
Por Fl�via Santos
Voc� est� rolando a tela para cima e se depara com v�rios v�deos de mulheres crespas e cacheadas que decidiram voltar a alisar os cabelos. Mulheres que desistiram da transi��o ou que j� passaram por esse processo h� alguns anos. Est�o unidas agora por outro fator em comum: a prefer�ncia de usar os fios lisos novamente.
Produtos qu�micos, escova e chapinha foram por anos c�mplices de uma press�o est�tica na vida de meninas e mulheres negras. Essa demanda tinha ra�zes hist�ricas na coloniza��o e escraviza��o, que espalharam a ideia de que pessoas negras deveriam modificar seus tra�os e cabelos para se adequarem a um padr�o de beleza branco.
A imposi��o foi perpetuada pela m�dia, pela publicidade e pela moda, e refor�ada pela falta de representa��o da popula��o negra em muitos setores, inclusive na ind�stria de cosm�ticos. Diante disso, romper com os fios lisos nunca foi uma tarefa f�cil, exigindo paci�ncia, cuidados especiais e muitos gastos.
Mas o destaque dado por artistas negras, influenciadoras digitais e movimentos antirracistas nos �ltimos anos, fez com que a aceita��o dos cabelos naturais parecesse um pouco menos complicada. A mobiliza��o nas redes foi fundamental. As marcas n�o podiam mais ignorar os cabelos cacheados e crespos. Blogs e canais tem�ticos no YouTube se multiplicaram, com indica��es de produtos, dicas de finaliza��o e receitas caseiras.
Acontece que, ap�s anos de valoriza��o das texturas naturais, nota-se hoje um movimento contr�rio: mulheres aderindo ao alisamento mais uma vez. Segundo o Google Trends, no per�odo de 2020 at� 2022, houve um aumento de 119% de pesquisas na plataforma por "cabelos lisos". A procura por "alisamento de cabelo" cresceu 176% no mesmo per�odo.
Tend�ncia 'anos 2000'
Muitos fatores podem justificar a onda crescente do alisamento capilar, um deles � a tend�ncia Y2K. A express�o adaptada do ingl�s "Year 2K" significa “Anos 2000”, e representa o retorno da moda e est�tica dessa d�cada, das cal�as de cintura baixa at� os �culos coloridos e os celulares com flip. Artistas e celebridades adotando aquele cabelo liso escorrido remetem � era das Destiny 's Child e Britney Spears, �cones e refer�ncias de estilo e beleza do in�cio do mil�nio.
O resgate da tend�ncia Y2K na internet tem efeitos negativos para os tempos atuais. A valoriza��o dos cabelos alisados, por exemplo, � vista como prejudicial, principalmente �s mulheres negras. Al�m do retorno desse padr�o est�tico, existe a reedi��o da ideia - question�vel - de que o cabelo alisado d� menos trabalho.

A estudante de publicidade Carol Figueiredo, que passou pela transi��o capilar tr�s vezes, decidiu voltar a alisar mais recentemente. O ponto de partida para a influenciadora digital foi a dificuldade de cuidar dos fios, e o relaxamento foi uma op��o para facilitar sua rotina. Ela tentou primeiro o botox [nome fantasia de um tratamento qu�mico para reduzir volume], mas achou que o cabelo ficou feio, porque n�o era nem liso, nem cacheado. "Fiquei com muita dificuldade em lidar e acabei alisando de uma vez.”.
Carol chegou a acreditar que poderia assumir o seu cabelo natural e passar pela transi��o. Ver mulheres negras e afro texturizadas na m�dia foi fundamental para ela. “Eu fiquei muito feliz quando vi os cachinhos formados, embora n�o tenham ficado 100%”, recorda Carol, que vivia em um ambiente com mais pessoas brancas.
Depois de tentar algumas t�cnicas, se frustrar com os resultados, voltou a alisar. Transacionou novamente. Por fim, admitiu a insatisfa��o quando o cabelo n�o ficava como o de outras mulheres cacheadas e, pela terceira vez, fez o relaxamento dos fios.
A ideia de que tratar de cabelos cacheados e crespos � mais trabalhoso vem da necessidade de esconder volume, frizz e ressecamento - muitas vezes considerados defeitos quando, na verdade, s�o caracter�sticas desse tipo de cabelo.
Cabelo natural mesmo

A analista de m�dias sociais Hailanny Souza viveu a experi�ncia da transi��o capilar aos 26 anos e encontrou no YouTube dicas, t�cnicas e produtos para cabelos naturais. Ela testou todos os tutoriais poss�veis de finaliza��o de cachos: fitagem com o dedo, com caneta, com papel, presilhas etc.
A dedica��o envolvia m�todos de lavagem, secagem, finaliza��o e manuten��o dos fios ao longo do dia, da noite, day after (que � o cuidado no dia em que n�o se lava o cabelo) e at� durante o sono. Hailanny percebeu, ent�o, que todas as solu��es apresentadas exigiam um grande investimento de tempo e dinheiro.
“Eu gastava metade de um pote de creme e quase nunca dava certo. Eram cremes caros. Todo m�s eu estava comprando produtos para usar no meu cabelo, para cachear", contou a analista, que investiu muito dinheiro em busca do cabelo impec�vel.
Foi em uma sa�da de �ltima hora com os amigos, que o jogo virou para Hailanny. Ela tinha 30 minutos para deixar o cabelo pronto. “Peguei um borrifador, botei �gua, um pouco de creme para pentear, passei no meu cabelo e fui soltando os cachos. Me achei incr�vel, maravilhosa e linda.”
Cansada de todas as regras, produtos e t�cnicas para chegar a uma apar�ncia final muito espec�fica, Hailanny decidiu abra�ar seu cabelo natural real. Poderoso e sem defini��o. Come�ou a seguir influenciadoras nessa linha, como a ex-BBB R�zia Cerqueira, e percebeu que poderia mudar seus h�bitos capilares. Os cremes e produtos, que s� duravam um m�s, passaram a render muito mais.
O custo al�m do dinheiro
Al�m do gasto, outros fatores precisaram ser considerados durante a busca pela juba perfeita. Algumas pomadas usadas na manuten��o de tran�as e baby hair, para evitar o frizz e alinhar os penteados, chegaram a ser retiradas do mercado pela Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) por causarem les�es oculares e irrita��o na pele.
O problema j� acontecia h� alguns anos, mas s� teve a aten��o do �rg�o a partir do envolvimento de personalidades da internet como Bielle Elizabeth, que ficou dias sem enxergar ap�s a pomada escorrer em seus olhos. Em uma live na rede social, a ex-BBB Tina Calamba, tamb�m revelou perda tempor�ria da vis�o ap�s usar uma pomada capilar modeladora.
Assim como Tina e Bielle, as ocorr�ncias eram principalmente com pessoas que tomaram chuva, banho de mar ou piscina ap�s usarem o produto. Isso fez a Anvisa interditar o uso de qualquer marca ou fabricante at� que testes e investiga��es fossem feitas para garantir a seguran�a dos consumidores. Recentemente, a ag�ncia de vigil�ncia divulgou uma lista de mais de 900 marcas que podem voltar ao mercado, mas o monitoramento de casos adversos associados aos produtos continua em andamento.
Valoriza��o seletiva dos cachos
A cultura de pessoas viciadas em produtos caros, infinitas informa��es de belezas por vezes conflitantes, deixaram muitas mulheres frustradas com seus cabelos. Mas j� h� especialistas corrigindo esse curso em dire��o a simplicidade. “Voc� foi ensinada a vida inteira que o cabelo natural � feio ou que s� � bonito se n�o tiver frizz, volume… Isso � o cabelo real”, explica a historiadora e expert em cachos e crespos, Paula Silva.

O “Natural Hair Moviment”, que significa Movimentos dos Cabelos Naturais, come�ou a ser semeado na d�cada de 1960, com ativistas como Angela Davis e Elaine Brown. Tratava-se de um ato pol�tico contra os padr�es de beleza euroc�ntricos, e se espalhou por outras partes do mundo para promover aceita��o e valoriza��o dos cabelos afro texturizados.
Atualmente, em uma nova onda, ativistas se mobilizam contra a imposi��o dos cachos perfeitos, que exclui texturas crespas. O objetivo agora � desconstruir a press�o de ter cabelos comportados e domados. “Uma pessoa que resolve assumir os cachos ou crespos e vai para o YouTube aprender a lidar com o cabelo se frustra”, alertou Paula Silva. � que grande parte das dicas de finaliza��es dos cachos n�o se encaixam no dia a dia das mulheres. "N�o tem condi��o voc� passar duas horas finalizando o cabelo, sabe?”
A cabeleireira aponta outro h�bito comum: pessoas que sempre terceirizam o cuidado do cabelo para o sal�o. Elas costumam lavar os cabelos no cabeleireiro uma vez por semana, escovam e saem com ele pronto. Mas, quando essas mesmas mulheres passam pela transi��o capilar, sem uma reeduca��o sobre como finalizar o cabelo em 20 minutos de forma pr�tica, acabam se desencorajando a manter os fios naturais.
Al�m da quest�o mercadol�gica, que induz o consumo excessivo de produtos, Paula acrescenta que � preciso considerar o algoritmo e a entrega das redes sociais. Em uma busca r�pida no Instagram por #cabelonatural, que rende aproximadamente 800 mil resultados, os tipos mais valorizados s�o cachos soltos que crescem para baixo, n�o para fora ou para cima, definidos e sem frizz. A estudiosa e cabeleireira avalia que isso � reflexo do comportamento racista, j� que o algoritmo � alimentado com dados que retratam a sociedade.
O comportamento hist�rico de inferiorizar as caracter�sticas que remetem � negritude n�o pode ser esquecido. A naturaliza��o do racismo alimentou discursos e pr�ticas de apagamento da diversidade dos cabelos afro.
Um movimento for�ado
Uma forma de opress�o foi trocada pela outra. V�rias mulheres se sentiram for�adas a entrar no movimento de volta aos cabelos naturais sem estarem preparadas - considera a neuropsic�loga com abordagem em relacionamento e autoestima Nath�lia Rocha.
“Voc� sai da imposi��o do cabelo alisado, mas permanece presa na expectativa do que o outro considera bonito”, explica ela, acrescentando que, se a mulher negra de cabelo crespo n�o est� com a autoestima realmente trabalhada, acaba cedendo a esses padr�es mais uma vez.
As entrevistadas Hailanny e Carol concordam que os cabelos alisados com produtos qu�micos acabam dando tanto trabalho quanto os cacheados e crespos, j� que � preciso fazer escova frequentemente, chapinha na raiz todos os dias e retoques. Mas o r�tulo sobre os cabelos afro-texturizados como “desleixados” ou “bagun�ados” pesa mais.
“N�o � f�cil lidar com cabelo sendo negra, seja ele liso, cacheado, de qualquer forma", disse Carol. O problema n�o � o tipo de cabelo em si, mas a imposi��o de padr�es inating�veis e que discriminam essas mulheres.
A psic�loga Nath�lia, que conduz uma cl�nica antirracista, conclui que lidar com a press�o est�tica � uma demanda coletiva, n�o apenas individual. No entanto, ela indica estrat�gias pessoais que podem ajudar. Veja algumas delas:
- Liberta-se da necessidade de valida��o externa
- Usar a internet a seu favor, buscando mulheres que compartilhem das mesmas caracter�sticas f�sicas e culturais. A press�o est�tica � consequ�ncia do racismo que mulheres negras enfrentam diariamente, mas refer�ncias positivas podem ser uma ferramenta poderosa na constru��o de uma autoimagem saud�vel
Refletir e sustentar a escolha. O cabelo crespo oferece versatilidade para as mulheres negras, mas “ser� que � porque a pessoa realmente quer ou acha bonito, ou simplesmente porque est� seguindo uma tend�ncia popular?”.
A reportagem original tamb�m pode ser lida no portal d'AzMina.