia e Tecnologia foram temas t�o presentes no cotidiano das discuss�es pol�ticas, o �ltimo colocado da lista de tem�ticas tratadas pela legislatura como foco em g�nero � a Ci�ncia: em quatro anos, somente dois projetos relacionam g�nero e ci�ncia. Tecnologia, por sua vez, tem apenas quatro projetos.
Para saber quais foram os PLs propostos por cada parlamentar e conferir as avalia��es dos deputados e senadoras, bem como sua posi��o no Ranking do Elas no Congresso, acesse o site do projeto aqui.
Metodologia
O Elas no Congresso � um projeto que usa dados p�blicos do Congresso Nacional para monitorar os direitos das mulheres no poder legislativo e avaliar a atua��o dos parlamentares. A nota de cada senador e deputado no ranking depende da pontua��o dos projetos com os quais ela/ele e seu partido estiveram envolvidos e da pontua��o geral do seu partido. Cada proposta recebe uma pontua��o, que vai de -2 a 2, de acordo com sua relev�ncia e seu posicionamento em rela��o aos direitos das mulheres. Para entender como a pontua��o � feita, acesse: elasnocongresso.com.br/metodologia