
Mulheres que cumprem pena nas pris�es brasileiras saem da categoria de “humanas” para se tornarem “detentas”, sem qualquer distin��o. “Eu cheguei [na penitenci�ria] e eles perguntaram o meu n�mero no sistema, n�o querem saber seu nome”, desabafou Marisa.
Quando deixam as celas se tornam ‘sobreviventes’. � como s�o chamadas as mulheres que sobrevivem ao c�rcere por quem luta pelo desencarceramento. E assim as palavras servem para nomear sentimentos. Entendem que nada � pior do que uma penitenci�ria lotada, suja, isolada e longe da fam�lia. Mas estar em pris�o domiciliar n�o � um benef�cio, � uma puni��o diferente. E essa confus�o comum n�o se faz por acaso.
“A tradi��o � de manter presa. A�, quando se utiliza um direito, (a pris�o domiciliar), � como se fosse um favor: nem reclama mais porque j� est� em casa”, exp�e Clarissa Torres, do coletivo Liberta Elas, lembrando que os filhos n�o cometeram crime e t�m direito ao cuidado materno.
Nos �ltimos 20 anos, o encarceramento de mulheres aumentou cinco vezes no Brasil, de acordo com o Depen. Somos o terceiro pa�s do mundo que mais encarcera as mulheres, revela o World Female Imprisonment List em 2022. Dados do Infopen Mulheres (de 2018) apontam que a maioria das presas � negra (62% pretas ou pardas), n�o terminou o ensino fundamental (66%) e tem at� 29 anos (59%). Outro dado relevante (Depen, 2021) � que mais da metade (56%) das mulheres privadas de liberdade cometeram crimes relacionados ao tr�fico de drogas, sem viol�ncia ou grave amea�a. E, conforme o ITTC, 7 em cada 10 afirmam que entraram no crime influenciadas pelos companheiros.

Inf�ncia punida
O Marco Legal da Primeira Inf�ncia (Lei n. 13.257/2016) ampliou as possibilidades de pris�o domiciliar para m�es presas provisoriamente, gestantes e m�es de crian�as com at� 12 anos ou de pessoas com defici�ncia.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu o direito � pris�o domiciliar �s mulheres presas preventivamente, como j� estabelecia o Marco Legal. E deveria ser obrigat�rio, caso a m�e n�o tenha cometido crime com viol�ncia ou amea�a, ou contra os filhos, se for r� prim�ria e tiver bom comportamento.
Pesquisadores do campo entendem que a pris�o domiciliar � um importante mecanismo desencarcerador bom para toda a sociedade, pois mant�m o cuidado familiar e v�nculo afetivo entre m�e e filho. Mas a �ltima pesquisa do ITTC revela que 30% das brasileiras que deveriam ter a pris�o preventiva substitu�da pela domiciliar tiveram o direito negado, e 43% daquelas em pris�o definitiva, tamb�m.

“Com o judici�rio que temos no Brasil, n�o � um caminho simples chegar � decis�o da pris�o domiciliar”, explica Fernanda (Nana) Oliveira, advogada criminalista da Assessoria Popular Maria Felipa e fundadora do projeto Solta Minha M�e, em Belo Horizonte.
Al�m de ju�zes, de maioria branca e masculina, as defensorias p�blicas est�o sempre sobrecarregadas, principalmente no interior dos estados. “E tem lugar que nem tem quem defenda essa mulher”, acrescenta a advogada, lembrando que muitas justificativas para negar a pris�o domiciliar s�o incoerentes.
“Se pensa que ela merece porque cometeu um crime, e n�o se pensa na crian�a”, considera Nana, que atua com mulheres presas h� anos junto � Frente Estadual pelo Desencarceramento de Minas Gerais.
Em Pernambuco, Clarissa Torres afirma que a negativa do direito � pris�o domiciliar predomina, e que foi assim mesmo durante a pandemia. Ela acrescenta que a mulher n�o � julgada s� pelo crime, mas por ser uma m�e fora da lei, que sai um papel social determinado. “Fica n�tida a mentalidade dos tribunais sobre a maternidade ideal e, ao mesmo tempo, a desvaloriza��o dessa m�e no cuidado da crian�a, com a naturaliza��o de outras pessoas nesse cuidado.”
Clarissa percebe que alguns magistrados consideram aquela m�e irrelevante na vida da crian�a, sob o argumento de que “ter ela presa � at� melhor para o filho”. Mas essa alega��o n�o tem nenhum fundamento jur�dico al�m do entendimento desses ju�zes. O problema � que esse pensamento tem consequ�ncias diretas na dosimetria e no regime da pena.

Elas n�o s�o monstros
Marisa* viveu as experi�ncias da pris�o se afastando de filhos pequenos, da pris�o domiciliar com tornozeleira, de um in�cio de gravidez encarcerada, e depois em casa sem o monitoramento eletr�nico, mas com restri��es de hor�rios. Em todas se sentiu desumanizada muitas vezes.
A filha de Marisa tem um amigo autista na escola e a fam�lia do garoto leva ela para todos os lugares. “Quando descobriram que fui presa, perguntavam o tempo todo como eu era, esperando que eu fosse um monstro.” A menina respondia que Marisa era uma m�e ‘normal’, mas a resposta sempre parecia n�o atender as expectativas.
“A Justi�a � muito seca, � injusta. Eles n�o querem saber como eu sou m�e, se sou esse bicho, uma traficante mesmo ou uma ral�”, lamenta Marisa. Ela acredita que poderia ser diferente se houvesse investiga��o social na escola dos filhos, na vizinhan�a, para conhecer a trajet�ria da pessoa acusada antes de definir a pena.
O preconceito tende a aprofundar os abismos sociais em que vivem as mulheres encarceradas. No calor de Recife, Fernanda* s� andava de cal�a para tentar esconder a tornozeleira eletr�nica e n�o ser perseguida no supermercado, porque pensam que ela pode ser tudo, menos uma m�e comprando comida para os filhos.
Certa vez, Marisa falou pro juiz: “Preciso que voc�s tirem esse ‘trem’ de mim (tornozeleira) porque eu tenho que trabalhar”. E seguiu: “Esse neg�cio de reintegra��o na sociedade � tudo balela, no papel?”
Al�m do direito a cuidar dos filhos e se ressocializar, elas querem o direito de n�o serem julgadas. “As pessoas n�o entendem que a gente errou, mas tem o direito de mudar, de fazer diferente, porque a gente tem uma fam�lia. Poucos te d�o a m�o, te acolhem”, sente Fab�ola*, em cumprimento de pena.
* Decidimos preservar nomes e/ou sobrenomes das entrevistadas, atendendo ao pedido delas.
A reportagem original pode ser lida no portal d'AzMina.