
Por Jade Santana e Aym� Brito
Relacionamentos exigem disposi��o, cuidado, paci�ncia e muito respeito. Mas quais as especificidades e os desafios das rela��es entre pessoas de ra�as/etnias diferentes? Os relacionamentos inter-raciais costumam gerar muitas pol�micas na internet. Mas, ultrapassando essa camada virtual, pessoas negras, amarelas e ind�genas, que escolhem se relacionar afetivamente com parceiros de outras ra�as, precisam conciliar demandas di�rias, comuns a todos os casais, com quest�es espec�ficas que podem surgir nessa mistura.
Debates raciais deveriam ocorrer em qualquer rela��o, mesmo se forem pessoas brancas e n�o racializadas. Mas as discuss�es sobre rela��es de poder e acolhimento se tornam ainda mais importantes nos relacionamentos inter-raciais.
Para fazer esta reportagem, a equipe d'AzMina conversou com Camila e Matheus, Ana Luiza e Wansub, Araci e Fl� Yara, e os ind�genas Guaciane e Awatenondegua - �nica dupla n�o inter-racial. Os quatro casais nos contaram suas hist�rias e viv�ncias.
A consci�ncia racial
Num relacionamento inter-racial, pessoas de cores, ra�as ou origens �tnicas e ancestrais diferentes se envolvem romanticamente. Mas quando o assunto � esse, a imagem mais comum � a de um casal formado por uma pessoa negra e uma pessoa branca, mas existem outros tipos de rela��es, unindo pessoas amarelas, ind�genas, entre outras possibilidades.
Camila Bertolino, de 21 anos, � estudante de letras, mulher negra, cis e bissexual; e Matheus Suzuki, de 22, conhecido como Curu, artista, homem amarelo, cisg�nero e demissexual. Eles se conheceram na virada do ano de 2021 e, em pouco tempo, iniciaram um relacionamento amoroso.

Antes disso, Camila havia decidido n�o se envolver mais com pessoas n�o negras. “A maioria dos meus relacionamentos foi com homens brancos, principalmente porque cresci em ambientes embranquecidos. S� depois que me entendi como uma mulher negra pude compreender melhor como tudo isso me afetou”.
Curu tamb�m s� tinha se relacionado com pessoas brancas e, no in�cio do namoro com Camila, ainda se via como um homem branco. “Acho que quando se trata de um relacionamento com pessoas brancas, � dif�cil que essas discuss�es ocorram”. Foi Camila quem trouxe a quest�o racial para o relacionamento. Eles come�aram a pesquisar na internet sobre casais afro-asi�ticos, e a discuss�o se tornou cada vez mais presente.
Curu fez um curso sobre amarelitude - como branquitude ou negritude -, onde aprendeu muito, formou a pr�pria consci�ncia racial e passou a se identificar como homem de ascend�ncia asi�tica. “Em casa, sou eu quem levanta as quest�es da comunidade japonesa”. Para o casal, a comunica��o e o pr�prio “letramento racial” s�o as coisas mais importantes num relacionamento inter-racial.
“Com certeza voc� vai se deparar com coisas que nunca viveu e que talvez n�o te afetem diretamente. No entanto, se voc� est� em um relacionamento com uma pessoa racializada, seja qual for, � muito importante que voc� se esforce para ter letramento racial. O mesmo vale se voc� for a pessoa racializada; � importante compreender essas quest�es para se proteger ou identificar viol�ncias”, compartilhou Camila.
Viv�ncias e pa�ses diferentes
Ana Luiza Barbosa, de 27 anos, e Wansub Kim, 31, tamb�m est�o em um relacionamento afro-asi�tico. As disparidades �tnicas s�o acentuadas por terem nascido em pa�ses diferentes: Brasil e Coreia do Sul. Eles se conheceram num aplicativo de conversas, e quando come�aram a namorar, em 2018, n�o imaginavam as quest�es �tnico-raciais que permeariam o relacionamento.
Quando estava prestes a conhecer a fam�lia do namorado, Ana pensou que ser uma mulher negra poderia ser visto como algo negativo. “N�o esperava a rea��o que meus sogros tiveram, pois sei que muitas fam�lias coreanas n�o aceitam relacionamentos inter-raciais, mas eles se mostraram muito interessados em me ver na chamada de v�deo, e, quando nos conhecemos pessoalmente, me senti muito acolhida”, contou.

Ap�s se mudar para o Brasil, em 2020, para morar com Ana, hoje sua esposa, o coreano Wan passou a sentir o preconceito que ela vivia desde a inf�ncia. “� importante que o outro entenda, at� certa extens�o, como � viver na nossa pele. Cada um de n�s enfrenta problemas diferentes. Tentamos discutir esses problemas para que sejamos aliados”, explica Wan, que � professor de ingl�s.
Para Ana, � importante que ambos ensinem um ao outro sobre as especificidades de suas etnias. “A experi�ncia dele como um homem asi�tico, que cresceu na �sia, em nada se assemelha com a minha aqui no Brasil. Acredito que tenho o papel de apresentar ao meu marido os problemas raciais que permeiam a popula��o brasileira.”
“� preciso que pessoas que julgam casais inter-raciais entendam que pessoas diferentes podem se relacionar. Nos adaptamos assim como fazemos em qualquer tipo de relacionamento. Basta ter a mente aberta”, concluiu Ana.
N�o � s� sobre ra�a
O ano era 2022 e o momento era de espera pelo resultado do segundo turno das elei��es. Foi nesse clima, em um bar em S�o Paulo, que se conheceram Araci Santos, 39 anos, professora de forr�, negra e n�o-bin�ria, e Fl� Yara, 29 anos, programadora de software, branca, travesti e bissexual.

Atualmente, elas vivem uma rela��o n�o-monog�mica, t�m envolvimentos com outras pessoas. Apesar de compartilharem aspectos comuns aos relacionamentos, como afeto, carinho e responsabilidade, a dupla n�o se considera um casal tradicional. “Somos pessoas que se relacionam com muito amor, mesmo sendo um amor que n�o existe s� entre duas pessoas”, explicou Yara.
Araci passou por v�rias transforma��es em sua identidade sexual, o que a fez enxergar os relacionamentos inter-raciais de forma diferente. J� se considerou h�tero e bissexual, e sentia que, ao se relacionar com homens brancos, os conflitos raciais eram maiores. Atualmente, ela se identifica como n�o-h�tero e percebe que os relacionamentos com mulheres e pessoas trans abrem mais espa�o para discuss�es de g�nero e ra�a.
O meio em que vivem se tornou uma rede de apoio em torno do casal, e as pessoas ao redor j� est�o familiarizadas com as discuss�es. “Eu costumo ser vista como uma mulher cis, e a Yara � uma mulher trans, ent�o, as pessoas nos veem e t�m a expectativa de que dev�amos estar nos relacionando com homens cis”, disse Araci
O casal enfrenta dois desafios: o racismo e a transfobia. Para Yara, rela��es onde existe essa assimetria - onde uma das pessoas vivencia o racismo e a outra n�o - exigem muita disposi��o de ambos os lados. “Ainda que eu busque ser uma aliada na luta antirracista, tenho que reconhecer que � estrutural e eu me beneficio de um sistema que privilegia meu corpo como pessoa branca, mesmo que n�o privilegie meu corpo como pessoa trans”.
Araci e Yara concordam que o amor e o afeto s�o as condi��es b�sicas para o que est�o construindo, e devem vir antes dos outros debates. Segundo Araci, a preocupa��o com a cor dos filhos que podem vir, � fundamentada em uma vis�o hetero-cis-monog�mica, e acaba sendo menos relevante.
“As pessoas adoram dar pitaco sobre nossa vida, mas no dia a dia ningu�m sabe como voc� vive. Devemos nos acolher e reconhecer que o amor e o afeto s�o quest�es pol�ticas.”, afirmou Ana.
Uma uni�o de lutas
Para Guaciane Nimboatsa�, 30 anos, professora e lideran�a da aldeia Tapirema (Peru�be, S�o Paulo), estar em um relacionamento com uma pessoa ind�gena sempre foi prioridade. Conheceu o marido, Awatenondegua dos Santos, 31 anos, na grava��o de Kangwa�, projeto musical dos ind�genas Tupi-Guarani das aldeias Bananal, Nhamandu Mirim e Pia�aguera do Litoral Sul e S�o Paulo. Amor e lideran�a andaram lado a lado e, logo, a luta pela preserva��o da cultura passou a fazer parte da din�mica do casal.
Desde o come�o do relacionamento, que j� dura 12 anos, eles se conectaram pelo sonho do fortalecimento das ra�zes ind�genas. Awatenondegua, cacique e assessor do Distrito Sanit�rio Especial Ind�gena (DSEI) Litoral Sul, levava a parceira a eventos do movimento ind�gena e, ap�s um ano, j� comandavam juntos uma aldeia com 38 fam�lias. Juntos, fundaram a aldeia Tapirema, onde s�o l�deres em conjunto h� quatro anos. “N�o somos s� um casal ind�gena, somos um casal de luta”, afirma Guaciane.

Focada na preserva��o da cultura do seu povo, Guaciane acredita que teria mais dificuldade em se relacionar fora da etnia, pois v� essa luta como algo a ser feito entre pares. Para ela, seria muito dif�cil explicar tradi��es, l�nguas e c�nticos a algu�m que n�o os conhece ou n�o entende sua import�ncia.
“A pessoa n�o ser ind�gena ou ser de outra etnia n�o � um impeditivo para o relacionamento, mas � preciso aprender sobre a outra cultura, respeitar”, opina ela. O casal n�o condena rela��es inter-raciais, mas prefere unir o afeto � luta. Da parceria entre eles, nasceram Guacielly, 8 anos, e Francielly, 3 anos, Nimboagwedju. As filhas s�o uma forma de passar tradi��es adiante, garantir a centralidade da cultura Tupi Guarani.
“S� � preciso respeito, confian�a e parceria para um relacionamento prosperar. Vejo que somos for�a e resist�ncia! Sou grata por ele estar ao meu lado construindo nossos sonhos de fortalecer nossa ancestralidade e nossa cultura”, concluiu Guaciane.
A reportagem original pode ser lida no site d'AzMina.
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