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Estado de Minas

M�es em pris�o domiciliar: restri��es afetam cuidado consigo e com crian�as

Mulheres que cumprem pena em casa enfrentam dificuldades para sustentar os filhos e atender demandas b�sicas da maternidade


08/05/2023 18:35 - atualizado 08/05/2023 18:39
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Colagem representando uma mulher negra abraçando uma criança negra. Nas laterais da imagem, outras duas mulheres, cada uma apoiada em galhos de árvores sem folhas
(foto: AzMina)
 

Em pris�o domiciliar, Fernanda* j� sentia o quanto era desafiador ser m�e de dois filhos pequenos. Quando engravidou da terceira filha, levou um choque durante a ces�ria. N�o foi no sentido figurativo, a corrente el�trica realmente invadiu seu corpo. Fernanda entrou em trabalho de parto e foi para o hospital com uma tornozeleira eletr�nica vibrando em sua perna por sair de casa sem avisar. Os profissionais de sa�de n�o quiseram tirar o equipamento, mesmo com o risco de ela sofrer a descarga no centro cir�rgico. Tiraram o seu brinco, o piercing, mas n�o o aparelho el�trico.

“Pedi pelo amor de Deus, disse que eu me responsabilizava, mas tinham umas 10 pessoas l� e ningu�m quis tirar a tornozeleira, porque ficaram com medo. Tive um susto danado com aquele choque vindo de baixo pra cima, achei que ia morrer, e comecei a vomitar”, recorda com horror.  

A decis�o judicial que lhe concedeu pris�o domiciliar dizia que ela n�o poderia se afastar mais de 500 metros de casa. Mas o juiz n�o considerou que crian�as e uma gesta��o t�m imprevistos, tampouco que ela n�o teria como cuidar dos filhos assim, sem poder trabalhar para sustent�-los.  
 

No primeiro semestre do ano passado, havia cerca de 16 mil mulheres no Brasil em pris�o domiciliar, conforme os �ltimos dados do Departamento Penitenci�rio Nacional (Depen). Sabe-se que a maioria das mulheres presas no pa�s (74%) � m�e, mas n�o h� informa��es sobre a idade dos filhos e filhas, nem um recorte sobre as que est�o cumprindo pena em casa. 

A medida alternativa ao encarceramento tem, entre seus objetivos, o de proteger a primeira inf�ncia, preservando o cuidado materno. No entanto, o excesso de limita��es da pris�o domiciliar – a depender da vis�o do juiz ou ju�za do caso – pode seguir prejudicando o exerc�cio da maternidade.  

A reportagem da revista AzMina ouviu Fernanda*, em Pernambuco, Marisa*, em Minas Gerais, e Fab�ola*, em S�o Paulo. Mulheres que t�m mais de um filho e pouca ou nenhuma rede de apoio e afeto. M�es solo, sem moradia pr�pria, sem trabalho e sem renda. Com isso, a alimenta��o dos filhos fica comprometida. Sair para fazer uma simples compra de supermercado � um problema, assim como levar a crian�a � escola ou a uma unidade de sa�de numa emerg�ncia � noite.

Muitos ju�zes n�o consideram a necessidade de algumas flexibilidades, como, por exemplo, a festinha da escola ou aquele dia de homenagens � fam�lia, que caem no fim de semana. M�es e filhos n�o podem participar e, mais uma vez, ficam � margem da vida social.

“Para conseguirmos que a m�e (em pris�o domiciliar) pudesse levar e pegar a filha menor na escola precisou todo um esfor�o da defensoria”, exemplificou Mar�lia Lima Milfont, defensora p�blica federal, sobre uma ex-assistida do �rg�o. “Depois, teve uma feira de ci�ncias em um final de semana, em que foi outro estresse para conseguirmos a autoriza��o judicial pr�via.” 

Mais vulner�veis do que antes 

As condi��es de vida das m�es em cumprimento de pris�o domiciliar, diante de uma s�rie de restri��es impostas e da falta de pol�ticas sociais, de emprego e renda, podem agravar as vulnerabilidades j� vivenciadas por elas antes da pris�o. Esse achado est� na pesquisa do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), que se debru�a sobre o tema h� uma d�cada. 

Em 2022, o ITTC analisou e entrevistou cinco mulheres jovens (de 19 a 35 anos), m�es, pobres, a maioria com baixa escolaridade. Um relat�rio de 106 p�ginas descreve “os desafios da aplica��o da pris�o domiciliar para o pleno exerc�cio da maternidade e a prote��o � inf�ncia”. 
 
Infográfico que mostra dados sobre 'Maternidade presa'
(foto: AzMina)
 

“Antes eu trabalhava e a gente comia uma comida melhor, comprava bastante roupa para ele (…) agora n�o poder sair daqui para trabalhar, muita coisa piorou”, disse uma das entrevistadas no estudo. O instituto aponta que a inseguran�a alimentar e a instabilidade financeira s�o agravadas pelo aprisionamento e pela dificuldade ao acesso a direitos b�sicos. 

“Observamos que as hist�rias se repetem e, muitas vezes, justamente o fato de serem m�es e estarem em busca de sua subsist�ncia material e de seus filhos, levam para o cometimento de condutas consideradas il�citas“, indica o relat�rio.

O sistema de justi�a e seguran�a e as secretarias estaduais penitenci�rias, em geral, n�o se articulam com prefeituras e �rg�os de assist�ncia para o atendimento dessas mulheres. Tamb�m n�o h� regulamenta��o sobre o cumprimento da pris�o domiciliar, tornando as decis�es judiciais insuficientes diante das demandas das m�es, que muitas vezes est�o s�s. 

Camadas de solid�o

Nenhum dos tr�s filhos de Fernanda* foi planejado, e s�o de pais diferentes – um morreu e os outros s�o ausentes. O menino mais velho, de 6 anos, sofre com retardo mental e transtornos do desenvolvimento neuromotor. Segundo ela, o filho ainda n�o anda e n�o fala direito em consequ�ncia de neglig�ncia m�dica no parto. Sozinha, filha �nica de pais falecidos, essa m�e de 25 anos, conta apenas com alguns amigos: “a fam�lia que Deus manda pra gente”. 

Foi uma amiga que ficou com os filhos dela quando, ap�s uma den�ncia an�nima, oito policiais vestidos de preto entraram na sua casa quebrando e bagun�ando tudo, com o menino na cadeira de rodas gritando e chorando. Mandaram tirar a beb� do ber�o para revirar o m�vel e levaram Fernanda embora, pois acharam drogas de seu ex-companheiro, que depois assumiu a posse. Mas ela seguiu com a pena, que cumpre em pris�o domiciliar, na esperan�a de ser inocentada na senten�a final. 

O Benef�cio de Presta��o Continuada (BPC) que recebia do governo pelo filho com defici�ncia foi bloqueado, pois o sistema identificava que Fernanda estava na pris�o, e n�o em domic�lio. Com a tornozeleira eletr�nica, s� conseguia trabalho quando pessoas conhecidas topavam contrat�-la para uma faxina, pois o equipamento tamb�m desperta preconceito, medo e julgamentos. Isso quando n�o � motivo para ela levar “baculejos” dos policiais. “Ningu�m olha pra minha cara, olha direto o p�. Para o mundo eu n�o presto, e ningu�m quer saber a minha vers�o”, questiona Fernanda. 

S� depois de dois meses sem o m�nimo para sobreviver, ela conseguiu voltar a receber o sal�rio m�nimo mensal do BPC. “Foi um aperreio grande porque eu n�o tinha nada. E crian�a n�o quer saber, quer comer e pronto”, relembra. 
 
Infográfico que mostra dados sobre 'Mulheres em prisão domiciliar'
(foto: AzMina)
 

Medo de voltar para a cadeia

Fernanda usava tornozeleira fazia quatro anos quando a entrevistei, e seu processo estava parado. “O monitoramento � para quem amea�a fugir sem cumprir a pena, n�o faz sentido algu�m usar por muito tempo se est� obedecendo”, explicou a bacharel em direito Clarissa Torres, uma das fundadoras do coletivo Liberta Elas em Pernambuco. 

Mas, na pr�tica, com o equipamento no tornozelo, ou Fernanda desobedecia �s regras, ou a fam�lia passava fome. Ela n�o podia trabalhar, ir � farm�cia nem ao supermercado. Mesmo ao socorrer a crian�a, que tem algumas crises convulsivas, ela entende que precisa avisar � Justi�a. Fernanda faz parte de um grupo de mulheres que convive diariamente com o medo, arriscando a volta para a pris�o por atenderem necessidades prim�rias da maternidade, sobretudo quando n�o contam com nenhum suporte.

As fronteiras da pris�o domiciliar n�o s�o bem esclarecidas para essas mulheres. A linguagem da Justi�a e da burocracia, com todas as suas siglas, n�o ajuda. E a determina��o de que fiquem em casa, na opini�o dos pesquisadores do ITTC,  revela a falta de compreens�o do Marco Legal da Primeira Inf�ncia. “Restringir a atividade de uma m�e ao ambiente dom�stico limita o desenvolvimento cognitivo, motor, social e cultural da crian�a e dos v�nculos familiares”, defende o artigo do instituto.

Sempre que Fernanda precisa checar o andamento de seu processo – que passou a ser digital -, ela se desespera. “Quando t� carregando a p�gina eu j� fico rezando pra n�o ter ordem de recolhimento.” Na �ltima audi�ncia, a ju�za lhe perguntou sobre seus desrespeitos �s regras da pris�o domiciliar: “n�o vou mentir n�o, doutora, eu tenho muita viola��o, porque n�o vou ficar passando fome dentro de casa com os meninos.” 

A m�scara protegeu da pol�cia

Para Fab�ola*, de 38 anos, o mais dif�cil da maternidade nessas condi��es foi ter que ir �s consultas de pr�-natal com medo de ser presa, de algu�m denunci�-la. “O juiz te restringe de um monte de coisa. Se fosse pela justi�a, eu n�o estaria sendo m�e.” 

Ironicamente, o que favoreceu Fab�ola, nesse per�odo, foi o uso da m�scara durante a pandemia de Covid-19. “Um v�rus que veio e acabou me camuflando um pouco, porque tenho medo de ser presa na rua e deixar meus filhos em casa.”

Ela afirma que saiu do pres�dio com R$ 23 mil de multa penal determinada pelo juiz. “Se eu n�o saio pra fazer uma faxina, se eu n�o topo qualquer trabalho, n�o tenho o alimento, n�o pago meu aluguel.”

A filha de Fab�ola estava com 17 anos, foi a pessoa autorizada a buscar o irm�o mais novo, de 3 anos, na escola enquanto a m�e cumpria a pena. Mais tarde, a jovem aprendeu o of�cio de manicure e passou a ajudar com as despesas atendendo clientes em casa. A m�e faz planos de um futuro diferente para o ca�ula: “Espero ainda dar um estudo pra ele ser o doutor da fam�lia.”  

Presa na frente dos filhos

Marisa*, de 39 anos, cumpria pena em regime domiciliar com tornozeleira h� dois anos quando recebeu ordem de recolhimento do juiz por descumprir os hor�rios estabelecidos. Isso foi em 2022, uma cena dolorosa que ela n�o esperava que se repetisse com a fam�lia em casa. � que, em 2017, sua pris�o aconteceu na frente de seus quatro filhos � �poca, num completo desespero, j� que a m�e era o sustento financeiro e emocional de todos. 

At� ser presa, ningu�m sabia o que ela fazia para trazer dinheiro para casa. “Vivi o tr�fico na rua. Com meus filhos eu era outra pessoa. Era m�e, carinhosa, dedicada.” Prova disso � uma carta da filha mais velha escrita durante a deten��o: “se voc� n�o fosse uma m�e t�o presente, a gente n�o estava sofrendo tanto.” Quem conta � Marisa, sem conseguir segurar o choro.

A m�e dela tamb�m foi sozinha, empregada dom�stica, levada ainda crian�a de Minas Gerais para Bras�lia com a fam�lia dos patr�es. Trabalhando no Setor de Mans�es do Distrito Federal, ela teve Marisa, que presenciou a rotina de pessoas ricas e com poder: casa, motorista, piscina, fartura. Aos 9 anos, voltou com a m�e para Belo Horizonte, quando as duas passaram a viver com pouco, mas livres. 

J� adulta, come�ou a trabalhar para o tr�fico de drogas com o desejo de dar � fam�lia mais do que o b�sico para viver, nas palavras dela. “E eu n�o t� falando de ostentar, at� porque eu n�o sei o que � chegar numa loja e comprar um t�nis caro.”

Foi presa pela primeira vez em 2002, pagou a pena e se afastou das drogas por 10 anos. Em 2016, enfrentou uma crise econ�mica e, sem emprego, se envolveu novamente com o crime. Acabou ficando mais tr�s anos na penitenci�ria, e n�o viu a filha mais nova crescer. Durante os primeiros oito meses, ficou sem visitas e sem not�cias dos filhos e da m�e. “Eu nem sa�a no sol, minha vida era s� chorar, chorar, chorar.”

Se em Bras�lia ela viu como era ter praticamente tudo, na pris�o aprendeu a  sobreviver sem quase nada. “Eu tinha tr�s pe�as de roupa, s� uma coberta. Ficava numa cela com cama, chuveiro, vaso, tudo junto, dividindo com um monte de mulher”, descreveu Marisa. 

No terceiro aprisionamento, ela descobriu que estava gr�vida da quinta filha. Retornou para o regime aberto ap�s uma ju�za constatar que ela n�o tinha hist�rico de indisciplina. Na virada de ano de 2022 para 2023, a fam�lia foi para a igreja e ela ficou em casa, cuidando da beb� nos limites da resid�ncia.  

* Decidimos preservar nomes e/ou sobrenomes das entrevistadas, atendendo ao pedido delas.
 
A reportagem original tamb�m pode ser lida no portal d'AzMina

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